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Full text of "A Africa portugueza. Nuvem desfeita, de Affonso Vargas. A minha terra, de Raphael d'Almeida. A Fonte da Preguiça e a Nogueira da Miseria de João de Mendonça. Severina, de Guiomar Torrezão. A noite de 3 de setembro de 1758, de Alberto Telles. O rei da Ericeira, de Alberto Pimentel. Othellosito, de Rangel de Lima Junior"

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Wá 


BRINDE 


AOS 


SENHOEES  ASSIGNANTES 


DO 


DIÁRIO  DE  NOTICIAS 

Em  1890 

.£  =5> 

A  Africa  Portugueza,  de  Pinheiro  Chagas. 

Nuvem  desfeita,  de  Afionso  Vargas. 

A  minha  terra,  de  Raphael  d'Almeida. 

A  fonte  da  preguiça  e  a  nogueira  da  miséria, 

de  João  de  Mendonça. 
Severina,  de  Guiomar  Torrezão. 
A  noite  de  3  de   setembro  de  1758,  de  Alberto 

Telles. 
O  rei  da  Ericeira,  de  Alberto  Pimentel. 
Otuellosito,  de  Rangel  de  Lima  Júnior. 


LISBOA 

TYPOGRAPHIA  UNIVERSAL 

(Imprensa  da  Casa  Real) 
110,  Rua  do  Diário  de  Noticias,  116 

1890 


((       FEB    9  1968 


ff 


ohnfmzo  Gâaaaò 


A  AFRICA  PORTUGUEZA 


A  AFRICA  PORTUGUEZA 


Se,  em  vez  de  lhes  contar  as  aventuras  do  he- 
roe  de  um  romance,  eu  tentasse  em  breves  pagi- 
nas contar-lhes  as  aventuras  d'esta  Africa  portu- 
gueza,  que  tantas  amarguras  nos  tem  custado,  mas 
a  que  por  isso  mesmo  temos  um  entranhado  amor, 
não  ficariam  os  meus  leitores  mais  satisfeitos,  so- 
bretudo se  eu  conseguisse  condensar  em  poucos 
períodos  as  idéas  geraes  que  são  indispensáveis  a 
todo  o  patriota  que  quer  saber  deveras  o  que  é,  ô 
que  tem  sido  um  paiz,  já  hoje  tão  impregnado  de 
sangue  portuguez,  mas  ao  qual  estão  hoje  ligados, 
como  ao  ultimo  filho  que  nos  resta  d'essa  gestação 
audaciosa  de  mundos  novos  que  estivemos  dando 
durante  dois  séculos  á  luz  da  civilisação  ? 

Tomemos  simplesmente  essas  colónias  que  se 
espalham  por  toda  a  Africa :  Angola,  Guiné,  Ca- 
bo-Verde,  S.  Thomé  e  Príncipe,  Moçambique,  to- 
memol-as  na  occasião  em  que  se  funda  no  nosso 
paiz  o  regimen  constitucional. 

Já  em  torno  d'ellas  pairam,  como  abutres,  as  cu- 
bicas estrangeiras.  Em  Lourenço  Marques  o  ca- 
pitão Owen  reivindica  para  a  Inglaterra  o  domí- 
nio d'essa  bahia,  que  só  quarenta  annos  depois 


8 

a  arbitragem  de  Mac-Mahon  nos  reconhece  defi- 
nitivamente ;  já  os  inglezes  da  Serra  Leoa  er- 
guem de  vez  em  quando  a  sua  bandeira  nas  ilhas 
do  archipelago  de  Bijagós,  e  também  só  qua- 
renta annos  depois  é  que  a  arbitragem  de  Ulysses 
Orant  nos  reconhece  a  ilha  de  Bolama ;  já  o  go- 
verno inglez  nos  impede  de  estabelecer  o  nosso 
dominio  na  foz  do  Zaire,  e  também  só  cincoenta 
annos  depois  a  conferencia  de  Berlim  nol-o  reco- 
nhece ;  já  os  francezes  também  se  vão  estabele- 
cendo, com  pés  de  lã,  nas  margens  do  Casamansa, 
que  temos  afinal  de  sacrificar.  Com  tanta  attenção 
devíamos  olhar  para  essas  longínquas  regiões,  e 
comtudo  não  nos  occupavamos  senão  das  nossas 
discórdias  civis,  dos  nossos  pequenos  interesses 
continentaes  1 

As  colónias  africanas  eram  o  vazadouro  para 
onde  despejávamos  todas  as  fezes  que  tínhamos  no 
reino.  Com  degredados  as  povoávamos,  com  de- 
gredados formávamos  o  seu  exercito  e,  quando 
não  eram  degredados,  que  o  compunham,  eram 
batalhões  expedicionários  que  levavam  do  conti- 
nente os  mais  torpes  elementos  das  tropas  nacio- 
naes.  Em  1817,  quando  acabou  a  guerra  penin- 
sular, e  se  tratou  de  mandar  uma  expedição  para 
Montevideu,  organisou-se  com  a  flor  dos  nossos  re- 
gimentos, pozeram-se  á  sua  frente  officiaes  como 
Lecor,  Saldanha,  Azevedo  e  Claudino  Pimentel. 
Em  1835,  pouco  depois  de  ter  acabado  a  guerra 
da  liberdade,  quando  se  quiz  mandar  uma  expe- 
dição para  Cabo-Verde,  organisou-se  um  batalhão 
com  os  soldados  mais  ruins  e  indisciplinados  que 
havia,  não  no  exercito  vencedor  mas  no  exercito 
vencido.  Por  isso,  a  façanha  que  esse  batalhão 
praticou  foi  matar  todos  os  seus  officiaes,  á  ex- 


9 

cepção  de  um  ou  dois  alferes,  que  escaparam  por 
milagre  t 

Se  essas  "colónias  não  eram  senão  ninhos  de  es- 
cravos, e  era  a  escravatura  a  única  fonte  da  sua 
receita ! . . .  Sá  da  Bandeira  appareceu,(Jesse  animo 
generoso.  Promulgou  a  lei  de  1836  que  abolia  a  es- 
cravatura, e  procurou  fazel-a  cumprir.  Mas  todos 
os  interesses  feridos  se  sublevavam  contra  elle. 
Alcunhavam-n'o  de  utopista,  accusavam-n'o  de  ar- 
ruinar as  colónias.  Os  governadores  que  iam  para 
o  ultramar,  com  ordem  expressa  de  acabar  com 
o  odioso  trafico,  viam-se  obrigados  a  transigir,  ou 
a  fugir. 

Em  Moçambique,  o  marquez  de  Aracaty,  um 
Oeynhausen,  tinha  de  suspender  a  lei  de  1836> 
porque  os  escravistas  não  a  deixavam  executar. 
D.  António  de  Noronha  em  Angola,  depois  de  uma 
lucta  formidável,  tinha  de  fugir  quasi  para  a  Eu- 
ropa. Joaquim  Pereira  Marinho,  em  Moçambique, 
via-se  salteado  por  toda  a  espécie  de  calumnias, 
e  por  uma  guerra  ferocíssima,  porque  effectiva- 
mente  debellava  os  escravistas.  O  tratado  com  a 
Inglaterra  concluído  em  1842  impunha-nos  sacri- 
fícios enormes,  sujeitava-nos  a  continuados  vexa- 
mes, e  a  tudo  nos  resignávamos  para  cumprir 
lealmente  a  nossa  missão  emancipadora.  E,  em- 
quanto  o  cruzeiro  portuguez  se  mostrava  impla- 
cável com  os  navios  que  transportavam  escravos, 
emquanto  as  nossas  colónias  definhavam  por- 
que perdiam  uma  receita  que  não  era  substi- 
tuída, os  navios  inglezes  tomavam  os  negros  es- 
cravos não  para  os  libertar,  mas  para  os  levar  ás  Y 
suas  colónias,  e  estas  floresciam  com  o  trabalho  ^ 
gratuito  dos  braços  que  á  escravatura  deviam. 


10 


II 


De  vez  em  quando  algum  estadista,  algum  go- 
vernador do  ultramar  pensava  nas  colónias,  muito 
de  relance  comtudo,  que  as  guerras  civis  absor- 
viam-nos.  Bonitas  palavras  na  camará  de  vez  em 
quando*,  actos  raríssimos.  Apparecia  Pedro  Ale- 
xandrino em  Angola,  procurando  explorar  e  co- 
nhecer a  província,  implacável  com  a  escravatu- 
ra, mas  tentando  deveras  fazer  alguma  coisa  útil. 

Depois  em  1849  appareceu  também  um  homem 
dedicado,  enérgico,  de  verdadeira  iniciativa,  Ber- 
nardino Freire  de  Abreu  e  Castro,  que  era  o  ver- 
dadeiro fundador  da  colónia  de  Mossamedes.  Lu- 
ctava  com  innumeras  dificuldades,  mas  a  colónia 
lá  ia  rompendo  lentamente,  até  que  afinal  se  trans- 
formou na  villa,  que  é  hoje  uma  das  nossas  glo- 
rias ultramarinas.  Ha  quarenta  annos  ! 

E  pouco  mais  se  fazia !  Em  1852  appareceu 
um  decreto,  em  cujo  preambulo  se  dizia  pompo- 
samente que,  sendo  notório  e  incontestável  que 
innumeros  emigrantes  portuguezes  iam  procurar 
trabalho  no  Brazil,  sonhando  phantasticas  rique- 
zas e  não  encontrando  afinal  senão  a  miséria  e  a 
morte,  sendo  incontestável  ainda  que  os  madei- 
renses iam  procurar  em  Demerara,  nos  climas 
inhospitos  da  Guyana  ingleza,  as  febres  que  fa- 
ziam d'essa  colónia  britânica  um  cemitério  para 
os  portuguezes,  era  indispensável  que  se  tratasse 
de  derivar  para  as  nossas  colónias  africanas  essa 
emigração  nacional,  e  com  esse  louvável  intuito 
de  crear  um  imposto  nas  colónias  sobre  a  impor- 
tação dos  vinhos  e  aguardentes  de  Portugal.  Pa- 
lavras, e  só  palavras ! 


li 

Trinta  e  três  annos  depois  é  que  o  auctor  (Tes- 
tas linhas  fundava  n'esse  districto  de  Mossamedes, 
tão  claramente  indicado  para  a  colonisação  por- 
tugueza,  as  auspiciosas  colónias  Sá  da  Bandeira 
e  S.  Pedro  de  Ohibia ! 

III 

O  movimento  regenerador  punha  termo  êm 
Portugal  ás  discórdias  civis  que  tinham  alagado 
de  sangue  o  nosso  território,  e  paralysado  o  nosso 
progresso.  Inaugurou-se  a  politica  do  fomento, 
gastavam-se  com  plena  razão  rios  de  dinheiro 
para  fazer  estradas  no  paiz,  para  fazer  caminhos 
de  ferro,  mas  as  nossas  colónias  africanas  não  \( 
tinham  senão  um  mesquinho  quinhão  n'esse  ju- 
bileu do  progresso.  Pensou-se  em  tudo  que  não 
custasse  muito  dinheiro.  Auctorisou-se  a  explo- 
ração botânica  de  Angola  pelo  dr.  Welwitsch,  que 
foi  maravilhosa,  mas  que  de  certo  não  desequi- 
librou  o  orçamento.  Creou-se  o  conselho  ultrama- 
rino, que  deu  excellentes  indicações,  e  que  cha- 
mou um  pouco  a  attenção  publica  para  os  negó- 
cios coloniaes  ;  mas,  quinze  ou  dezeseis  annos  de- 
pois, o  sr.  Latino  Coelho  aboliu-o  porque  o  jul- 
gou dispendioso.  Appareceu  Sá  da  Bandeira  em 
1856  com  o  seu  velho  enthusiasmo  pelas  colónias, 
mas  sem  conseguir  arrancar  aos  seus  collegas  as 
sommas  necessárias  para  a  desenvolver.  Além 
disso  não  tinha  quem  o  ajudasse,  e  o  seu  espirito 
generoso,  mas  demasiadamente  theorico,  estragava 
as  suas  concepções  por  não  descer  ás  particu- 
laridades da  pratica.  Quiz  fundar  colónias  milita- 
res em  Huilla  e  em  Tete.  Foram  duas  povoações 
do  reino  da  Utopia. 


i2 

Prodigalisou  os  conselhos  e  as  sementes  aos  go- 
vernadores para  que  elles  fomentassem  differentes 
culturas. 

Para  que  servia,  quando  as  innumeras  e  enor- 
mes concessões  de  terrenos  que  se  faziam  no  ul- 
tramar ficavam  constantemente  desaproveitadas? 
O  enthusiasmo  do  paiz  pelas  colónias  tornou-se 
bem  patente  na  subscripçao  que  se  abriu  para  a 
colónia  de  Pemba.  Sá  da  Bandeira  logrou  pôr  á 
testa  d'essa  subscripçao  um  dos  grandes  capita- 
listas do  tempo,  Thomaz  Bessone,  fez  com  que 
todos  os  administradores  abrissem  subscripçoes 
nos  seus  concelhos.  Algumas  capitães  de  distri- 
cto  chegaram  a  dar  30$000  réis,  o  concelho  de 
Povoa  de  Varzim   subscreveu  com  dez  tostões! 

A  colónia  lá  foi  ainda  assim  para  Moçambique. 
Mas,  se  faltavam  a  Sá  da  Bandeira  os  subscri- 
ptores,  ainda  mais  faltavam  os  auxiliadores.  Os 
colonos  foram  mal  escolhidos,  peior  escolhido 
ainda  o  sitio  na  bahia  de  Pemba,  onde  não  havia  se- 
quer agua  potável.  Para  a  encontrarem  tinham  de  se 
affastar  muito  da  beira-mar.  Um  desastre  completo 
coroou   esta  malfadada  tentativa  de  colonisação. 

Se  não  conseguíamos  atinar  com  o  meio  de  dar 
ás  nossas  colónias  o  desenvolvimento  de  que  el- 
las  careciam,  em  compensação  continuávamos  a 
ser  fidelíssimos  á  nossa  missão  de  antí-escravistas. 
N'aquelle  território  da  Africa  Occidental  entre  5o, 
12'  e  8o,  em  que  a  Inglaterra  não  consentia  que 
puzessemos  o  pé,  fazia-se  odiosamente  escravatu- 
ra. Estava  no  poder  o  primeiro  ministério  rege- 
nerador, era  ministro  da  marinha  o  visconde  de 
Athouguia,  presidente  do  conselho  ultramarino 
Sá  da  Bandeira,  governador  de  Angola  Rodrigues 
de  Amaral,  commandante  da  estação  naval  Redo- 


13 

valho.  Pa? sou- se  por  cima  da  prohibição  da  In- 
glaterra, e  em  1855  occupou-se  audaciosamente  o 
Ambriz.  Dentro  de  uns  barracões  encontraram-se 
150  pretos,  que  esperavam  navio  escravista  para 
embarcar.  Era  flagrante  o  caso.  A  Inglaterra  não 
se  atreveu  a  protestar,  como  os  negociantes  in- 
glezes,  prováveis  proprietários  dos  150  escravos, 
se  não  atreveram  a  reclamal-os. 

Mas  nós  continuávamos  a  ser  apresentados  á 
Europa  como  incorrigíveis  escravistas,  e  a  Ingla- 
terra, a  pátria  de  Wilberforce,  continuou  a  osten- 
tar a  gloria  de  ser  ella  a  nação  chefe  na  brilhante, 
humanitária  e  redemptora  cruzada  contra  a  es- 
cravidão. 

Em  Moçambique  os  plantadores  das  colónias 
francezas  e  especialmente  os  da  ilha  da  Reunião,  an- 
tiga ilha  Bourbon,  tinham  tomado  o  costume  de  ir 
contractar  o  que  elles  chamavam  trabalhadores 
livres.  Por  mais  de  uma  vez,  nos  próprios  tribu- 
naes  da  ilha  da  Reunião  se  reconhecera  que  es- 
ses suppostos  trabalhadores  livres  não  eram  se- 
não escravos.  A  Inglaterra  chamava  a  attenção 
do  governo  portuguez  para  essa  escravatura  dis- 
farçada, que  se  fazia  em  Moçambique.  Ingenua- 
mente Sá  da  Bandeira,  que  acabara  de  promul- 
gar a  lei  de  1858,  abolindo  a  escravidão,  e  que  era 
o  complemento  da  sua  lei  de  1836,  prohibiu  que 
se  consentissem  em  Moçambique  os  suppostos 
contractos  de  trabalhadores  livres.  As  auctorida- 
des  portuguezas  informaram  o  sr.  de  Méquet, 
commandante  da  estação  naval  franceza,  dos  abu- 
sos que  os  navios  da  sua  nação  praticavam  e  que 
tinham  dado  origem  a  esta  prohibição  do  governo 
portuguez.  O  sr.  de  Méquet  respondeu  que  não 
consentiria  que  fossem  navios  francezes  a  Moçambi- 


14 

que  fazer  esses  contractos.  Comtudo,  n'esse  mesmo 
anno  de  1858  um  navio  de  guerra  portuguez  en- 
controu em  Quitangonha,  na  bahia  de  Conducia, 
uma  barca  franceza,  a  Charles-et-Georges,  a  fazer 
contractos  de  trabalhadores  pretos  livres.  Os  pre- 
tos interrogados  declararam  que  eram  levados  á  for- 
ça. A  barca  foi  apresada,  o  tribunal  competente 
proferiu  a  sentença  condemnatoria. 

O  governo  francez  de  então,  o  governo  de  Na- 
poleão iii,  reclamou  ;  nem  quiz  esperar  a  deci- 
são dos  tribunaes  superiores,  enviou  uma  esquadra 
ao  Tejo,  ordenou  que  o  seu  ministro,  o  marquez 
de  Lisle  de  Siry,  retirasse  com  o  pessoal  da  sua 
legação,  se  a  barca  Charles-et-Georges  não  fosse 
entregue.  Não  o  foi.  O  governo  do  duque  de 
Loulé  respondeu  simplesmente  :  Sois  os  mais  for- 
tes !  Levae-a.  E  um  navio  de  guerra  francez,  que 
tinha  um  nome  condigno  da  missão  que  desempe- 
nhava, o  Tubarão,  le  Requin,  levou  a  barca  Char- 
les-et-Georges. 

Tínhamos  appellado  para  a  Inglaterra,  para  a 
Inglaterra  que  fora  a  nação  que  protestara  contra 
os  suppostos  contractos  de  trabalhadores  livres, 
que  nos  levara  a  prohibil-os.  Encolheu  os  hom- 
bros,  e  disse-nos  :  Cedam  ! 

Onze  annos  depois,  em  18(39,  uma  corveta  de 
guerra  ingleza,  a  Daphne,  fazia  no  próprio  porto 
de  Moçambique  o  mesmo  que  a  Charles-et-Georges 
fizera  na  bahia  de  Conducia. 

Simplesmente,  em  vez  de  contractar  trabalha- 
dores livres,  contractava  criados  livres.  Era  go- 
vernador de  Moçambique  Fernando  da  Costa 
Leal,  que  fora  governador  de  Mossamedes,  e  que 
era  dotado  de  uma  rara  energia.  Intimou  o  com- 
mandante  da  Daphne  a  que  não  procedesse  as- 


15 

sim,  o  official  inglez  desdenhou  a  intimação,  Fer- 
nando Leal  observou-lhe  tranquillamente  que  a 
corveta  Daphne  não  sairia  com  os  seus  contra- 
ctados  do  porto  de  Moçambique,  senão  debaixo 
de  fogo  das  fortalezas  e  depois  de  ter  destruído 
os  meios  de  resistência  que  elle  tinha  á  sua  dis- 
posição. 

O  commandante  da  Daphne  teve  medo  do  es- 
cândalo que  isso  faria  na  Europa,  e  cedeu ! 

E  Portugal  continuou  a  ser  apresentado  pela  In- 
glaterra ao  mundo  como  um  paiz  essencialmente 
e  incorrigivelmente  escravista ! 

IV 

E  as  colónias  continuavam  no  seu  triste  aban- 
dono! Lá  se  percebia  emfim  que  em  Moçambique 
o  nosso  domínio  era  insignificante,  que  até  os  nos- 
sos portos  de  mar  estavam  á  mercê  dos  pretos,  e 
alguma  coisa  se  fazia  para  pôr  termo  a  essa  or- 
dem de  coisas.  Em  1861  tomávamos  Angoche, 
n'esse  mesmo  anno  reoccupavamos  o  Zumbo  aban- 
donado, mas  o  official  encarregado  de  tomar  pos- 
se, ao  sair  de  Tete,  não  podia  atravessar  a  Che- 
dima  e  o  Dande  senão  quando  lh'o  permittiam 
os  régulos  indígenas.  Em  1862  o  governador  de 
Lourenço  Marques  auxiliou  eíBcazmente  o  pode- 
roso regulo  Muzilla  nas  guerras  que  este  tivera 
com  o  seu  irmão  Mauéva,  e  obtinha  que  o  Muzilla 
reconhecido  se  declarasse  vassallo  de  Portugal ;  o 
governador  de  Quilimane,  Custodio  José  da  Silva, 
á  força  de  dedicação  e  de  coragem,  logrou  man-. 
ter  abertas  as  communicaçoes  entre  Quilimane, 
Senna  e  Tete,  mas  tudo  isto  eram  factos  isolados, 
não  havia  a  persistência  indispensável.  As  com- 


i6 

municaçoes  entre  Tete  e  Zumbo  continuaram  a 
ser  quasi  impossíveis  ;  a  vassallagem  de  Muzilla 
não  se  tornou  effectiva  ;  a  Zambezia,  um  momento 
pacificada  pelo  governador  de  Quilimane  Custodio 
José  da  Silva,  tornava  dentro  em  pouco  a  ser 
um  foco  de  desordens ;  Angoche  ficava,  apezar  de 
conquistado,  em  tristíssimas  condições  ;  a  vassalla- 
gem do  Muzilla  não  passou  de  ser  nominal,  e  não 
tardou  o  próprio  regulo  a  esquecel-a,  em  Sofala 
os  habitantes,  constantemente  vexados  pelas  incur- 
sões dos  pretos,  abandonavam  esse  antigo  padrão 
das  nossas  glorias,  e  refugiavam-se  em  Chiloane, 
para  onde  se  transferiu  também  a  sede  do  go- 
verno do  districto. 

De  vez  em  quando,  se  alguma  catastrophe  mais 
terrível  chamava  as  attenções  de  Portugal,  lá  se 
organisavam  uns  tristes  batalhões  expedicionários, 
que  iam,  tant  bien  qae  mal,  restabelecer  a  ordem 
em  Cassange,  em  Angola  ;  mas  nunca  a  feira  de 
Cassange  se  poderá  restabelecer,  as  communica- 
coes  entre  Loanda  e  Ambriz  eram  interceptadas 
pelo  chamado  marquez  de  Mossul,  e  emquanto  isto 
continuava  assim,  abandonado  e  decadente,  não 
se  parava  com  a  construcção  de  estradas  e  de  ca- 
minhos de  ferro  em  Portugal. 

Infelizmente,  no  meio  d7este  desleixo  absoluto, 
começavam  a  apparecer  na  Africa  Oriental  os 
viajantes  inglezes.  Livingstone  em  seis  annos  fi- 
zera trabalhos  que  tinham  excitado  enthusiasmo  em 
Inglaterra.  Nós  o  tínhamos  ajudado,  as  nossas  au- 
ctoridades  tinham-lhe  facilitado  os  estudos,  ti- 
nham-n^o  por  mais  de  uma  vez  salvado,  acolhe- 
ra-o  Silva  Porto,  o  grande  africanista  portuguez, 
com  a  mais  cordeal  hospitalidade,  tinham-lhe  dado 
as  mais  amplas  indicações  geographicas  os  por- 


17 

tuguezes  de  Tete  e  de  Quilimane,  e  nas  suas  Fia- 
gens  não  teve  para  nós  o  famigerado  doutor  se- 
não  palavras  de  ódio  e  de  malevolencia ! 

A  cubica  da  Inglaterra  fora  estimulada ;  nunca 
mais  deixaremos  de  a  encontrar  no  nosso  caminho. 


Como  se  fosse  muito  o  que  despendíamos  com 
as  colónias,  apparecem  n'este  momento  os  minis- 
térios das  economias.  Espalha-se  a  singular  dou- 
trina de  que  as  colónias  devem  viver  com  os  seus 
próprios  recursos,  supprimem-se  os  subsídios,  e 
ufanam-se  alguns  ministros  de  apresentar  um  or- 
çamento ultramarino  com  saldo  positivo.  O  sr. 
Latino  Coelho  obedece  muito  a  esse  principio. 
Rebello  da  Siltfa  decretou  leis  excellentes  com  ex- 
plendidos  relatórios,  mas  que  não  encerram  se* 
não  palavras  que  de  pouco  servem.  O  que  resulta 
de  tudo  isto  é  o  terrível  desastre  da  Zambezia. 
Batalhões  organisados  segundo  o  detestável  sys- 
tema  habitual,  com  tão  indisciplinados  elementos, 
que  já  na  metrópole  se  começaram  a  insubordi- 
nar, vão  succumbir  ás  intempéries  do  clima,  aos 
ataques  dos  pretos  selvagens.  As  cabeças  dos  seus 
officiaes  espetadas  na  aringa  do  bonga  são  o  triste 
documento  do  nosso  desastre.  Ficou  tumultuosa, 
apezar  de  uma  pacificação  apparente,  só  conse- 
guida ainda  assim  depois  de  muitos  annos,  aquella 
rica  região  que  orla  o  Zambeze.  O  rendimento 
da  província  é  insignificante. 

Alguma  coisa  se  vae  fazendo  ainda  assim  a  fa- 
vor das  colónias.  A  ilha  de  S.  Vicente  de  Cabo- 
Verde  tinha  uma  situação  geographica  tão  excel- 
lente,  que  os  paquetes  transatlânticos,  apezar  de 


48 

tudo,  a  procuraram,  e  o  governo  conseguiu  que 
o  cabo  submarino  do  Brazil  tivesse  em  S.  Vicente 
uma  estação.  Estabeleceu-se,  com  subsidio  pesa- 
do, uma  carreira  de  vapores  para  a  Africa  Occi- 
dental, mas  como  o  governo  luctou  primeiro  que 
se  resolvesse  a  fazer  esse  sacrifício !  E  comtudo, 
apezar  de  todo  o  abandono,  as  colónias  eram  taes 
que  poucos  annos  depois  já  a  navegação  se  fazia 
sem  subsidio. 

Depois  de  Sá  da  Bandeira  era  Andrade  Corvo 
o  primeiro  ministro  que  se  occupava  das  colónias 
com  verdadeiro  amor.  Foi  elle  que  completou  a 
obra  redemptora  de  Sá  da  Bandeira,  acabando 
definitivamente  e  de  facto  com  a  escravidão  no 
ultramar,  foi  elle  emfim  que  teve  a  coragem  de 
reclamar  para  as  colónias  os  melhoramentos  que 
tão  prodigamente  se  espalhavam  na  metrópole,  e 
de  organisar  as  expedições  de  obras  publicas,  que, 
apezar  dos  defeitos  da  execução  d;essa  medida, 
fizeram  ás  colónias  um  bem  infinito.  Mas  que 
tempo  se  perdera,  e  que  tempo  ainda  se  perdeu 
depois,  porque  os  melhoramentos  nas  colónias  fo- 
ram feitos  aos  sacões,  sem  persistência,  sem  amor  ! 

Basta  lembrarmos  que  o  paiz  soube  com  a  má- 
xima indiíferença  que  Portugal  assignára  com  a  re- 
publica da  Africa  do  Sul  um  tratado  de  limites, 
pelo  qual  se  restringia  de  um  modo  extraordiná- 
rio o  nosso  districto  de  Lourenço  Marques,  aban- 
donando sem  razão  nem  motivo,  sem  pressão  ao 
menps  de  uma  nação  forte,  ricos  terrenos  aurife- 
ros. 

VI 

Ao  menos  agora  pensava-se  mais  nas  colónias, 
e  concorrera  também  para  isso  a  fundação  em 


19 

1875  da  benemérita  Sociedade  de  Geographia; 
mas  que  desconhecimento  dos  nossos  interesses 
coloniaes,  que  desprezo  por  esses  assumptos  se 
manifestou  no  parlamento,    quando  discutiu   em 

1879  a  concessão  da  Zambezia  feita  ao  intrépido 
explorador  Paiva  d'Andrada,  e  em  1881  o  tratado 
de  Lourenço  Marques  assignado  com  a  Inglaterra ! 
Nem  uma  coisa,  nem  outra  eram  acceitaveis,  mas 
a  camará  ficava  na  negação  sem  lembrar,  nem 
acceitar  os  alvitres  que  se  propozessem  para  se 
substituir  o  que  se  rejeitava. 

Quando  um  desastre  fulminava  as  colónias,  lá 
vinha  um  movimento  de  sobresalto,  e  foi  assim 
que  o  desastre  de  Bolor  na  Guiné  levou  a  camará 
a  dar  ao  governo  os  fundos  necessários  para  se  to- 
marem algumas  providencias  urgentes,  para  se  se- 
parar a  Guiné  de  Cabo- Verde,  e  cuidar  um  pouco  da 
sua  guarnição.  Caia  porém  tudo  na  apathia  antiga. 

Assim  fora  em  1877,  graças  á  iniciativa  de  An- 
drade Corvo,  que  fizera  passar  na  camará  uma  lei 
que  auctorisou  o  governo  a  gastar  30  contos  com  ex- 
ploração scientifica,  que  se  organisou  a  gloriosa  ex- 
pedição em  que  appareceram  pela  primeira  vez  os 
nomes  de  Serpa  Pinto,  de  Capello  e  de  Ivens.  Em 

1880  voltavam  os  exploradores,  Serpa  Pinto  tendo 
atravessado  a  Africa,  Ivens  e  Capello  tendo  feito 
explorações  importantíssimas  nos  sertões  de  Ben- 
guella.  Foram  acolhidos  com  extraordinário  en- 
thusiasmo,  mas  por  ahi  se  ficou.  Só  annos  depois 
se  retomaram  as  explorações. 

Houve  também  por  esse  tempo  uma  nova  tenta- 
tiva de  colonisação,  tão  infeliz  como  a  da  colónia 
de  Pemba.  Foi  devida  ao  sr.  Júlio  de  Vilhena,  que, 
se  não  pôde  ver  executada  com  felicidade  a  sua 
idéa,   ao  menos   formulou  um  excellente  regula- 


20       . 

mento  de  coionisação,  que  de  muito  serviu  aos 
seus  successores. 

Em  Moçambique,  entretanto,  a  semente  deitada 
á  terra  por  Livingstone  ia  fructificando.  Os  mis- 
sionários escocezes  invadiam  o  interior  da  nossa 
colónia  africana,  fundavam  o  estabelecimento  de 
Blantyre,  e  nós,  com  a  amabilidade  que  sem- 
pre nos  distinguiu,  não  só  os  ajudávamos  mas  até 
quasi  que  reconhecíamos  a  sua  independência,  es- 
tipulando na  pauta  de  Moçambique  um  simples 
imposto  de  transito  de  3  °/o  para  as  mercadorias 
que  fossem  para  a  região  dos  Lagos,  como  se  essa 
região  fosse  estrangeira!  Sentimos-lhe  hoje  as  con- 
sequências. 

Os  TartufFos  escocezes  acceitaram  com  humil- 
dade os  favores,  e,  quando  emfim  os  quizemos  pôr 
fora,  exclamaram  arrogantes  : 

Cest  à  vous  cTen  sortir  ! 
VII 

Precisa  o  auctor  d'estas  rápidas  linhas  de  fal- 
lar  agora  da  sua  própria  obra,  mas,  como  pelas 
circumstancias  que  então  houve,  bastantes  aconteci- 
mentos importantes  se  deram,  temos  de  os  relatar 
com  a  brevidade  a  que  nos  temos  cingido. 
X  Foi  no  período  de  1883  a  1885  que  contractou 
a  ligação  telegrapbica  de  todas  as  nossas  colónias 
da  Africa  Occidental  com  a  metrópole.  A  ilha  de 
S.  Vicente  era  ligada  por  um  cabo  submarino  á 
de  S.  Tiago,  esta  a  Bolama  e  Bolama  a  Bissau. 
Da  Guiné  seguiu  o  cabo  para  a  ilha  do  Príncipe, 
d'aqui  para  S.  Thomé,  de  S.  Thomé  para  Loan- 
da,  Benguella  e  Mossamedes,  e  de  Mossamedes 


21 

para  o  Cabo  da  Boa  Esperança.  O  telegrapho  está 
funccionando. 

Contractou-se  o  caminho  de  ferro  de  Loanda  a 
Ambaca,  que  já  tem  varias  secções  em  explora- 
ção. 

Contractou-se  o  caminho  de  ferro  de  Lourenço 
Marques  á  fronteira  do  Transvaal,  e  essa  linha 
férrea  está  em  exploração  também. 

Construiram-se  varias  pontes  importantes  em 
Angola  e  em  S.  Thomé. 

Contractou-se  e  realisou-se  o  abastecimento  de 
aguas  de  Loanda,  e  o  abastecimento  de  aguas  da 
cidade  do  Mindello  de  Cabo- Ver  de. 

Retomaram-se  as  tentativas  de  colonisação  em 
Mossamedes,  e  doesta  vez  com  resultado  melhor. 
Estão  florescentes  as  colónias  madeirenses  de  Sá 
da  Bandeira  e  de  S.  Pedro  de  Chibia ;  e,  se  o  ca- 
minho de  ferro  agora  projectado  se  realisar,  serão 
dentro  em  poucos  dias  núcleos  poderosos  de  colo- 
nisação. 

A  conferencia  de  Berlim  resolveu  as  questões 
do  Zaire.  Podemos  occupar  emfim  esse  território 
comprehendido  entre  5o  12'  e  8o  de  latitude.  Ti- 
vemos  de  acceitar,  porém,  o  domínio  de  um  novo 
Estado  africano,  o  Estado  livre  do  Congo,  na  mar- 
gem direita  do  Zaire.  Reconheceu-se-nos  comtudo 
a  posse  de  territórios  que  tínhamos  recentemente 
adquirido  e  a  que  nunca  tínhamos  aspirado,  os  de 
Cacongo  e  Massabi. 

D'ahi  proveiu  organisar-se  o  novo  districto  do 
Congo,  estabelecendo- se  por  um  contracto  a  na- 
vegação regular  do  Zaire,  e  comprando-se  duas 
canhoneiras  e  uma  lancha  para  a  policia  do  rio. 

Urgente  era  acudir  á  Africa  Oriental,  onde  os 
estabelecimentos  inglezes  iam  tomando  um  des- 
2 


22 

envolvimento  assustador  pelo  lado  dos  Matabeles. 
Por  isso  se  reoccupou  Manica,  ha  muito  abando- 
nada, e  alli  se  organisou  um  novo  districto.  Por 
isso  também  se  aproveitou  a  morte  do  Muzilla, 
para  reatar  com  seu  filho  e  successor,  Gungunha- 
na,  os  laços  de  relações  esquecidas,  tornando-as 
porém  d'esta  vez  mais  solidas,  porque  se  fez  o 
tratado  em  Lisboa  e  se  estabeleceram  residentes 
nas  terras  do  regulo. 

Outra  questão  importante  havia  a  resolver  em 
Moçambique,  que  estava  ha  quarenta  annos  pen- 
dente. O  nosso  visinho  pelo  lado  do  Norte,  o  sul- 
tão de  Zanzibar,  considerava  como  sua  a  bahia 
de  Tungue,  e  ahi  estabelecera  postos  aduanei- 
ros, e  todos  os  signaes  de  domínio  contra  nós.  Tí- 
nhamos sempre  protestado,  mas  não  conseguíra- 
mos obrigal-o  a. desistir  da  sua  persistente  inva- 
são, até  que  em  janeiro  de  1886  o  sr.  Augusto 
de  Castilho,  governador  de  Moçambique,  fezreap- 
parecer  na  contestada  bahia  a  bandeira portugueza. 
Era  o  principio  da  reoccupação,  que  no  tempo  do 
ministério  immediato  foi  concluída. 

Não  aconteceu  o  mesmo  ao  protectorado  portu- 
guez  estabelecido  em  1885  na  costa  de  Dahomé, 
que  o  ministério  immediato  aboliu.  Era  uma  idéa 
sympathica  a  de  fazer  com  que  Portugal  gran- 
geasse  a  gloria  de  abolir  aquelles  sacrifícios  hu- 
manos, que  tornam  tão  horrorosamente  legendá- 
rio o  reino  de  Dahomé.  Pôde  ser  que  o  rei  bár- 
baro e  pérfido,  de  quem  estão  agora  os  francezes 
justamente  queixosos,  nos  trahisse  como  os  trahiu 
a  elles,  mas,  emquanto  durou  o  protectorado  por- 
tuguez,  e  bem  pouco  tempo  foi,  não  se  fizeram  as 
sinistras  carnificinas. 

Finalmente,  retomou-se  o  caminho  das  explora- 


23 

coes.  Em  1884  Capello  e  Ivens  voltaram  á  Afri- 
ca, atravessarain-n'a  de  occidente  a  oriente,  e  re- 
gressaram gloriosamente  á  pátria  em  1885,  e  n'esse 
mesmo  anno  foram  Serpa  Pinto  e  Augusto  Cardoso 
explorar  a  região  entre  o  Cabo  Delgado  e  o  Nyas- 
sa,  n'esse  mesmo  anno  ainda  partiu  Henrique  de 
Carvalho  a  fazer  a  sua  tão  profícua  e  tão  gloriosa 
exploração  de  Muata-Yanvo.  Os  Stanley  e  os  Wiss- 
mann  sentiam  por  toda  a  parte  o  echo  da  passa- 
gem dos  exploradores  portuguezes. 

VIII 

Assim  a  nossa  politica  colonial  africana  não 
tivera  a  persistência  indispensável  para  o  fim  a 
que  ella  devia  aspirar.  Quando  n'essa  vastíssima 
província  de  Moçambique  era  indispensável  occu- 
par  fortemente  os  pontos  essenciaes  para  o  do- 
mínio, e  manter  na  nossa  obediência  os  régulos 
que  tão  facilmente  sempre  nos  seguiram,  vemos 
que  em  1861  reoccupavamos  o  Zumbo,  abando- 
nado havia  muito  e  em  1862  fazíamos  o  tratado 
com  o  Muzilla,  e  só  vinte  e  três  annos  depois,  em 
1884,  reoccupavamos  Manica,  e  em  1885  fazía- 
mos um  mais  solido  tratado  com  o  Gungunhana ; 
quando  tão  necessário  era,  para  a  administração, 
para  o  commercio,  para  a  agricultura,  sulcar  es- 
ses sertões  com  a  locomotiva  que  leva  a  toda  a 
parte  a  ordem,  a  prosperidade*  só  em  1884  e  1885 
se  faziam  os  caminhos  de  ferro  essenciaes  de  Lou- 
renço Marques  e  de  Ambaca  ;  finalmente,  quando 
a  colonisação  persistente,  constante,  era  o  grande 
meio  efficaz  de  tornarmos  esses  vastos  territórios 
solidamente  portuguezes,  só  em  1849  se  fundava 
a  colónia  de  Mossamedes,  e  só  36  annos  depois 


u 

em  1885  se  fundavam  as  colónias  Sá  da  Bandeira 
e  S.  Pedro  de  Chibia. 

Quando  a  exploração  perseverante  e  scientifica 
do  interior  da  Africa  tinha  de  ser  o  complemento 
da  nossa  missão  dominadora,  deixávamos  os  nos- 
sos negociantes,  como  Silva  Porto,  fazer  viagens 
admiráveis,  os  nossos  mestiços  percorrer  o  conti- 
nente negro  em  todos  os  sentidos,  sem  os  fazer- 
mos seguir  por  homens  que  soubessem  conquistar 
esse  continente  para  a  sciencia,  e  esse  commercio 
para  a  nossa  bandeira,  só  em  1877  se  lançou  a 
primeira  expedição  scientificamente  organisada, 
só  sete  annos  depois  em  1884  se  lançaram  outras 
três  expedições  scientificas  de  maravilhosos  resul- 
tados. 

E  entretanto  pairava  em  torno  das  nossas  coló- 
nias a  cubica  estrangeira,  arrojava-se  a  Europa 
inteira  á  partilha  da  Africa,  e  nós  corríamos  pe- 
rigo de.  ser  excluidos.  Os  tratados  de  1886  com 
a  França  e  com  a  Allemanha  impozeram-nos  sa- 
crifícios relativamente  pequenos  a  troco  do  reco- 
nhecimento de  vastos  domínios  em  Africa  Occi- 
dental, mas  na  Oriental  é  que  estava  o  perigo, 
porque  ahi  affloravam  o  oiro  e  os  diamantes  e  lu- 
zia a  cubica  nos  olhos  da  Inglaterra.  O  perigo  es- 
timulou-nos  e  continuou-se,  depois  de  se  perder 
algum  tempo,  no  caminho  em  que  se  entrara  em 
1884 ;  novas  expedições  se  tentaram,  alargou-se 
um  pouco  o  districto  de  Manica,  fundou-se  o  dis- 
tricto  do  Zumbo,  mas  já  tarde.  A  Inglaterra  inti- 
mou-nos  brutalmente  a  parar.  Não  contamos  o  res- 
to ;  a  historia  é  recente  e  o  coração  ainda  nos  verte 
sangue. . . 

Ahi  está  em  breves  traços  a  historia  da  Africa 
portugueza  nos  cincoenta  e  seis  annos  de  regimen 


25 

constitucional.  Preferiríeis  ura  romance?  Não  o 
pôde  haver  mais  dilacerante  do  que  este  nosso  ro- 
mance colonial,  este  romance  africano,  truncado, 
abandonado,  de  que  apenas  foram  escriptos  alguns 
capítulos  por  uns  poetas  que  se  apaixonaram,  por 
esse  épico  ideal.  Que  os  corações  patrióticos  dos 
que  me  lêem  pulsem  com  a  narrativa  do  que  fize- 
mos e  do  que  podíamos  fazer,  e  que  se  apaixonem 
também  por  esse  ideal  resplandecente.  Isso  bas- 
tará para  que  resurjâmos.  O  que  nos  tem  faltado 
é  a  boa  vontade  persistente  dos  governos,  e  o 
sincero  enthusiasmo  do  povo. 


NUVEM     DESFEITA 


NUVEM  DESFEITA 


Nascera  na  província  a  Margarida. 

Os  pães  eram  dois  lavradores  obtusos  mas  ho- 
nestos, creados  na  forte  communicação  da  terra, 
e  envigorecidos  no  contacto  saudável  da  natureza. 
Quando  lhes  veio  aquella  pequenita,  um  anjo  que 
surgia  no  seu  lar  sereno,  como  que  a  doiral-o  com 
um  raio  de  luz,  pensaram  em  mandal-a  educar 
para  a  capital  se  a  pequena  mostrasse  tendências. 
Nem  um  nem  outro  sabiam  ler,  e  isso  vexara-os 
algumas  vezes  ;  além  d'isso  o  sr.  prior  estava  sem- 
pre a  dizer  que  quem  não  mandava  ensinar  os 
filhos  era  indigno  de  ser  christão  porque  o  en- 
sino —  dizia  —  revelava  a  todos  faculdades  novas, 
e  melhorava,  e  aperfeiçoava  as  existentes.  Elle 
bem  sabia  que  ás  vezes  as  famílias  eram  pobres 
e  precisavam  dos  filhos  em  casa  para  vigiar  os 
gados,  para  amanhar  as  terras,  para  a  debulha, 
para  a  poda,  para  a  colheita,  n'uma  palavra, 
para  os  trabalhos  do  campo ;  mas  isso  chegava  a 
ser  abuso,  tornava-se  uma  exploração  ignóbil  das 
forças  das  creanças,  e  então,  quando  se  era  rico, 
não  havia  a  minima  desculpa ;  por  isso  quem  se 
eximisse  ao  cumprimento  de  tão  séria  obrigação 


30 

não  devia  ser  bem  visto  da  sociedade,  como  não 
era  bem  visto  de  Deus,  que  creára  a  luz  para  to- 
dos —  rematava. 

Ora  o  sr.  prior  gosava  da  máxima  influencia 
na  casa  dos  lavradores,  que  o  respeitavam  e  que 
lhe  pediam  conselho. 

E  para  lhe  mostrarem  que  tencionavam  fazer 
o  que  elle  dizia  pensavam  em  dar  á  filha,  se  ella 
vivesse  e  fosse  esperta,  uma  educação  esmerada. 

O  parocho  tinha  já  sido  consultado  e  confirma- 
ra, que  faziam  muito  bem,  que  não  podiam  em- 
pregar melhor  a  sua  fortuna,  que  até  Nosso  Se- 
nhor os  abençoaria.  E  apoiava-os  com  toda  a  elo- 
quência —  e  citações  de  textos. 

Logo  pois  que  a  creancita  fez  seis  annos  foi  o 
próprio  prior  que  lhe  quiz  ensinar  a  ler,  não  lhe 
custava,  era  até  uma  distracção  —  aífirmava.  E 
começou. 

Coisa  notável,  a  creança  tinha  uma  intelligen- 
cia  clara,  fora  do  vulgar,  até,  o  que  fizera  dizer 
uma  vez  ao  escrivão  de  fazenda,  paraphraseando 
uma  saída  celebre,  que  a  filha  tinha  saccado  le- 
tras sobre  a  intelligencia  dos  pães,  alludindo  á 
estupidez  d'estes. 

Aprendeu,  portanto,  sem  custo,  e  dentro  em 
pouco  lia  já  tão  intelligivelmente,  que  o  bom  do 
parocho  andava  maravilhado  e  contava  a  todos 
aquelle  prodígio. 

—  Homem  —  diziam-lhe,  isso  era  bom  apro- 
veitar, mandem-n'a  para  a  capital. 

O  Thomé  da  tenda,  porém,  assegurava  que  era 
tolice,  que  não  fizessem  tal ;  os  que  aconselhavam 
isso  tinham  minhocas  na  cabeça  ;  depois  a  rapa- 
riga voltava  para  casa  cheia  de  soberba,  não  que- 
ria ajudar  a  família  em  certos  trabalhos,  quem  sabe 


31 

se  não  viria  mesmo  a  ter  vergonha  (Telia,  se  não 
lhe  daria  na  tineta  fugir,  —  o  diacho . . . 

—  Oh  !  Thomé  você  é  agoirento,  exclamava  o 
prior ;  logo  havia  de  succeder  isso  tudo  á  filha 
do  Luiz  e  da  Joaquina  !  tão  boa  gente,  tão  temente 
a  Deus  ! . . . 

O  Thomé,  porém,  não  ficava  vencido,  contava 
historias,  citava  casos  acontecidos  para  confirmar 
a  sua  opinião.  Lembrava-se  perfeitamente  da  fi- 
lha do  João  da  Encosta,  que  a  senhora  fidalga  ti- 
nha trazido  comsigo,  até  no  trem,  e  a  quem  man- 
dara educar  como  a  uma  princeza,  que  depois 
quasi  sentia  horror  pela  mãe  porque  não  se  dava 
á  estimação  e  dizia  prove.  E  qual  fora  o  resultado 
—  perguntava  com  ar  triumphante  ? 

—  Foi  fiar-se  nos  carapetoes  d'esse  patife  do 
Lobo  que  para  ahi  viera  lá  de  Coimbra  e  que  a 
obrigou  a  fugir  de  casa. 

— Olhe,  sr.  prior,  mulher  caseira,  e  nada  de 
Snuras. 

O  padre  ficava  confuso,  não  sabia  bem  que 
responder,  mas  não  queria  dar-se  por  vencido  ; 
por  isso  insistia  dizendo  que  era  de  má  condição 
a  que  se  tresmalhava,  e  não  lá  por  ter  aprendido. 

Ella  podia  ser  honesta  ;  quando  viesse,  estabele- 
ceria um  collegio,  e  ensinaria  a  rapaziada  do  lo- 
gar,  depois  elle  lá  estava  para  aconselhal-a,  se  vi- 
vesse. A  religião  era  uma  grande  arma  contra  es- 
ses males  e  elle  tinha  mesmo  muita  fé  no  coração 
da  pequenota. 

#      # 

Entretanto  o  prior  já  não  tinha  que  ensinar  á 
discípula  e  até  um  dia  dissera  a  rir  a  Luiz,  que 
lhe  pedia  informações  da  filha: 


32 

—  Olhe,  agora  homem,  só  se  for  latim  ou  theo- 
logia,  que  o  mais,  a  pequena  sabe  e  bem.  Ella  lê, 
ella  escreve,  ella  somma,  ella  até  desenha,  Luiz. 
E'  o  que  lhe  digo,  até  desenha. 

E  o  bom  pae,  com  um  ar  imbecil  e  espanta- 
do, ficava  a  olhar  para  o  prior,  agarrando-se-lhe 
por  fim  á  sua  mão  polpuda  e  branca,  beijando-a 
muito. 

Havia  de  ir  para  Lisboa,  dissera,  ao  menos  não 
queria  que  lhe  succedesse  o  mesmo  que  a  elle, 
que  já  muita  vez  tinha  sido  illudido,  por  não  sa- 
ber ler  nem  escrever. 

Logo  que  Margarida  fez  14  annos,  Luiz  veie 
pois  com  ella  á  capital  e  metteu-a  n'um  collegio 
que  lhe  recommendára  o  escrivão  de  fazenda. 

A  despedida  fora  triste ;  Margarida  era  muito 
meiga  e  gostava  dos  seus.  Quando  o  pae  se  pu- 
nha a  fital-a,  bondoso  e  enlevado,  e  o  via  algu- 
mas vezes  limpar  uma  lagrima  furtiva,  corria  a 
abraçal-o  e  ficava-lhe  momentos  suspensa  do  pes- 
coço a  olhal-o,  a  olhaUo  muito. 

Outras  vezes  Luiz  pedia-lhe  para  ler,  e  ella 
então,  com  uma  doçura  captivante,  vinha  sen- 
tar-se-lhe  ao  pé  e  começava  a  ler  algumas  histo- 
rias que  o  escrivão  ou  o  parocho  lhe  emprestavam. 

—  Como  eu  gostava  de  ler  assim,  dizia  o  po- 
bre pae,  ao  mesmo  tempo  envergonhado  e  orgu< 
lhoso  da  filha. 

Margarida  parava  de  ler,  ficava  um  momentd 
pensativa,  e  uma  occasião  disse-lhe : 

—  Quer  o  pae  aprender  commigo  ?  Eu  bem  col 
nheço  que  não  sei  ensinar  como  o  sr.  padre  prióiT 
me  ensinou,  mas  se  o  pae  quizesse. . . 

E  receosa  de  que  elle  se  negasse,  começou 
dizer-lhe  : 


33 

—  Olhe  é  muito  fácil,  veja :  isto  é  um  a,  isto 
iqui  é  um  i,  aquella  acolá  um  tanto  maiorsinha, 
im  m.  E  leu-lhe  assim  uma  linha  do  livro  que 
;inha  aberto. 

Por  fim,  Luiz  decidiu- se  a  receber  todas  as  noi- 
es  uma  lição  de  Margarida. 

Coitado,  o  bom  homem  não  se  adiantava  mui- 
:o,  mas  ao  fim  de  algum  tempo  conseguira  ler, 
ímbora  de  vagar,  e  assignava  o  nome.  O  parocho 
coadjuvava  a  filha  nas  lições,  e  até  gostava  de  ver 
,quella  applicação  da  pequena. 

Por  isso  Margarida  se  entristeceu  com  a  vinda 
)ara  Lisboa.  Não  conhecia  ninguém,  ia  para  uma 
;asa  estranha,  e  só  veria  a  mãe  e  o  pae  por  oc- 
asião das  ferias.  Afinal  para  que?  Perguntava. 

—  Para  aprenderes  e  saberes  muito,  minha  fi- 
lia, dissera-lhe  o  pae. 

— Quero  que  não  tenhas  vergonha  das  nieni- 
ías  Sás.  E  abraçava-a. 

Margarida,  porém,  lembrava-se  das  bellas  noi- 
es  que  passara  na  província,  das  caricias  do  pae, 
las  observaçães  da  mãe  quando  Luiz  se  engana- 
ra, o  que  a  levava  sempre  a  proferir  a  phrase 
entenciosa :  «burro  velho  não  aprende  línguas» 
—  finalmente,  evocava  na  sua  pequenina  imagi- 
íação  todas  as  doces  recordações  da  sua  infância, 
i  sentia  pungil-a  uma  dor  minaz. 

Quando  o  pae  a  deixou  entregue  aos  cuidados 
e  D.  Leocadia,  a  directora  do  collegio,  ficou  a 
ihorar  por  muito  tempo,  até  que  o  somno  a  pros- 
rou. 

"No  primeiro  dia  em  que  fez  a  sua  entrada  na 
tuia,  aquelle  pequeno  mundo  de  raparigas  traves- 
as  e  falladoras,  que  a  miravam  segredando,  cau- 
ou-lhe  susto,  e  fez-se  corada. 


34 

Fugiu  para  um  canto,  com  medo,  e  foi  preciso 
que  a  mestra  a  chamasse  acarinhando-a,  fazendo- 
lhe  a  apresentação  de  algumas  da  sua  edade,  e  di- 
zendo-lhe  com  um  ar  amigo  : 

—  Que  se  risse,  que  brincasse,  ninguém  lhe  fa- 
zia mal. 

Margarida  foi-se  animando  lentamente.  Como 
era  bonita  e  alem  d'isso  tinha  no  rosto  uma  mei- 
guice communicativa  e  attrahente,  as  condiscípu- 
las não  implicaram.  Depois,  não  ia  precisamente 
ignorante.  Sabia  ler,  sabia  coser,  sabia  desenhar 
um  pouco,  e  em  contas  era  uma  perfeição,  esclare- 
cera o  escrivão  de  fazenda.  Não  fazia  portanto  má 
figura. 

Um  mez  depois  já  lhe  chamavam  todas  a  Mar- 
garida bonita,  e  nem  uma  só  lhe  queria  mal. 
Quanto  a  progressos  fizera-os  sensíveis,  come- 
çando já  a  bordar  e  a  aprender  um  pouco  de  fran- 
cez,  para  que  tinha  uma  grande  queda  —  especia- 
lisára  o  professor. 

Margarida  escrevia  a  miúdo  á  familia,  infor- 
mando-a  e  dizendo  que  já  estava  mais  contente, 
mas  que  se  não  esquecessem  de  mandal-a  buscar 
nas  ferias. 

O  pae  não  se  esqueceu.  Quando  se  approximou 
o  Natal,  veio  elle  mesmo  buscal-a.  Na  aldeia  fí- 
zeram-lhe  muita  festa,  vinham  vel-a  de  proposi« 
to,  e  todos  concordavam  —  que  estava  muito  bo 
nita,  a  pequena. 

O  próprio  Thomé  ficara  descoroçoado  pela  sua- 
vidade das  maneiras  de  Margarida. 

—  Muito  boa  rapariguinha,  affiançára.  Deus  lhe 
desse  a  .sorte  que  merecia  e  que  não  a  estragas 
sem  lá  na  cidade. 

Margarida  quando  regressou  ao  collegio  vinha 


35 

feliz  e  alegre,  e  lançou-se  com  ardor  ao  estudp. 
Em  pouco  tempo  começara  piano  e  já  a  mestra 
classificava  como  das  melhores  discípulas,  tra- 
duzia o  seu  trecho  de  francez,  e  para  prova  de 
adiantamento  em  bordado  trabalhava  n'umas  chi- 
nellas  para  trazer  á  mãe,  que  deviam  ficar  primo- 
rosas, —  prognosticavam.  E  ficaram,  tirante  o  ta- 
manho, que  não  estava  em  harmonia  com  as  di- 
mensões dos  pés  da  Joaquina,  uns  bons  pés  lar- 
gos e  sólidos  de  lavradora. . .  Mas,  nem  por  isso 
se  inutilisaram ;  pozeram-se  na  sala,  como  exem- 
plar comprovativo  do  adiantamento  de  Marga- 
rida... 

E  n'estas  prendas  amiudadas  foram  decorrendo 
os  mezes,  até  que  pelo  consenso  de  todos  se  re- 
solveu considerar  terminada  a  educação  da  pe- 
quena, que  voltou  para  casa. 


Tinha  então  dezesete  annos.  Estava  formosís- 
sima, alta,  elegante  e  as  cores  sadias  e  vivas  que 
he  carminavam  o  sangue  e  lhe  davam  a  princi- 
pio o  aspecto  de  uma  bella  provinciana  robusta, 
íaviam-se-lhe  esbatido  levemente,  dando-lhe  um 
tom  fino  e  suave,  de  menina  longamente  formada 
cia  atmosphera  tépida  das  cidades. . . 

Não  era  porém  uma  doente,  uma  chlorotica  ou 
ima  anemica ;  simplesmente  como  que  a  pelle  se 
he  adelgaçara,  opalisando-se  sob  a  acção  da  luz 
;emperada  em  que  se  desenvolvera . . . 

No  seu  logar  fez  sensação,  e  aos  domingos 
juando  acompanhava  a  família  á  missa,  mais  do 
jue  um  rapaz  casadouro  a  contemplava  ancioso.. . 

Ella,  porém,  não  manifestava  preferencias ;  dir- 


36 

se-hia  que  o  seu  coração  estava  longe  e  se  dei- 
xai a  prender  na  aza  ligeira  de  algum  sonho  do- 
cemente acariciado  em  segredo . . . 

No  emtanto,  o  irmão  de  um  dos  melhores  ami- 
gos do  Luiz,  sentia-se  cada  vez  mais  apaixonado 
por  ella. 

Todas  as  manhãs  o  pobre  rapaz  fazia  três  lé- 
guas a  pé  para  vir  vel-a  á  varanda  em  que  ella 
costumava  demorar-se  um  bocado,  e  era  como  se 
o  próprio  Deus  lhe  houvesse  sorrido,  quando  ella 
amavelmente  retribuía  o  seu  comprimento, . . 

Sincero  e  simples,  o  pobre  namorado,  um  lavra- 
dor modesto,  mas  activo,  via  em  Margarida  o  sol 
da  sua  existência  inteira...  E  como  não  sabia 
dissimular,  uma  tarde  procurou  o  Luiz,  e  disse- 
lh'o  francamente  —  que  estava  cada  vez  mais  en- 
feitiçado pela  filha  e  que  se  ella  se  agradasse  d'elle 
e  o  pae  levasse  em  gosto,  desejaria  casar. 

O  Luiz  levava  em  gosto.  Além  d'isso  via  Mar- 
garida a  aquecer  todos  os  solteiros  do  sitio,  teve 
medo  e  ambicionando  quanto  antes  resolver  uma 
cousa  que  afinal  tinha  de  ser  —  dizia  para  si  — 
assentiu,  que  sim,  que  por  seu  lado  lhe  agradava 
essa  união,  e  prometteu  convencer  Margarida. 

Não  foi  difficil  o  encargo.  A  filha  convenceu-se 
depressa,  e  conveiu  também  que  não  era  mau  par- 
tido o  Guilherme. 

Bem  no  intimo  não  gostava  muito  d'elle,  e  tal- 
vez até  lhe  fosse  indifferente,  mas  educada  no 
principio  de  uma  obediência  constante  a  todos  os 
desejos  do  pae,  e  percebendo  que  era  esse  o  que 
elle  escolhera  nem  discutiu  sequer. 

Quando  o  Luiz  dera  a  Guilherme  a  noticia  do 
assentimento  de  Margarida  o  rapaz  estarreceu, 
os  olhos  injectaram-se-lhe,  e  todo  elle  tremia  e  vi- 


37 

brava  tão  intensamente,  que  dir-sehia  que  ia  mor- 
rer de  felicidade. 

Durante  dois  dias  quasi  não  comeu,  e  o  velho 
prior,  o  mesmo  que  havia  visto  nascer  Margari- 
da, que  a  ajudara  a  formar  e  que  ia  agora  ca- 
sal-a,  dizia  sentenciosamente  : 

—  Ora  ahi  está  !  E  pregam  que  só  a  desgraça 
pode  matar !  Olhem-me  para  aquelle  rapagão  do 
Guilherme,  quasi  a  passar  d'esta  para  melhor  só 
porque  este  palmosito  de  cara  —  e  affagava  o  rosto 
de  Margarida  —  resolveu  não  se  fazer  feia  para 
elle,  e  lhe  deu  a  entender  que  sim,  que  o  apai- 
xonado não-  lhe  causava  engulho  ! 

—  Vão  lá  perceber  esta  machina  da  vida!  Para 
ahi  é  que  as  minhas  theologias  me  não  sabem  in- 
dustriar. .  • 

Entretanto,  Margarida  começava,  independen- 
temente do  seu  querer,  e  por  um  processo  quasi 
alheio  ao  seu  espirito,  a  analysar,  a  decompor  a 
individualidade  do  noivo. 

IsTesse  exame  minucioso  e  impertinente,  em  que 
parecia  deliciar-se  dentro  d'ella  alguma  força  mys- 
teriosa,  ora  imaginava  que  nunca  poderia  amal-o, 
ora  se  sentia  invadir  por  uma  doce  onda  de  sym- 
pathia  que  a  levava  para  elle,  ora  quasi  lhe  vi- 
nha do  mais  fundo  do  seu  ser,  dominando-a  com 
uma  tyrannia  absorvente,  uma  instinctiva  re- 
pulsão por  esse  homem  que  evidentemente  não 
era  de  sua  espécie,  nem  tinha  o  feitio  da  sua 
alma. .  . 

Quantas  vezes  Guilherme,  nos  dois  mezes  que 
precederam  o  casamento,  não  surprehendeu  nos 
olhos  da  sua  noiva  uma  fixidez  investigadora  e 
estranha,  procurando,  como  uma  lança  aguda,  ras- 
gar-lhe  todos  os  recessos  do  coração ! 
3 


38 

Quantas  vezes,  mesmo,  não  era  elle,  o  homem, 
o  viril,  o  forte,  que  sentindo  sobre  si  o  peso  cTa- 
quelle  olhar,  tinha  que  baixar  a  cabeça  e  corar 
de  envergonhado,  e  temer,  sem  saber  de  quê ! 

N'esses  curtos  e  fugidios  instantes,  se  se  atre- 
vesse a  confessal-o,  o  que  sentia  por  Margarida 
não  era  amor,  era  medo  !  Não  esse  medo  insciente 
e  estúpido  que  paraliza  os  músculos  ou  destram- 
belha os  nervos,  mas  esse  medo  incoercível  e  va- 
go, espécie  de  temor  moral,  que  a  certas  organi- 
saçoes  inspira  ou  uma  intelligencia  superior,  ou 
um  coração  inabordável  ou  uma  individualidade 
singular ! 

Então  vinha-lhe  o  presentimento  rude  de  que  em 
certas  porções,  em  algumas  dobrws,  da  alma  da 
sua  noiva  elle  jamais  lograria  entrar. .  . 

Evidentemente  ella  era  feita  de  uma  outra  ma- 
téria, diversa  da  sua,  e  nunca  de  certo  poderia 
amal-o,  como  elle  a  amava  a  ella ! 

Por  seu  lado  Margarida,  que  ás  vezes  parecia 
ler  a  estranha  tortura  inexprimivel  que  se  pas- 
sava no  cérebro  do  pobre  Guilherme,  e  que  então 
se  deixava  vencer  pela  ternura,  pondo  no  olhar 
toda  a  bondade  de  que  era  capaz,  também  quasi 
se  convencia  d^sso,  e  um  momento  houve  em  que 
por  um  mais  revolto  impulso  do  seu  sangue  pen- 
sou resolutamente  em  dizer  ao  pae  que  também 
nunca  poderia  amar  Guilherme,  nunca. 

Mas  esse  impulso  esmoreceu  após,  e  ella  fi- 
cou-se  a  pensar  que  o  Guilherme  era  ainda  assim 
por  ali,  o  mais  bello,  o  mais  intelligente  e  o  mais 
digno  homem  a  quem  poderia  entregar-se.  E  en- 
tregou-se. 

Casaram  pois.  Foram  felizes?  Foram-n'o  em 
quanto  durou  a  excitação  alegre  dos  sentidos,  em- 


39 

quanto  ella  encontrou  sempre  em  volta  de  si  a 
atmosphera  estonteadora  e  tépida  das  caricias 
d'elle,  emquanto  elle  sentiu  na  pelle  o  perfume 
capitoso  e  doce  dos  beijos  d'ella. . . 

Foi-o  sobretudo  elle,  que  se  via  na  posse  inteira 
e  incontestada  da  sua  estremecida  mulher. 

Alguns  mezes  volvidos,  ainda  lhe  vinha  á  idéa 
a  apprehensão  incommodativa,  e  a  instantes  do- 
lorosa quasi,  sobre  se  essa  posse  seria  realmente 
e  absolutamente  inteira  e  completa  ;  mas,  simples  e 
sincero,  procurava  elle  próprio  dissuadir-se  d'isso, 
e  concordava  que  sim,  que  era. 

E  verdade  que  já  mais  de  uma  vez  se  lhe  afigu- 
rara denotar  em  Margarida  um  certo  ar  fastiento 
e  contrariado  quando  por  qualquer  exigência  da 
sua  vida  de  lavrador,  contas,  conferencias,  prati- 
cas, cousas  de  lavoura,  emfim,  a  obrigava  a  pôr  de 
lado  a  leitura  de  livros  em  que  ella  parecia  em- 
bevecer-se  por  completo,  e  lhe  pedia  que  viesse 
coadjuval-o ;  todavia,  elle  próprio  se  lamentava 
por  ter  de  perturbar  a  mulher,  e  na  sua  simplesa 
ingenita  achava  até  natural  que  Margarida  prefe- 
risse as  suas  occupaçoes  ás  d'elle. 

O  que,  porém,  o  magoava  deveras  e  lhe  tol- 
dava o  rosto  de  uma  melancholia  por  vezes  tão 
funda  que  nem  lograva  disfarçal-a  a  estranhos, 
era  ver  que  em  gerai  quando  lhe  perguntava  o 
que  estava  lendo :  —  se  era  alguma  historia  bo- 
nita, ella  de  ordinário  respondia-lhe  com  um  ar 
de  creatura  incomprehendida  : 

—  Coisas  que  tu  não  entendes, 

E  quando  o  Guilherme  insistia  em  conhecer  a 
razão  porque  não  entenderia  essas  coisas,  Mar- 
garida retorquia-lhe  um  pouco  enfadada  em  geral : 

—  Que  não  se  tratava  de  sementeiras  nem  de  adu- 


40 

bos  e  por  isso  o  não  podia  interessar  o  assumpta. 

E  não  havia  modo  de  a  fazer  dizer  mais. 

Por  isso  Guilherme  já  quasi  lhe  nem  pergun- 
tava o  que  lia  e  só  quando  de  todo  não  podia  por 
si  só  resolver  ou  tratar  os  negócios  é  que  recor- 
ria á  mulher,  receioso  sempre  de  que  ella  o  fi- 
casse amando  menos. . . 

Insensivelmente  foi-se  convencendo  que  Marga- 
rida era  em  verdade  uma  pessoa  diversa  d'elle, 
d'outra  raça  e  doutros  ares,  comquanto  lhe  hou- 
vesse conhecido  muito  bem  os  pães  e  os  avós,  e 
sinceramente  se  capacitava  que  ainda  muito  favor 
lhe  fizera  ella  em  o  acceitar  por  marido. 

Nas  suas  horas  de  desalento,  que  também  co- 
meçava a  tel-as,  quasi  se  arrependia  de  ter  ca- 
sado, e  muito  baixinho,  com  medo  parece  de  ser 
ouvido  por  si  próprio,  perguntava  se  não  haveria 
sido  mais  feliz,  tomando  por  mulher  uma  guapa 
camponeza  do  seu  logar,  ignorante  como  elle,  mas 
a  mais  linda  cara  que  a  rosa  do  sol  cobria  quatro 
léguas  em  redor,  e  que  não  tinha  nenhuma  das 
exquisitices  que  pelos  modos  era  costume  só  das 
raparigas  da  cidade,  ou  que  cá  vinham  a  apren- 
der . . . 

Comtudo,  ao  mesmo  tempo  sentia-se  orgulhoso  e 
feliz,  em  se  ver  esposo  de  uma  linda  mulher,  ins- 
truida  e  fina,  que  não  se  parecia  com  as  mais, 
que  a  elle  próprio  lhe  fizera  crear  hábitos  e  ins- 
tinctos  novos,  que  tinha  o  seu  casal,  como  um 
brinco,  que  fallava  com  o  sr.  prior  e  com  a  se- 
nhora do  doutor  medico,  que  era  um  gosto  ouvil-a, 
que  mostrava  uma  bondade  attrahente  para  todos, 
e  que  emfim  mesmo  para  elle,  apesar  do  seu  ar 
protector  que  ás  vezes  o  chocava,  se  fazia  tão  con- 
descendente e  tão  meiga. . . 


41 

Porque,  porém,  não  o  era  sempre?  Eis  o  que 
Guilherme  forcejava  por  explicar  a  si  próprio,  sem 
atinar  com  a  explicação. 

# 
*      # 

No  entretanto,  Margarida,  que  passados  com 
effeito  os  primeiros  mezes  reconhecia,  desilludida, 
que  Guilherme  não  era  com  certeza  o  marido  que 
idealisára  nem  respondia,  como  tanto  pedira,  até 
nas  suas  rezas,  aos  sonhos  incoherentes  dos  seus 
dezeseis  annos,  sentira  por  um  momento,  um  duro 
e  desanimador  momento,  esboroar-se  o  edifício  da 
sua  chimera,  e  viu*se  ao  lado  de  um  homem  que 
se  não  lhe  parecia  mau,  e  não  era  grosseiro,  não 
podia  comprehender  todas  as  finezas  do  seu  es- 
pirito, todas  as  modulações  da  sua  alma. .  • 

Teria  sido  o  minuto  perigoso  e  fatal  para  ella, 
se  algum  escarninho  Fausto,  adivinhando  a  crise, 
começasse  desferindo-lhe  ao  ouvido  a  sua  eterna 
canção  dolente  —  e  dolosa. 

Por  felicidade,  por  ali  não  havia  Faustos  que 
prestassem. 

O  único  acceitavel  seria  o  medico,  um  bello 
typo  moreno  de  alemtejano,  cujos  olhos  onde  uns 
laivos  de  ascendência  árabe  tinham  posto  um  in- 
tenso brilho,  faiscavam  de  alegria  e  de  saúde, 
mas  que,  casado  também  havia  pouco,  e  perdida- 
mente enamorado  da  esposa,  nem  sequer  attentava 
no  rosto  de  Margarida. 

De  forma  que  d'essa  crise  a  salvou  a  inópia 
das  pessoas  e  a  conformidade  das  cousas. 

Depois,  passado  esse  minuto  mau,  e  para  tan- 
tas mulheres  fatídico  e  decisivo,  a  sólida  educa- 
ção moral  que  em  casa  havia  recebido,  a  sereni- 


42 

dade  saudável  do  sangue  de  todos  os  seus,  o  pro- 
videncial destino  que  a  trouxera  para  uma  casa 
de  Lisboa,  onde  o  internato  não  era  esse  cancro 
infeccioso  que  em  tantos  pontos  alastra  e  tão  con- 
tagioso tem  sido,  e  que  por  isso  a  conservara  in- 
cólume e  refractária  á  preversão  do  convívio,  a 
vida  habitualmente  tranquilla  da  sua  casa  e  da 
sua  família,  e  até,  felicidade  suprema,  a  natureza 
das  leituras  a  que  se  affizera,  narrativas  de  via- 
gens, livros  sobre  as  sciencias  e  especialmente  so- 
bre astronomia,  salutar  conselho  de  uma  velha  mes- 
tra allemã  com  quem  convivera  muito  no  seu  ul- 
timo anno  de  collegio,  tudo  isso  e  até  o  respeito 
por  Guilherme  e  pelo  seu  bom  nome,  conseguiu 
salval-a  de  si  mesma,  emquanto  a  natureza  se  en- 
carregava igualmente  de  a  salvar,  iniciando-a 
n'uma  existência  nova,  preparando-a  para  ser 
mãe. 

E  então  o  velho  prior,  que  com  a  paciência  de 
um  naturalista  andara  estudando  aquelle  casal  que 
elle  próprio  também  ajudara  a  formar,  sem  nunca 
ter  revelado  a  ninguém  o  que  observara  e  para 
que  observara,  entendeu  chegado  o  momento  de 
intervir,  mas  com  a  doçura  evangélica  de  um 
amigo  que  era  quasi  um  pae.  E  foi  a  Guilherme 
que  se  dirigiu  primeiro. 

Quando  este  uma  tarde  seguia  cabisbaixo  e  me- 
ditabundo na  direcção  de  uma  fazenda,  o  padre 
interpoz-se-lhe  no  caminho  e  atalhou  :  —  Ora  ainda 
bem  que  te  vejo,  Guilherme.  Tenho  alguma  cousa 
de  serio  que  te  dizer.  Estás  hoje  disposto  a  ou- 
vir-me  rabujar? 

—  Ora  essa,  senhor  prior,  bem  sabe  que  é  só 
mandar. 

Pois  seja,  mas  não  é  de  mandar  que  se  trata 


43 

ou  pelo  menos  não  é  a  mim  que  eu  pretendo  que 
obedeças. 

E  lentamente  foi- o  levando  para  debaixo  de  um 
parreiral. 

Ahi  sentaram-se  os  dois  e  o  velho  começou  uma 
longa  palestra  sobre  o  que  Guilherme  devia  fazer 
em  presença  do  novo  estado  da  sua  Margarida. 

Deu-lhe  indicações  medicas,  alvitres  hygieni- 
cos,  conselhos  de  padre  um  pouco  medico  e  de 
medico  que  parecia  pae,  citou-lhe  de  tudo  um  pou- 
co, velhos  alfarrábios  e  novas  theorias,  e  teve  até 
a  subtil  arte  de,  sendo  elle  conhecido  no  logar  e 
nos  arredores  por  não  dizer  quatro  phrases  que 
não  fizesse  uma  citação  do  Evangelho,  quasi  o 
não  citar,  com  medo  de  que  Guilherme  não  fosse 
confundir  o  que  lhe  estivera  dizendo,  com  um  ser- 
mão que  prompto  esquece. 

Ao  terminar,  e  pondo-lhe  a  mão  no  hombro,  gri- 
tou-lhe,  como  bordão  para  o  caminho: 

—  Olha  que  aquillo  que  lá  tens  em  casa  é  ouro 
em  pó,  mas  o  que  precisas  é  não  o  deixar  marear, 
entendeste  ? 

Guilherme  confirmou  que  entendera,  e  elle  que 
havia  dias  andava  alvoroçado  com  a  novidade,  tão 
funda  impressão  sentiu  com  as  palavras  d'aquelle 
velho  amigo  de  casa,  que  de  então  por  diante  re- 
dobrou de  cuidados,  de  attençoes  e  de  carinhos 
para  Margarida. 

A  esta  o  seu  antigo  professor  e  amigo  disse  ape- 
nas que  fizesse  um  sacrificiosinho  ao  Destino,  eque 
mostrasse  não  desconhecer  a  adoração  que  o  seu 
Guilherme  lhe  tinha,  porque  lh'a  merecia,  e  nem 
insistiu  mais. 

Para  si  reflectiu,  com  a  tranquillidade  ingénua 
de  um  bom,  que  tinha  evitado  uma  possivel  des- 


44 

graça,  e  que  o  resto  agora  seria  obra  de  ambos. 

E  foi. 

Margarida  começou  a  descobrir  qualidades,  mé- 
ritos, virtudes  novas  em  Guilherme,  e  todo  um  lado 
da  individualidade  aliás  tão  simples  e  tão  clara  do 
marido  lhe  apparecia  pela  primeira  vez,  como  um 
filão  novo  que  até  alli  houvesse  estado  envolvido 
em  ganga. 

Achou-lhe  delicadezas  de  sentimento  em  que 
não  havia  reparado,  generosidades  de  coração  so- 
bre que  inscientemente  passara,  e  sobretudo  o  que 
acabou  de  a  conquistar  para  o  amor  inteiro  do 
marido  foi  o  havel-o  surprehendido  mais  de  uma 
noite,  quando  elle  a  julgava  dormindo,  a  olhal-a 
com  unra  ternura  effusiva  e  quente,  e  a  envolvel-a 
toda  numa  illimitada  onda  de  amor  e  de  bonda- 
de, mas  um  amor  e  uma  bondade  que  tinham  al- 
guma  cousa   de  extra-terreno  e  de  immaculado. 

Desde  então  Margarida  comprehendeu  que  esse 
rapaz  que  ingenuamente  a  amava,  que  vivamente 
confessava  a  sua  pequenez  defronte  d'ella,  que 
era  em  verdade  um  ignorante  com  quem  ella  não 
poderia  conversar  senão  sobre  determinados  pon- 
tos e  a  quem  a  sua  vida  de  espirito  não  lograria 
interessar,  tinha  aos  seus  olhos  e  ao  seu  coração 
uma  qualidade  superior  a  tudo  isso,  bens  fugaces 
que  todos  podem  possuir,  —  tinha  uma  bondade 
infinita,  immensa,  e  um  amor  inalterável  e  inex- 
cedivel,  e  tudo  isso  elle  lhe  offereeia  incondicional- 
mente, com  enternecimento,  com  gratidão  até,  por 
um  simples  olhar,  por  uma  pequena  palavra  que 
d7ella  viesse. 

Isso  a  salvou,  e  a  esclareceu,  fazendo  de  vez 
nascer  no  seu  lar,  sem  intermittencias  e  sem  es- 
morecimentos,  a  divina  luz  fecundante  e  imma- 


45 

culada  da  eterna  felicidade  entre  duas  almas,  que 
afinal  se  comprehendem  e  se  combinam. 

Quando  mezes  depois  uma  creança  nascia  n'esse 
casal,  podia  bem  dizer-se  então  que  ella  era  já 
filha  de  uma  mesma  carne  e  de  um  mesmo  cora* 
ção . . . 

A  nuvem  estava  desfeita. 

Setembro  de  1890. 


Raphael  dllmeida 


A  MINHA  TERRA 


Das  nove  ilhas  de  que  se  compõe  o  archipe- 
lego  açoriano,  destaca-se  a  de  S.  Miguel,  pela 
sua  grandeza,  importância  commercial,  grande 
porto  d'abrigo,  amenidade  de  clima  e  tormosos  e 
ricos  jardins  que  possue. 

E  dos  Açores  a  pérola. 

Descoberta  em  8  de  maio  de  1444,  tem  pro- 
gredido muito  a  ponto  de  ser  hoje  considerada 
como  a  terceira  cidade  do  reino  de  Portugal. 

E'  mais  comprida  de  que  larga,  razão  porque 
á  cidade  denominaram  de  Ponta  Delgada. 

O  chamar-se  S.  Miguel,  foi  por  ter  sido  des- 
coberta no  dia  em  que  a  egreja  festeja  o  archanjo 
S.  Miguel,  segundo  affirmam  historiadores  cujas 
obras  tenho  á  vista. 

As  Furnas,  e  o  logar  das  Sete  Cidades  são 
sitios  encantadores,  muito  concorridos  de  verão, 
especialmente  as  Furnas,  pela  variedade  e  abun- 
dância de  aguas  medicinaes  que  brotam  de  varias 
nascentes. 

# 

O  descobridor  da  ilha  de  S.  Miguel,  foi  um 
negro  escrayo,  da  ilha  de  Santa  Maria,  a  primeira 
dos  Açores  descoberta  em   1432,  que  tendo  fu- 


50 

gido  ao  seu  senhor  subiu  em  procura  de  refugio 
á  mais  alta  serra,  d'onde  avistou  a  nova  ilha,  indo 
em  seguida  participar  ao  amo  a  descoberta  em 
troca  do  perdão. 

D'ahi  resultou,  ser  encarregado  Gonçalo  Velho 
Cabral  de  se  certificar  da  descoberta  feita  pelo  negro. 

Em  8  de  maio  de  1444,  dia  da  apparição  do 
archanjo  S.  Miguel,  Gonçalo  Velho  Cabral,  acom- 
panhado da  sua  gente,  saltava  n'um  sitio  que  de- 
pois chamaram  «Povoação»  e  hoje  é  Villa  do 
mesmo  nome. 

Os  companheiros  do  descobridor  apanharam 
pombos,  ramos,  etc.  para  presentearem  o  prín- 
cipe regente,  o  qual  ao  ter  conhecimento  da  des- 
coberta, nomeou  o  dito  Gonçalo  Velho  Cabral, 
descobridor  e  capitão  donatário  d'esta  ilha  como 
já  o  era  da  de  Santa  Maria. 

Alguns  historiadores  açorianos  referindo-se  á 
descoberta  de  S.  Miguel,  dizem  que  na  dita  «Po- 
voação» ficaram  uns  indivíduos  naturaes  d' Afri- 
ca, que  contaram,  terem  sentido  muitos  terramo- 
tes  e  bramidos.  Casualmente  andando  mais  para 
o  interior  da  terra,  encontraram  um  homem,  o 
qual  confessou  ter  vindo  de  Santa  Maria,  fugido 
com  um  seu  amigo  e  a  mulher  d'este,  com  quem 
tinha  amisade,  e  fugindo  á  justa  punição,  se  ti- 
nham refugiado  para  esta  ilha,  e  que  elle  então 
para  ficar  com  a  mulher  matara  o  marido. 

A  dar-se  credito  a  este  facto,  foram  pois  estes 
os  primeiros  descobridores  da  ilha  de  S.  Miguel. 
Ouvindo  isto,  o  que  era  considerado  como  supe- 
rior, ordenou  que  se  lhe  applicasse  o  castigo  que 
n'essa  época  se  dava  em  Portugal,  sendo  em  vista 
de  tal  enforcado. 

Os  descobridores  voltaram  depois  em  29  de  se- 


M 

tembro  de  1445,    com  vários  colonos  portugue- 
zes,  fundando  uma  nova  povoação. 

# 
#      # 

Dada  a  erupções  vulcânicas  e  terremotos,  em 
diversas  épocas  tem  soffrido  enormes  e  conside- 
ráveis prejuízos  a  ilha  de  S.  Miguel. 

Ha  annos  a  esta  parte  a  sua  principal  riqueza 
eram  a  laranja,  os  ananazes,  e  os  cereaes  ;  hoje 
os  ananazes,  a  batata  doce  e  ainda  os  cereaes  — 
trigo,  milho  e  fava,  mas  isto  em  pequena  escala. 

Uma  doença  terrível  nos  laranjaes  inutilisou 
milhares  de  plantas,  arruinando  grande  numero 
de  famílias. 

E'  triste  confessal-o. 

A  ilha  de  S.  Miguel,  na  occasião  em  que  es- 
crevo estas  linhas,  atravessa  uma  crise  medonha, 
horrorosa  talvez  ! 

Os  trabalhadores  do  campo  expatriam-se  le- 
vando comsigo  as  famílias  para  as  terras  de  Santa 
Cruz,  e  ilhas  de  Sandwich ;  o  agricultor  que  traz 
de  renda  as  terras  que  cultiva,  está  empenhado 
deveras  com  o  senhorio,  e  não  sabe  como  sahir 
da  situação  precária  e  desesperada  em  que  se  vê. 

Na  crise  por  que  estão  passando  as  ilhas  dos 
Açores,  ha  muita  culpa,  muita  negligencia,  porém, 
a  minha  missão  n'este  momento  não  é  a  de  indi- 
car os  culpados,  nem  de  descriminar  as  causas. 

O  tempo  encarregar- se-ha  de  o  fazer. 

Os  michaelenses  são,  como  todos  os  açorianos, 
(bem  como  todos  os  portuguezes),  essencialmente 


52 

trabalhadores  e  hospitaleiros,  intelligentes  e  acti- 
vos. 

Tempera  rija  e  ambicionando  independência. 

No  trabalho  quotidiano  buscam-n'a  com  persis- 
tência assombrosa. 

Olhemos  para  os  camponezes,  a  classe  mais  im- 
portante de  todo  o  povo  açoriano. 

Entremos  nos  seus  casebres,  visitemos  os  seus 
campos  e  veremos  quanto  valem,  .quão  úteis  são 
a  si  e  aos  seus  semelhantes. 

Mourejam  com  o  sacho  (enxada)  na  mão,  de 
cabeça  baixa,  desde  o  nascer  do  sol  até  que  elle 
se  esconde  de  todo,  recebendo  em  troca  por  esse 
trabalho  violento  e  fatigante,  diariamente,  uma  pe- 
quena medida  de  milho,  equivalente  a  oito  vin- 
téns ! 

Fora  da  cidade  os  jornaleiros  recebem  em  mi- 
lho a  paga  dos  seus  trabalhos,  porque  o  milho  na 
ilha  de  S.  Miguel,  como  nas  demais  dos  Açores, 
equivale  a  moeda  corrente. 

Nas  povoações  afastadas  dos  centros  os  ven- 
deiros têem  uma  grande  caixa  de  madeira,  onde 
recebem  o  milho,  dando  em  troca  os  géneros  com- 
prados, como :  sal,  sabão,  tabaco,  peixe  salgado, 
etc,  únicos  géneros  de  maior  consumo.  Depois, 
quando  a  caixa  está  cheia,  isto  é,  quando  com- 
porta cinco  a  seis  saccos  de  milho,  (30  a  40  al- 
queires) poe-se  a  caminho  da  cidade  o  vendeiro. 

Na  cidade  encontra  então,  comprador  a  dinheiro, 
o  milho. 

A  vida  do  campo,  nos  Açores,  é  poética  e  ori- 
ginalíssima. Casebres  de  pedras  nuas,  cobertos 
com  palha  de  trigo,  (vendo-se  em  alguns  largas 
fendas),  e  tendo  unicamente  duas  ou  três  divisões 
internas,  feitas  com  esteiras  de  cannas  ;  compoe-se 


53 

o  solar  das  famílias  pobres.  Uma  porta  e  um  pe- 
queno postigo  para  um  pateo  é  a  apparencia  ex- 
terior da  habitação. 

O  pateo  ó  indispensável  para  a  vivenda  do 
suino  ou  gallinhas  que  sustentam.  Os  suínos  tor- 
nam-se  necessários  porque  a  panella  é  temperada 
com  banha  de  porco. 

Na  ilha  de  S.  Miguel  não  se  aduba  as  comidas 
com  azeite.  As  oliveiras  vegetam  nos  Açores,  mas 
não  dão  fructo.  De  sorte  que  o  camponez  sustenta 
todos  os  annos  nm  porco  para  ter  o  adubo  para 
os  seus  alimentos. 

O  chão  dos  casebres,  tristes  palhoças,  é  térreo. 

Em  dias  de  festa  passa  a  ser  juncado  de  ra- 
mos de  pinheiro. 

A  mobília  que  os  guarnece  é  bem  simples. 

Dois  ou  três  bancos  de  madeira,  uma  cama  de 
pau,  uma  mesa  tosca,  uma  caixa,  e  um  moinho  de 
pedra,  o  movei  mais  preciso  na  casa  do  pobre. 

Achará  o  leitor,  que  não  for  açoriano,  extraor- 
dinário o  movei  moinho. 

Pois  não  o  é. 

O  moinho  de  pedra  é  onde  a  mulher  ou  as  fi- 
lhas do  camponez  açoriano,  reduzem  a  farinha  o 
milho  para  alimentação  da  família. 

Quasi  sempre  este  processo  é  feito  ao  rasgar 
da  manhã. 

Muitas  vezes  ouvi,  ao  dirigir-me  de  madrugada 
para  a  caça,  em  povoações  a  oito  kiloraetros  da  ci- 
dade de  Ponta  Delgada,  misturado  com  as  delicio- 
sas cantorias  das  avesinhas,  que  saudavam  o  nascer 
da  aurora,  o  rodar  pesado  das  pedras  dos  moinhos, 
despedaçando  o  milho,  algumas  vezes,  cadenciado 
pelo  cantar  popular  e  alegre  das  robustas  rapa- 
rigas que  com  as  suas  mãos  callosas  as  moviam, 
4 


54 

Uma  orchestra  divina/  que  se  não  descreve,  mas 
que  se  sente,  e  que  nos  arrebata,  porque  a  con- 
fusão e  variedade  de  cantos  e  silvos,  juntos  aos 
trabalhos  matutinos  d'aquelle  povo,  enebria  e  nao 
tem  rival. 


A  alimentação  d'esta  abençoada  gente,  consiste, 
invariavelmente,  em  pão  ou  bolo  de  milho,  uma 
pimenta  ou  peixe  salgado,  (sardinha,  chixarro  ou 
bonito)  ao  almoço  e  jantar ;  e  á  noite,  a  ceia,  consta 
de  um  caldo  quente  de  couves,  unicamente  tempe- 
rado com  banha  e  pimenta. 

Em  dias  de  festa,  incluindo  as  do  Divino  Es- 
pirito Santo,  festas  tradicionaes  e  popularissimas 
nos  Açores,  apparece  então  nas  mezas  uns  boca- 
dos de  vitella  e  algumas  gottas  de  vinho.  Isto,  uma 
ou  duas  vezes  no  anno  1 

E  vivem  felizes,  sadios,  sem  ambições  e  sem- 
pre lutando  pela  existência  e  sempre  trabalhando 
com  obediência. 

O  domingo  destinam  elles  ás  suas  reuniões,  isto 
depois  da  missa  conventual  na  egreja  da  aldeia.  Al- 
guns ha,  que  habitando  longe  da  egreja  vêem  em 
ranchos  a  pé,  e  com  suas  familias,  percorrendo  al- 
guns kilometros,  cumprir  com  o  preceito  catholico. 

Imponente  a  manifestação  santa  da  crença ! 

Discutem  no  adro  da  egreja  assumptos  agrí- 
colas, e  os  remediados  tratam  de  questões  par- 
ticulares, demandas  por  passagens  de  terrenos, 
heranças,  etc,  ouvindo-se  sempre  com  attenção 
as  palavras  dos  velhos. 

Ha  uma  povoação  na  ilha  de  S.  Miguel,  cha- 
mada Bretanha,  onde  as  demandas  teem  vulto, 
e  são  amiudadas. 


55 

Depois  do  jantar,  os  mais  novos,  procuram  a 
sombra  dos  valles  ou  grotas  e  ali  inauguram  o 
jogo  do  bilro  (chinquilho)  ou  de  cartas  —  bisca  ou 
pedida. 

No  dia  seguinte  lá  estão  de  novo  no  seu  labor 
constante,  risonhos,  contemplando  a  natureza  e 
fazendo  cálculos  sobre  a  producção  do  anno. 

* 

#      # 

Por  occasião  das  festas  ao  Divino  Espirito 
Santo,  enfeita-se  o  theatro,  (uns  palanques  de  ma- 
deira e  alguns  de  pedra  com  emblemas  do  Espirito 
Santo)  e  em  diversas  casas,  dos  mais  remediados, 
realisam-se  bailaricos. 

N'estes  bailaricos  cantam-se  e  tocam-se  as  seguin- 
tes modas ;  algumas  d'e)las  lindissimas  : 

Aurora : 

«Auroras,  meu  bem  auroras, 
Auroras  por  isso  digo 
Claro  sol,  divina  neve 
Lindos  amores  tive  comtigo». 


Pésinho : 


«Deita  aqui  o  teu  pésinho, 
Aqui  ao  pé  do  meu, 
Q'o  tirar  do  teu  pésinho, 
Cada  qual  fica  com  o  seu». 


Chamarrita 


«Anda,  anda  chamarrita 
Da  sala  para  a  varanda, 
Faze  esmolas  por  tua  alma, 
Que  teu  corpo  perdido  anda». 


56 

Trelico  (ou  Praia) : 

«Trelico  bate,  bate, 
Trelico  já  bateu, 
Quem  gosta  de  mim  é  ella 
Quem  gosta  d'ella  sou  eu». 

Murcianna  : 

«Murcianna,  Murcianna, 
Murcianna,  Murcianninha, 
Ninguém  t'liade  pôr  a  mão, 
Sabendo  que  tu  q'és  minha». 

Fado  : 

«Fado  e  mais  fadinho, 
Foi  ao  mar  n'uma  brodola, 
Faltou-me  o  gaz,  fui  cahir 
A  dentro  d'uma  caçarola». 

Canninha  verde : 

«O'  minha  canninha  verde, 
Canna  verde  d'encantar, 
Ainda  que  tu  me  fujas 
Sempre,  sempre  t'heide  amar». 


Preta : 


«Arrenega  da  preta 
Que  vem  d'amarello, 
Cachimbo  na  boca, 
Chinello  no  pé». 


Escusado  será  dizer  que  estes  bailaricos  são 
concorridissimos  e  representam  para  as  famílias 
do  povo  um  successo. 

N'estes  bailaricos  fazem-se  e  desfazem-se  casa- 


57 

mentos,  e  ha  annos  a  esta  parte,  provocam-se  des- 
ordens, algumas  das  quaes  com  serias  consequên- 
cias. 

No  emtanto  a  originalidade  e  a  poesia  popular 
caracterisam  estas  festas  do  povo  michaelense,  que 
d'anno  a  anno,  tçm  um  dia  para  a  folga,  e  tor- 
nam-as  appeteciveis  e  desejadas  pela  mocidade 
aldeã,  cheia  de  vida  e  de  esperanças. 

Setembro  1890. 


Joio  de  Mendonça 


A  FONTE  DA  PREGUIÇA 

E  A  NOGUEIRA  DA  MISÉRIA 


A  FONTE  DA  PREGUIÇA 

E  A  NOGUEIRA  DA  MISÉRIA 

(3Li  E  3KT  ID -A.  S      DO      MINHO) 


Era  uma  tarde  esplendida  de  setembro. 

O  sol  apenas  declinava  para  o  horisonte  e  illu- 
minava  ainda  vivissimamente  os  formosíssimos 
campos  de  Vizella,  povoação  tão  pittorescamente 
situada  entre  as  serras  de  S.  Bento  e  de  S.  João 
das  Barrocas. 

Eu  e  o  meu  amigo  José  Prado,  que  é  um  abas«- 
tado  proprietário  d'aquelles  sítios,  iamos  de  pas- 
seio pela  estrada,  que  encaminha  a  Penafiel 

Tínhamos  deixado  á  esquerda  os  afamados  ba- 
nhos do  Mourisco  e,  avistando  mais  abaixo  o  um- 
broso e  ameno  sitio  da  Cascalheira,  onde  o  Rio 
Vizella  se  espraia  sob  denso  arvoredo,  tornejámos 
pela  vereda  da  Cruz  perdida  e  embrenhámo-nos 
atravez  campos  e  pinhaes,  em  sombrias  azinhagas 
até  aos  logares  de  Barreira  e  Portelladinha. 

Ali  corre,  por  entre  pedras  passadeiras,  um  re- 
gato, que  dimana  mansamente  formando  mean- 
dros e  banhando  pés  de  myosotis  em  flor. 

Trepámos  uma  escabrosa  encosta,  calyada  de 
grossos  calhaus  e  ensombrada  de  corpulentas  e  co- 
padas carvalheiras,  onde  as  vides  se  enroscavam 
em  phantasiosas    volutas,  suspendendo,  por  entre 


62 

pâmpanos  vicejantes,  bellos  cachos  amadurecidos. 

De  uma  pequena  mina  escavada  na  montanha, 
cae,  em  tanque  de  pedra,  cujos  lavores,  que  os 
séculos  em  parte  respeitaram,  attestam  a  arte  pri- 
morosa de  outras  eras,  em  que  aquelles  logares 
seriam  mais  frequentados,  —  uma  veia  de  agua 
crystallina.  D'ali  a  nitida  lympha,  transborda  e 
vae  alimentar  duas  represas,  que  ladeiam  o  ca- 
minho. 

O  murmúrio  das  aguas  allia-se  agradavelmente 
ao  cicio  das  folhagens  por  onde  perpassa  a  vira- 
ção, ao  chilrear  das  aves  e  á  toada  triste,  que  os 
carros  fazem  ouvir  ao  passar  nos  caminhos.  Essa 
harmonia  é  cortada  pelos  cantares  plangentes,  tão 
peculiares  ao  Minho,  das  mulheres,  que  andam 
nos  trabalhos  da  lavoura. 

—  Tem  um  nome  bem  singular,  disse-me  José 
Prado,  esta  fonte.  Chamam-lhe  a  fonte  da  preguiça. 

—  A  amenidade  do  sitio,  disse-lhe  eu,  a  tran- 
quilidade, que  parece  refleetir-se  d'estas  amenís- 
simas paragens  no  espirito  de  quem  as  contempla, 
fel-a  assim  denominar. 

—  E'  possível,  tornou  o  Prado,  mas  isso  não 
obsta  que  haja  uma  historia,  lenda  ou  quer  que 
seja,  que  explica  esse  nome,  e  a  qual  também  se 
refere  áquella  vetusta  nogueira,  chamada  a  no- 
gueira  da  Miséria,  e  ao  celeste  mensageiro  S.  Mi- 
guel, cuja  imagem  se  venera  em  Villarinho,  na 
antiquíssima  egreja,  que  nós  vamos  visitar. 

Antes  de  continuarmos,  demorámo-nos  alguns 
momentos  n'aquelle  logar  de  belleza,  deveras  fas- 
cinante. 

Os  aspleniuns  e  trichomanes,  fetos  de  folhagem 
finamente  recortada,  ornavam  os  muros  e  rochedos 
ensombrados  d'aquella  encosta.  Em  volta  os  car- 


63 

valhos  cerquinhos  e  molares  agrupavam-se  pito- 
rescamente, apresentando  nos  troncos  carcomidos 
a  sticta  pulmonacea,  esse  interessante  lichen,  cu- 
jo nome  provem  da  sua  semelhança  comos  pul- 
mões humanos.  Outros  lichens,  como  a  parmelia 
caperata,  de  cor  verde  esmeralda  e  &  parmelia  au- 
reolata,  guarnecida  nas  suas  margens,  como  de 
um  cordão  de  ouro,  vestiam  aquelles  troncos  e  da- 
vam gracioso  contraste  com  as  manchas  esbran- 
quiçadas, semeadas  de  traços,  que  parecem  cara- 
cteres árabes  ou  semelham  cartas  geographicas, 
dos  opegraphas  e  graphis,  e  os  pontos  pretos  em 
grandes  espaços  brancos  da  verrucaria  nítida, 
emergindo  de  entre  tufos  d'esse  musgo  verde  ama- 
rellado,  que  semelha  seda,  e  que  tão  justamente 
foi  denominado  Leskea  sericea.  O  matto,  matizado 
das  flores  amarellas  das  giestas,  das  flores  em  ca- 
cho róseas,  violetas,  azues  e  purpurinas  das  ur- 
zes, e  das  flores  alvíssimas  e  mimosas  do  leuco- 
jum  automnale  e  bagas  vermelhas  dos  azevinhos, 
era  riquíssimo  de  tons  de  colorido  e  rescendia  de 
um  perfume  balsâmico,  acre,  mas  agradável. 

Continuámos  a  subir  a  Serra  de  S.  João,  pas- 
sando por  Sestaes  e  S.  Paulo.  Deixando  á  es- 
querda um  formosíssimo  bosque  de  carvalhos,  e 
subindo  ao  topo,  deparou-se-nos  um  esplendidis- 
simo  panorama. 

—  Olha,  disse  José  Prado,  ali  tens  n'este  valle 
bellissimo  as  quintas  do  Bairro  e  de  Quintas. 

Na  vertente  opposta  a  esta,  ficam  as  quintas 
da  Agrella  e  do  Paço,  e,  como  fechando  esta 
enorme  bacia,  estão  os  montes  em  que  alvejam 
a  capella  de  S.  Bento  e  mais  além  a  do  Senhor 
Jesus  dos  Perdidos ! 

Ora  seguíamos  os  caminhos  de  carro,  ora  percor- 


64 

riamos  o  estreito  atalho,  fechado  por  vezes  por  al- 
tos pedregulhos,  mas  dispostos  em  forma  de  es- 
cada, tornando-se  por  isso  de  fácil  accesso.  São  es- 
ses os  Cancellos  de  cão,  tão  frequentes  nos  caminhos 
que  atravessam  campos  de  milho,  hortas  e  vi- 
nhedos, e  por  onde  passam  povos,  que  vêem  de 
grandes  distancias  á  egreja,  nos  dias  de  festa  e 
santificados,  e  por  isso  a  essas  veredas  lhes  cha- 
mam caminhos  de  missa.  Foi  por  um  d'esses  ca- 
minhos, que  nos  dirigimos  ao  antigo  convento 
de  S.  Miguel  de  Villarinho.  D  elle  o  que  resta  é 
bem  pouco.  Resta  a  egreja,  accusando  nas  pa- 
redes e  n'alguns  restos  de  ornato  architectonico, 
o  que  foi  ha  séculos. 

Na  parte  superior  do  adro  acha-se  construída 
uma  excellente  vivenda  de  casas.  Na  egreja  ha 
alguns  retábulos  de  boa  talha  dourada,  retocada 
de  pintura.  No  altar-mór,  nrum  quadro  mal  pin- 
tado, vê-se  a  imagem  de  S.  Miguel,  tendo  o  diabo 
aos  pés.  O  santo,  no  modo  como  o  pintor  o  ves- 
tiu, parece  um  figurino  de  anjo  de  loas. 

No  claustro,  transformado  em  pardieiro,  vimos 
uma  porta  murada,  onde  n'um  arco  de  volta  aba- 
tida ha  uma  inscripçâo  com  a  era  de  1417,  mas 
que  não  nos  foi  possivel  decifrar.  Na  soleira  da 
porta  lateral  da  egreja  ha  outra  inscripçâo  muti- 
lada com  o  anno  de  1611. 

Foi  o  cura,  homem  illustrado  e  amável,  que  nos 
mostrou  a  egreja.  Com  o  rosto  sorridente,  expri- 
mindo bondade,  convidou-nos  para  a  ceia.  A  pe- 
dido de  José  Prado  mandou  chamar  o  velho  sa- 
cristão, que  era  um  narrador  consummado,  para 
que  nos  contasse  as  lendas,  que  eu  vou  narrar,  ten- 
do-as  colhido  agora  nas  minhas  reminiscências  e 
recordações. 


65 

Ainda  era  dia,  quando  nos  sentámos  á  meza. 
No  Minho  janta-se  ao  meio  dia  e  ceia-se  ao  pôr 
do  sol.  Por  isso  é  muito  para  vêr-se,  ao  recolher 
dos  trabalhos  do  campo,  como  se  exhala  o  fumo 
dos  telhados  de  telha  vã,  da  cozinha  térrea,  que 
também  serve  de  lareira,  e  que  emergem  de  entre 
a  espessura  viridente. 

A  ceia  foi  alegre.  Na  lareira  crepitava  o  fogo, 
esse  bom  fogo  cujas  faúlhas  e  centelhas  tanto -ale- 
gram. As  vitualhas  tinham  sido  regadas  com  um  ex- 
cellente  vinho  verde,  e  para  o  final  da  refeição  o 
excellente  cura  offerecera-nos  um  bello  transmon- 
tano com  vinte  annos  de  casa.  Alguns  d'esses  copos 
deram  aos  nossos  organismos  esse  bem-estar  ale- 
gre e  satisfeito,  que  sentimos  depois  de  uma  boa 
refeição.  Invadia-nos  uma  agradável  lassidão.  Es- 
távamos no  momento  psychico  dos  contos  e  nar- 
rações, e  aspirando  o  fumo  dos  charutos  prestá- 
mos os  ouvidos.  O  velho  começara  a  sua  narra- 
tiva. 

II 

Em  tempos  remotíssimos  estas  regiões  abunda- 
vam de  tudo,  que  é  necessário  ao  goso  da  vida. 

Homens  e  mulheres,  velhos  e  creanças  passavam 
parte  do  dia  deitados  á  sombra  das  arvores,  ou,  no 
inverno,  aconchegados  á  lareira.  A  terra,  pujantís- 
sima de  força  productiva,  alimentava  de  tal  modo 
as  plantas,  que  a  semente  lançada  no  solo  dava 
300  grãos  por  cada  um,  quasi  sem  amanho. 

Todos,  mais  ou  menos  abastados,  olhavam  ao 
bem  presente  e  descuravam  do  futuro. 

Alguns  poucos  dos  que  compunham  o  conselho 
dos  anciãos,  o  qual  se  reunia  junto  á  fonte,  que 
da  preguiçosa  incúria  d'essa  assembléa  tomou  o 


66 

nome,  —  tinham  chamado  em  vão  os  seus  concU 
dadãos  aos  seus  deveres,  mostrando-lhes  que  a 
inércia,  ou,  mais  propriamente,  apreguiça,  quando 
invade  uma  população,  deíinha-a,  esterilisa-a  e 
mata-a,  tendo-a  antes  prostrado  sob  o  despreso 
das  outras  populações,  que  não  renegaram  os  seus 
direitos,  antes  os  afirmaram  pelos  seus  esforços 
e  tornaram  evidente  a  sua  vida  activa. 

Mas  quasi  todos  tinham  o  pão  na  arca,  o  cel- 
leiro  e  a  adega  bem  providos,  e  por  isso  não  lhes 
calava  no  espirito  essas  exhortaçoes,  que  toma- 
vam, como  dictadas  por  espíritos  sob  a  influencia 
do  mau  humor  que  lhes  causava  o  bem-estar  e  a 
felicidade  alheia.  O  povo  chamava-lhes  loucos  e 
prophetas  de  desgraça. 

Mais  acima  d 'essa  celebre  fonte  havia  uma  mi- 
serável choupana,  coberta  de  telha  vã  e  colmo, 
onde  vivia  uma  pobre  mulher  de  nome  Miséria. 

Era  mais  velha  que  Mathusalem,  ou,  talvez, 
tão  velha  como  a  humanidade. 

A  sua  única  companhia  era  um  cão  magro  e 
faminto,  mas  extremamente  dedicado  á  sua  dona. 

N'um  pequeno  cerrado,  pertencente  á  Miséria, 
havia  uma  nogueira,  que  lhe  dava  saborosíssimos 
nogoes.  O  único  prazer  da  pobre  velha,  ella,  que 
quasi  todo  o  anno  roía  nalguns  pedaços  de  broa 
duríssima,  era  comer  os  fructos  da  sua  nogueira. 
Eram-lhe  condimento  ao  amargo  pão  esmolado. 

Mas  os  garotos,  implacáveis,  roubavam-lhe  em 
grande  parte  essa  consolação,  mais  por  diverti- 
mento maldoso,  que  por  necessidade. 

Todos  os  dias,  Miséria,  encostada  a  um  bordão 
ia  esmolar,  acompanhada  de  seu  cão  Fiel . 

Batia  a  todas  as  portas,  mas  nem  todas  se 
abriam  para  lhe  dar  esmola. 


67 

Os  mais  ricos  repelliam-lhe  as  supplicas  e  co- 
briam-n'a  de  doestos.  A  abastança,  em  que  vi- 
viam, desenvclvera-lhes  em  alto  grau  o  egoísmo,  e 
também  a  preguiça  lhes  embotara  todos  os  sen- 
timentos bons.  Na  sua  criminosa  indifferença,  pelo 
soffrimento  alheio,  censuravam  a  auetoridade,  que 
permittia  á  Miséria,  coberta  de  andrajos,  que  pu- 
blicamente implorasse  a  caridade. 

Era  dos  menos  protegidos  da  fortuna,  que  a  mí- 
sera colhia  algumas  mealhas.  Ainda  assim,  a  sac- 
cola  nunca  se  lhe  encheu  a  mais  de  metade. 

No  outomno  o  peditório  era-lhe  mais  penivel, 
pois  ia  desacompanhada  de  Fiel,  que  ficava  de 
guarda  aos  fructos  da  nogueira.  Amavam-se  tanto, 
que  esse  apartamento  era  dolorosíssimo  para  am- 
bos, que  choravam  lagrimas  de  amarga  saudade. 

III 

Houve  um  inverno  extremamente  rigoroso,  em 
que  a  terra  se  cobriu  de  extensa  mortalha  de  gelo. 

Em  noite  caliginosa,  em  que  o  vento  soprava 
tempestuoso  e  avergava  as  mais  corpulentas  arvo- 
res, os  raios  coruscavam  na  atmosphera,  como  lar- 
gas fitas  de  fogo,  e  a  chuva  caía  a  jorros. 

Miséria,  mal  agasalhada  nos  seus  andrajos  e 
aconchegada  a  Fiel,  despertou  pelo  ruido,  que  al- 
guém fazia  batendo-lhe  á  porta. 

Sempre  que  alguém  se  aproximava  d'aquelle 
pobre  tegurio,  Fiel  ladrava  com  furor.  D'esta  vez, 
porém,  latiu  alegremente  e  começou  a  mover  a 
cauda  como  que  a  festejar  a  boa  vinda. 

—  Por  amor  de  Deus,  gemeu  uma  voz  dolorida, 
dae  pousada  a  um  pobre  homem,  que  morre  de  frio 
e  de  íome. 


68 

—  Levantae  o  bedelho  e  entrae ! 

Ninguém  poderá  dizer,  que  recusei  abrigo  a 
uma  creatura  de  Deus ! 

Entrou  o  forasteiro.  Profundas  rugas  lhe  sulca- 
vam o  rosto.  No  aspecto  mostrava  ser  ainda  mais 
velho  que  Miséria.  Cobria-o  apenas  uma  velha  so- 
taina esfarrapada. 

—  Assentae-vos,  bom  homem,  disse-lhe  Miséria. 
O   pouco  que  tenho,   vol-o  offereço  de  todo  o 

coração ! 

E  Miséria  lançou  na  lareira  a  sua  ultima  acha 
de  lenha,  e  deu  ao  velho  uns  pedaços  de  broa  de 
milho  e  centeio  e  algumas  nozes,  que  lhe  restavam. 

O  velho  aqueceu-se  ao  fogo,  e  comeu  com  appe- 
tite.  Fiel  deitára-se-lhe  aos  pés  e  acariciava-lh'os. 

Quando  o  hospede  acabou  a  frugal  refeição,  Mi- 
séria envolveu-o  num  cobertor  de  serapilheira  e 
fel-o  deitar  na  sua  enxerga,  emquanto  ella .  se 
deitava  no  chão,  encostando  a  cabeça  a  uma  ve- 
lha arca,  para  dormir. 

No  dia  seguinte,  Miséria  despertou  cedo,  e,  como 
nada  mais  tivesse  que  dar  ao  hospede,  lembrou-se 
de  ir  esmolar.  Chegou-se  á  porta,  abriu-a  e  viu 
que  a  tempestade  serenara.  Voltou-se  para  agar- 
rar no  bordão  e  viu  de  pé  o  hospede. 

—  Infeliz  Miséria,  conheço  o  teu  bondoso  intento, 
disse-lhe  elle.   E  finda,  porém,  a  minha  missão. 

—  Quem  és  tu  ?  exclamou  Miséria. 
A  estas  palavras  o  velho  transfigurou-se  n'um 

formoso  mancebo  de  rosto  radiante. 

—  Sou  o  archanjo  Miguel,  tornou  elle.  Por  man- 
dado divino  vim  a  estes  sitios  experimentar  a  ca- 
ridade dos  homens.  Bati  á  porta  dos  opulentos  e 
felizes  do  mundo  e  todos  elles  merepelliram.  Foste 
tu,  pobre  velha,  a  única  pessoa,  que  me  recolheu 


69 

e  agasalhou,  soffrendo  na  tua  miséria  pelo  bem  do 
próximo.  Vaes  ser  recompensada. 
Miséria,  que  ajoelhara,  pondo  as  mãos,  disse: 

—  Formoso  archanjo,  eu  nada  vos  peço.  Vivo 
feliz  na  minha  pobreza  e  não  faço  a  caridade  por 
interesse. 

—  Bem  sei,  tornou  o  santo.  Tu  pagas  com  bên- 
çãos e  votos  de  felicidade  as  parcas  migalhas  que 
te  dão,  e  perdoas  aos  que  te  maltratam  e  escar- 
necem. 

Tu  eras  tão  desgraçada  como  eu,  e  fostes  tu 
que  tiveste  compaixão  da  minha  desgraça.  Deus 
quer  recompensar- te.  Formula  um  desejo  e  serás 
satisfeita. 

—  Poderoso  santo,  nada  vos  peço  porque  nada 
desejo. 

—  Nada  tens*  e  nada  queres  ?  Fala  ! 
Miséria  continuava  calada. 

—  Queres  ser  abbadessa  de  Santa  Clara  de 
Coimbra?  Queres  ser  a  senhora  directa  dos  cen- 
sos de  todas  estas  terras  ?  Queres  ser  joven,  bella 
e  rica?  Desejas  honras  e  riquezas? 

A  todas  essas  offertas  Miséria  abanava  a  ca- 
beça. 

—  Não  me  recuses  o  prazer  de  te  recompen- 
sar ou  julgarei  que  o  fazes  por  orgulho. 

—  Já  que  assim  m'o  ordenaes,  divino  archan- 
jo, vou  fazer  um  pedido.  Tenho  no  meu  cerrado 
uma  robusta  nogueira,  que  me  dá  saborosas  no- 
zes. Os  garotos  doestes  contornos  costumam  vi- 
rem roubal-as  e  eu,  uma  parte  do  anno,  tenho 
de  deixar  Fiel  guardando-as. 

Fico  separada  do  meu  pobre  cão  dias  inteiros, 
em  quanto  faço  o  peditório:  Isto  é  doloroso  para 
ambos.  Fazei,  poderoso  santo,  que  todo  aquelle, 
5 


70 

que  trepar  á  minha  nogueira,  não  possa  descer 
sem  o  meu  consentimento. 

—  Assim  seja,  disse  o  santo,  sorrindo  se  da  in- 
genuidade da  pobre  Miséria.  Bemaventurados  os 
simples  e  os  pobres  de  espirito,  porque  d'elles  é 
o  reino  dos  Céos ! 

E  abrindo  as  azas  librou-se  aos  espaços  infini- 
tos, abençoando  Miséria,  que  glorificava  Deus  no 
seu  archanjo. 

IV 


Havia  passado  o  mau  tempo.  A  protecção  do 
santo  era  evidente.  Miséria,  quando  recolhia  do  pe- 
ditório, vinha  sempre  com  a  saccola  bem  fornecida. 

Quanto  aos  garotos,  que  lhe  roubavam  as  no- 
zes, presos  uma  vez  na  arvore,  Miséria  ali  os  dei- 
xou algum  tempo,  e  quando  os  soltou  tal  medo  ti- 
veram, que  nunca  mais  voltaram.  Os  próprios 
aldeões  afastavam-se  receiosos  da  arvore  e  trata- 
vam melhor  Miséria,  pois  que  a  julgavam  pos- 
suir poderes  sobrenaturaes.  Na  maioria  dos  casos 
é  o  medo,  que  impede  o  homem  de  ser  máo.  Por 
isso,  tanto  Miséria  como  Fiel,  viviam  nessa  tran- 
quilla  bemaventurança,  longe  do  bulício  do  mun- 
do, que  é  a  verdadeira  felicidade. 

Era  pelo  outomno.  Miséria  contemplava  as  ar- 
vores já  quasi  despidas  das  suas  folhagens,  e  os 
pâmpanos,  que  tomavam  essa  cor  avermelhada, 
prenuncio  da  sua  queda,  quando  uma  voz  lúgu- 
bre chamou  por  ella  trez  vezes  : 

—  Miséria!  Miséria!  Miséria!  Dizia  a  voz. 

Fiel  começou  a  uivar,  como  se  augurasse  morte 
de  pessoa. 

Era  um  homem  magro  e  esguio,  velho  e  cada- 


7i 

verico,  com  uma  comprida  foice  na  mão,  que  as- 
sim chamava.  Era  a  Morte. 

—  Que  queres  de  mim,  homem  de  Deus  ? 

- — Venho  cumprir  a  minha  tarefa.  Chegou  a 
tua  hora. 

—  Pois  já?    ' 

—  Admiras-te  ?  Que  te  importa  a  vida,  tu  que 
és  pobre  e  velha  e  enferma? 

—  Quanto  a  pobre,  contestou  Miséria,  tenho 
pão  na  arca  e  lenha  na  lareira.  Velha  ainda  não 
o  sou  porque  vou  fazer  pelo  Natal  cento  e  trinta 
annos,  e  com  respeito  a  ser  enferma  sou  tão  forte 
como  tu. 

—  O  teu  logar  é  entre  os  bemaventurados  ! 

—  Quando  alguém  morre,  costuma  dizer- se  : 
passou  d'esta  para  melhor.  Ora  eu  não  sei  se  no 
paraizo  a  vida  é  melhor.  Prefiro  a  de  cá.  A  ca- 
ridade official  é  uma  burla  para  quem  é  desgra- 
çado. Além  de  que  não  posso  separar-me  do  meu 
pobre  cão. 

—  Levarás  o  teu  cão ! 

Vendo  irrevogável  a  sentença  e  que  forçoso  era 
conformar-se  pediu  á  Morte  alguns  momentos  para 
vestir  o  fato,  que  usava  em  dias  domingueiros. 

Emquanto  cuidava  dos  modestos  atavios,  disse 
á  Morte : 

—  Queres  satisfazer-me  um  yltimo  desejo  ? 
Sobe  á  minha  nogueira  e  colhe-me  aquellas  nozes, 
que  lá  estão.  Será  o  ultimo  repasto,  que  faço 
n'este  mundo ! 

A  Morte  annuiu.  Trepou  e  colheu  as  nozes,  mas 
por  mais  esforços  que  fizesse,  não  pôde  descer. 

—  Ajuda-me,  Miséria,  que  não  posso  descer! 
Gritou  a  Morte. 

—  Olha,  sabes  o  que  te  digo  ?  É  que  não  tenho 


72 

pressa  de  ir  gozar  da  bemaventurança  eterna.  Dei- 
xa-te  ficar  ahi,  que  estás  bem !  Vou  ser  benemé- 
rita da  humanidade,  sem  que  ninguém  o  saiba. 
E  Miséria  fechou  a  porta  e  deixou  no  cerrado 
a  Morte  empoleirada  e  presa  na  nogueira,  cujos 
ramos,  como  se  fossem  os  braçtfs  de  um  enorme 
polvo,  a  cingiam  e  luctavam  com  vantagem  con- 
tra os  esforços  que  fazia  para  libertar-se. 


Decorridos  alguns  mezes  espantaram-se  os  mé- 
dicos de  ninguém  haver  fallecido.  Os  homoepathas 
attribuiam  ao  seu  systema  de  dynamização  ou  at- 
tenuação  dos  medicamentos  as  maravilhosas  curas. 
Preconisando  as  theorias  de  Hannemann,  alguns 
prescreviam  o  medicamento  na  mais  alta  attenua- 
ção,  recommendando  que  os  doentes  nem  sequer 
o  cheirassem,  mas  que  olhassem  apenas  para  el- 
le,  conservando-o  a  distancia  e  em  vidro  bem  ro« 
lhado. 

Os  médicos  dosimetricos,  pelo  contrario,  cla- 
mavam em  altas  vozes,  que  a  humanidade  se  tor- 
nara longeva,  graças  á  energia  dos  alcalóides, 
que  empregavam.  Os  allopathas  também  queriam 
a  gloria  para  si  proclamando  como  um  dogma  o 
seu  —  contraria  contrariis  curantur  e  oppondo-o 
ao  similia  similibus  curantur  dos  homoepathas.  Fi- 
nalmente hydropathas,  electropathas,  hydro-sodo- 
pathas  e  metallopathas  e  muitos  outros  com  patas 
e  sem  ellas,  todos  pretendiam  para  si  a  gloria  de 
haverem  salvado  da  morte  a  humanidade. 

Durou  este  estado  de  coisas  alguns  annos  e  a 
humanidade  começou  a  julgar-se  immortal.  Então 
celebraram- se  festas  de  publico  regosijo  e  de  um 


73 

extremo  ao  outro  da  terra  os  homens  exultavam 
de  contentes. 

Com  o  tempo  esse  contentamento  foi  desappare- 
cendo.  Velhos  de  150,  160  e  180  annos,  chegados 
á  ultima  edade  da  vida,  privados  da  vista,  do  ou- 
vido, do  tacto  e  do  gosto,  com  a  memoria  enfraque- 
cida pela  edade  e  pela  doença,  maldiziam  da  vida, 
e  desejavam  a  morte,  como  allivio  a  tantos  males. 

As  populações  tinham  augmentado  de  um  modo 
extraordinário.,  e  por  isso  a  existência  tornou-se 
mais  cara  e  mais  difficil.  Reis,  ministros  e  aucto- 
ridades  tornaram-se  inválidos  e  por  isso  os  gover- 
nos foram  fracos  e  não  puderam  obstar  a  que  se 
praticassem  todos  os  crimes.  Grandes  quadrilhas 
de  salteadores  roubavam,,  violavam,  incendiavam, 
mas  não  assassinavam,  porque  não  podiam. 

Finalmente  a  immortalidade  tornou-se  um  flagello 
e  os  homens  procuraram  a  morte,  com  o  mesmo 
ardor,  com  que  então  a  evitavam.  Médicos  eminen- 
tes foram  chamados,  não  para  curar,  mas  para 
matar,  e  apesar  dos  seus  esforços  e  de  toda  a  sua 
perícia  nada  conseguirain.  Chimicos  famosos  com- 
pozeram  venenos  subtis  e  fulminantes,  mas  sem 
effeito.  Os  elixires  da  morte  tiveram  voga  como 
d'antes  tinham  tido  os  elixires  de  longa  vida.  Aquel- 
les  famosos  instrumentos  de  supplicio  da  edade 
media,  que  torturavam  a  carne  e  os  ossos,  foram 
inefficazes.  Alguns  fizeram  abundante  uso  de  man- 
teiga falsificada  com  margarina,  do  vinho  fuchsio- 
nado,  do  pão  com  gesso  e  sulphato  de  cobre,  mas 
todos  estes  e  mais  géneros,  que  d'antes  tão  pre- 
judiciaes  eram  á  existência,  foram  impotentes 
para  produzirem  a  morte. 

N'uma  cidade  da  Europa,  cujo  nome  me  não 
lembra,  reuniu-se  um   Congresso  medico  contra  a 


74 

vida.  Como  dantes  esses  congressos  tinham  sido 
impotentes  contra  a  morte,  também  esse  o  foi  con- 
tra a  existência.  Propoz  esse  congresso  um  premio 
de  um  milhão  de  cruzados  a  quem  descobrisse  o 
remédio  infallivel  para  dar  a  morte.  Escreveram-se 
milhares  de  memorias,  mas  ninguém  atinou  com 
o  remédio. 

Por  este  tempo  havia  na  cidade  de  Braga  um 
doutor  medico  chamado  o  dr.  Priscus.  Uma  noite 
em  que  elle  recolhia  para  casa  pela  estrada,  que 
vae  de  Guimarães  a  Vizella.,  desviou-se  do  cami- 
nho e  embrenhou-se  entre  os  pinhaes.  Como  pas- 
sasse junto  da  nogueira  da  Miséria,  ouviu  uma 
voz  plangente,  que  dizia  : 

—  Quem  me  libertará  d'esta  prisão,  para  que 
eu  livre  a  terra  da  immortalidade,  que  é  muito 
peior  que  a  peste ! 

—  Eu !  disse  o  dr.  Priscus,  e  ia  estender  a  mão 
ao  seu  velho  amigo,  quando  a  Morte  lhe  disse  que 
lhe  não  tocasse,  mas  que  fosse  buscar  homens  ar- 
mados de  machados  para  cortarem  os  ramos  á  no- 
gueira. Retirou-se  o  medico  e  no  dia  seguinte,  ao 
alvorecer,  voltou  com  uns  poucos  de  rachadores, 
que  não  somente  não  conseguiram  cortar  a  noguei- 
ra, mas  tendo-se  imprudentemente  agarrado  aos 
ramos,  foram  enlaçados  por  estes  e  ficaram  pre- 
sos com  a  Morte.  Vieram  outros  e  outros  succes- 
sivamente  e  todos  tiveram  a  mesma  sorte.  Final- 
mente foi  tal  o  ruido  dos  seus  gritos  e  gemidos, 
que  Miséria,  ainda  que  extremamente  surda,  ou- 
viu-os  e  acudiu  dizendo : 

—  Sou  eu  a  única  pessoa  que  vos  pode  libertar ! 
Consinto,  mas  com  a  condição  de  que  a  Morte 

não  nos  virá  buscar  nem  a  mim  nem  a  Fiel,  em- 
quanto  eu  não  a  chamar  três  vezes. 


75 

—  Está  combinado !  E  a  Morte  desceu  e  como 
era  grande  a  tarefa,  e  todos  tinham  pressa  de  mor- 
rer, pediu  ao  seu  amigo  e  compadre  o  dr.  Pris- 
cus  e  aos  seus  collegas,  que  a  auxiliassem,  o  que 
elles  fizeram  de  boa  vontade. 

Quanto  a  Miséria,  não  consta  ainda  que  cha- 
masse pela  Morte  três  vezes.  E  por  isso  se  con* 
serva  e  conservará  no  mundo. 


Quando  saímos  do  eremitério  do  cura  de  S. 
Miguel  de  Villarinho,  era  noite.  A  lua  filtrava  os 
seus  raios  por  entre  o  arvoredo.  Atravez  dos  cam- 
pos, das  devezas  e  pinhaes  acompanhavam-nos 
os  alegres  cantares  das  mulheres  que  recolhiam 
da  romaria  de  S.  Adrião,  um  logar  próximo.  E 
aquellas  toadas  e  aquelles  sitios  deixaram-me  uma 
impressão  melancholica,  que  me  é  grato  recordar. 

Eis  algumas  d'essas  trovas,  que  me  ficaram  de 
memoria. 

Se  te  aborrece  o  querer-te, 
é  forçoso  o  desprezar-te. 
Ensina-me  a  aborrecer-te, 
que  eu  não  sei  senão  amar-te. 

Vae  meu  pobre  coração, 
conta  bem  o  que  padeces, 
para  ver  se  assim  mereces 
tenham  de  ti  compaixão. 

Tomara  quem  me  dissera 
com  toda  a  sinceridade, 
se  prevalece  a  mentira 
contra  a  força  da  verdade. 


im  U  I  O  MA  R     TORIIEZIO 


SEVERINA 


(A  Ex.ma  Sr.a  D.  Maria  Augusta 
de  Palma  Fernandes) 


SEVERINA 


Pelas  largas  charnecas,  devastadas  por  um  sol 
inclemente  e  fustigadas,  no  inverno,  pelo  ríspido 
sudoeste  que  se  levanta  do  mar  em  Ímpetos  ti- 
grinos,  chega-se  a  Sines,  uma  aldeia  da  Extre- 
madura,  cravada  na  aresta  do  oceano,  como  uma 
ilhota  inexplorada. 

Envolvera  na  sua  folhagem  verde-negra  o  am- 
plo pinheiral,  engrandece  a  com  o  seu  estreito 
abraço  o  magestoso  oceano  e  isola-a  do  mundo, 
das  suas  ruidosas  festas  e  das  suas  intermináveis 
luctas,  a  ausência  do  caminho  de  ferro. 

Foi  em  Sines  que  o  príncipe  D.  Miguel  de  Bra- 
gança embarcou  para  o  exilio,  d'onde  seguiu,  sem 
tornar  a  pizar  a  terra  da  pátria,  para  a  lúgubre 
viagem  do  tumulo. 

Nos  longos  seroes  do  inverno,  quando  as  ondas 
se  erguem  em  promontórios,  despedaçando-se  de 
encontro  ás  ribas  e  o  vento  rebenta  da  barra, 
bramindo  e  galopando  ao  longo  da  vasta  planície 
ondulante,  como  um  chacal  esfaimado,  os  velhos 
pescadores,  assentados  á  lareira,  contam  á  famí- 
lia, agrupada  na  muda  attitude  devota  dos  audi- 
tórios  ingénuos,    a   legenda   d'aquelle  pobre  rei 


80 

desthronado,   que  atravessou  a  villa  apedrejado 
pelos  homens  e  escarnecido  pelas  mulheres. 

Outros,  mais  enfronhados  em  historia,  porque 
Ih 'a  houvesse  ensinado  o  sr.  padre  prior,  citam, 
desvanecidos,  o  nome  de  Vasco  da  Gama,  orgu- 
lhando-se  de  terem  nascido  na  terra  que  serviu 
de  berço  ao  glorioso  navegador. 

—  O  apedrejado  não  foi  D.  Miguel,  emendou  o 
Manuel  Cherne,  defendendo  os  créditos  da  terra 
e  respondendo  ao  visinho,  que  pela  centésima 
vez  estivera  escabichando  no  escandaloso  episodio. 

Contou-me  o  sr.  Raposo,  filho  do  outro  que 
atirou  a  pedra,  vocês  sabem.  Pelos  modos,  o  Fran- 
cisco Maria  Raposo  tinha  sido  castigado,  em  La- 
mego, pelo  general  Lemos.  Era  sargento  de  mi- 
lícias e  deixara  que  um  prezo  lhe  passasse  o  pé. 
Vae  d'ahi  esperou  o  Lemos,  quando  elle  saía  da 
casa  do  padre  Galufo,  ao  lado  do  D.  Miguel,  e 
zás,  ferrou-lhe  com  um  balazio. 

—  E  a  mulher?  insistiu  o  visinho,  empenhado 
em  exaggerar  para  os  assombros  do  auditório,  o 
estupendo  acontecimento  de  um  rei,  corrido  á  pe- 
drada. 

—  A  mulher,  tornou  o  velho  Cherne,  cachim« 
bando,  e  estendendo  a  mão  descarnada  e  cabel- 
luda  sobre  a  cabeça  loira  do  neto,  agachado  aos 
seus  pés,  a  mulher  era  uma  alvoreada  (doida,  na 
phraseologia  alemtejana).  Fez-se  um  silencio;  no 
fundo  da  noite  escura  e  tempestuosa,  cerrando-se 
lá  fora  em  espessas  trevas,  arrastando-se  na  lo- 
brega  desolação  das  tristezas  sem  conforto,  o  mar 
resoou,  cantando  o  seu  requiem  gemebundo. 

—  Vamos  á  ceia,  Severina,  disse  o  velho  pes- 
cador, levantando  a  cabeça  encanecida  e  cravando 
o  olhar  mortiço  na  filha,  uma  esbelta  rapariga^ 


8i 

alta  e  loira,  que  retirava  n7esse  momento  das  bra- 
zas  o  tacho  da  sopa. 

II 

Havia  dez  annos  que  o  Manuel  Cherne  enviu- 
vara. 

Encontrara  a  companheira  agonisante,  em  uma 
manhã  de  outono,  ao  recolher  da  pesca  aos  lin- 
guados. Ficaram-lhe  duas  filhas  :  Maria  Perpetua, 
mulher  de  um  gageiro,  que  nunca  mais  regres- 
sara dos  Brazis ;  e  Severina,  uma  creança  de  15 
annos,  franzina,  delicada  e  branca,  como  uma 
poética  descendente  de  lords. 

—  Uma  dor  d'alma,  esta  enfézadinha  I  lamen- 
tava frequentes  vezes  o  velho,  sopesando  o  sacri- 
fício imposto  por  uma  boca,  e  comparando-o  á 
miséria  de  trabalho  que  se  poderia  esperar  d'esse 
pobre  corpo  anemico.  Maria  Perpetua,  ralada  de 
saudades  e  esfalfada  de  mourejar  de  sol  a  sol, 
caíra  em  uma  tisica,  que  lhe  ia  minando  lentamente 
a  vida. 

O  seu  homem,  ao  abalar-se  por  esses  mares 
fora,  deixára-lhe  nos  braços  três  creanças,  Um  mo- 
cito  e  duas  mocinhas ;  mas  a  Maria  Perpetua 
via-se  grega  com  a  lida  da  casa,  porque  em  vez 
de  três  tinha  cinco  filhos,  sendo  o  mais  velho  o 
pae  e  o  mais  novo  a  irmã. 

Luctou  em  quanto  pôde ;  afinal,  quedou-se 
pregada  na  cama,  d'onde  a  levantaram  para  o 
cemitério. 

O  Manuel  Cherne  estarreceu. 

Que  havia  de  ser  d'elle,  a  contas  com  esses 
quatro  innocentes? 

Quem  lhe  cuidaria  do  amanho  da  casa,  em 
quanto  andasse  pelas  aguas  dó  mar  ? 


82 

Quem  lhe  teria  o  almocinho  quente,  quando  elle 
recolhia  de  madrugada,  transido  de  frio,  depois 
da  pescaria  no  mar  alto,  sentindo  pesar -lhe  cada 
vez  mais  os  janeiros,  que  de  anno  para  anno  lhe 
dobravam  o  tronco  hercúleo  e,  não  raro,  lhe  pa- 
ralysavam  o  braço,  outr'ora  infatigável? 

Com  a  ajuda  da  Senhora  das  Salas,  advogada 
dos  pescadores  de  Sines,  esperava  ter  forças,  ape- 
sar de  velho,  para  ganhar  o  pão  dos  quatro  po- 
bresinhos. 

Mas  quem  havia  de  remendal-os,  de  preparar 
a  comida  e  de  acear  o  casinholo  onde  viviam  ? 

Um  desgosto,  que  o  acabrunhava,  que  o  leva- 
ria á  cova,  soluçava  o  velho,  abraçado  ao  cadá- 
ver da  filha.  Três  dias  depois,jfoi  bater  á  porta 
de  uma  visinha,  a  pedir-lhe  que  lhe  olhasse  pelos 
pequenos,  em  quanto  elle  estivesse  fora  de  casa. 

Mas  ao  voltar  da?  pesca,  a  visinha  saiu-lhe  ao 
encontro  e  referiu-lhe,  com  muitos  gestos,  que  a 
Severina  se  oppozera,  que  lhe  dera  mandado  de 
despejo,  que  lhe  assegurara  que  de  ninguém  pre- 
cisava, que  lhe  repetira  que  era  já  uma  mulher  e 
que  podia  trabalhar. 

Resolutamente,  com  uma  força  que  ninguém 
suspeitaria  n'essa  fraca  rapariguinha,  delgada  co- 
mo um  junco,  branca  e  fina  como  uma  flor  de 
cera,  a  Severina  chamou  a  si  todos  os  encargos 
caseiros  e  adoptou  os  três  pequenitos,  envolvendo-os 
na  ineftavel  ternura,  amparando-os  com  a  doce  e 
cariciosa  protecção  maternal,  de  que  só  as  mulhe- 
res na  terra  possuem  o  irrevelavel  segredo. 


83 


III 


Aos  25  annos,  a  Severina  attingira  o  pleno  des- 
abrochamento  da  sua  delicada  belleza  lirial. 

O  trabalho  desenvolvêra-lhe  as  formas  hesitan- 
tes, fortalecêra-lhe  o  sangue  debilitado  e  tocara  de 
um  fino  colorido  rosado  o  oval  pallido  doesse  rosto, 
recortado  em  alabastro,  de  que  a  caprichosa  na- 
tureza dotara,  por  engano,  a  filha  de  um  pesca- 
dor, e  que  faria  o  orgulho  de  uma  patricia. 

Nos  seus  grandes  olhos  azues,  de  uma  transpa- 
rência diamantina,  reflectia  a  grave  melanco- 
lia inseparável  d'esse  profundo  e  insondável  mar, 
que  de  pequenina  a  embalara  nas  suas  ondas 
soluçantes.  A  boca,  largamente  fendida  e  leve- 
mente descorada,  esboçava,  por  vezes,  o  sorriso 
triste  e  fugidio,  característico  das  resignações 
obscuras,  dos  holocaustos  silenciosos,  que  o  mundo 
não  suspeita. 

Os  sobrinhos,  que  ella  ensinara  a  ler,  quecreára 
nos  seus  braços  débeis,  a  quem  ministrara  o  via- 
tico  da  maternidade,  disputado  pela  morte,  ado- 
ravam-a. 

O  Manuel  Cherne  chamava-lhe  santinha,  reven- 
do-se,  vaidoso,  no  seu  casinholo,  açeado,  como  um 
palmito,  deíeitando-se  na  sua  velhice  amimada, 
cercada  de  todos  os  confortos,  compatíveis  com  a 
pobreza. 

—  Aquelle  migalho  de  gente!...  quem  tal  di- 
ria ! . . .  observava  aos  da  companha,  não  perdendo 
ensejo  de  encarecer  os  méritos  da  filha. 

Os  rapazes  ouviam,  compenetrados,  louvando  o 
juizo  da  menina  Severina. 

O  mais  interessado  era,  sem  nenhuma  duvida, 
o  Silvestre. 


84 

O  Silvestre  nascera  em  Grândola  e  viera,  ainda 
pequenote,  para  Sines. 

O  pae,  caseiro  do  conde  de  JB.,  quizera  enca- 
minhal-o  para  a  lavoira. 

Mas  o  rapaz  morria-se  pelo  mar  ;  as  ondas  exer- 
ciam no  seu  temperamento  de  marinheiro  innato, 
a  suggestiva  attracção  de  uma  caricia  voluptuosa, 
offerecida  por  uma  amante  inaccessivel.  Fugiu 
para  casa  do  tio  ;  e  umbello  dia,  sem  consultar  nin- 
guém, pediu  ao  Manuel  Cherne  que  o  levasse 
na  canoa,  declarando-lhe  que  queria  ser  pesca- 
dor. 

Na  tarde  em  que  falleceu  a  Maria  Perpetua,  o 
Silvestre  fora  offerecer  os  seus  serviços  á  menina 
Severina. 

Uma  súbita  e  irresistivel  sympathia,  feita  de 
intimas  afinidades,  apparentemente  incompatí- 
veis, declarou-se  logo  entre  esse  robusto  mocetão, 
bronzeado  pelas  brizas  marítimas,  e  essa  franzina 
rapariga,  esguia,  delicada  e  branca,  como  uma  es- 
tatueta de  marfim. 

Em  as  noites  de  verão,  prateadas  pelo  luar, 
que  punha  nà  larga  superfície  do  oceano  como 
que  uma  doce  e  mysteriosa  claridade  de  sonho,  o 
Silvestre  vinha  assentar-se  no  banco,  fronteiro  á 
porta  do  Manuel  Cherne,  onde  se  reunia  toda  a 
familia,  e  ahi  conversava  com  a  Severina. 

Elle,  tímido  e  desastrado,  limitava-se  a  contar- 
lhe  os  episódios  da  pesca,  não  ousando  nunca  al- 
ludir  ao  segredo  que  havia  tanto  escondia  no  co- 
ração, nem  dizer  uma  só  das  palavras  que  lhe 
affluiam  convulsivamente  aos  lábios. 

EUa,  serena  e  despreoccupada,  ouvia-o  e  sor- 
ria-lhe  com  o  seu  meigo  sorriso,  vagamente  dolo- 
roso. 


85 

O  velho,  muito  affeiçoado  ao  Silvestre,  o  seu 
braço  direito,  conforme  asseverava,  esfregava  as 
mãos  e  de  vaz  em  quando  referia  uma  historieta, 
allusiva  aos  bons  tempos  da  mocidade,  ou  calcu- 
lava os  prós  e  contras  da  pescaria,  que  deveria 
realisar-se  no  dia  immediato. 

Nos  seroes  de  inverno,  agrupavam-se  todos  á 
beira  da  chaminé,  onde  crepitava  a  lenha,  des- 
pedindo clarões  rubros  que  purpureavam  as  ca- 
ras. 

E  lá  fora,  o  furacão  assobiava  nas  desertas  lan* 
ães  e  nas  dunas,  erguidas  na  sua  espectral  alvura 
como  um  cortejo  de.  fantasmas. 

A  espaços,  o  mar  estrondeava  de  encontro  aos 
rochedos,  como  uma  salva  de  artilheria  disparada 
por  uma  armada  invencivel,  ou  gemia,  arrastando 
na  praia  o  seu  longo  soluço  dilacerante. 

Instinctivamente,  as  crianças  coziam-se  com  a 
parede  ou  embrulhavam-se  nas  saias  da  Severina, 
como  que  a  pedir-lhe  protecção,  e  todos  fallavam 
a  meia  voz,  cedendo  á  impressão  de  terror  que 
vinha  da  noute  escura,  do  céo  trágico,  do  mar 
ameaçador  e  do  vento  ululante. 

N'essas  horas  de  inconsciente  pavor,  transmit- 
tido  pelos  elementos  sublevados,  exercendo  a  sua 
influencia  dominadora  sobre  o  miserável  ser  hu- 
mano, Silvestre  fitava  insistentemente  Severina  e 
recebia  no  peito,  como  uma  caricia  lenta,  de  uma 
doçura  divinamente  consoladora,  o  seu  olhar  azul 
e  calmo,  o  seu  meigo  sorriso,  vagamente  doloroso. 

IV 

Que    estranha   tristeza    annuviava    o    coração 
d'essa  bonita  rapariga,  ardentemente  amada  por 
6 


\ 


86 

um  bello  mocetão,  vigoroso,  sadio  e  morigerado, 
a  ponto  de  servir  de  exemplo  a  muitos? 

A  nevrose  das  cidades,  que  faz  da  mulher  actual 
a  eterna  desequilibrada,  a  infeliz  nostálgica,  prea- 
divinhada  pelo  compassivo  Michelet,  estenderia  o 
seu  mórbido  contagio  até  á  humí!3e  aldeia  de  Si- 
nes, perdida  nos  confins  da  Extremadura  ? 

Severina  era,  como  já  disse,  uma  doente,  dege- 
nerado producto  de  um  remoto  atavismo,  onde  a 
paciente  investigação  retrospectiva  de  Zola  desco- 
briria por  ventura  o  documento  humano]  susce- 
ptível de  elucidar-nos  esse  ponto  obscuro. 

A  mesma  caprichosa  natureza  que  lhe  afidal- 
gára  as  formas,  inoculara  n'essaalma  singela e  igno- 
rante, alheia  aos  refinamentos  da  civilisação  e 
privada  da  fecunda  cultura  intellectual,  um  gér- 
men de  revolta. 

Inconscientemente,  Severina  sentia  pezar  sobre 
toda  a  sua  vida  uma  lei  illogica,  que  a  desviava 
de  um  futuro,  vagamente  ambicionado. 

Adorava  os  sobrinhos,  que  creára  como  se  fos- 
sem seus  filhos,  estimava  o  pae,  gostava  do  Sil- 
vestre, comprehendia  o  inapreciável  valor  da 
aífeição  dedicada,  silenciosa  e  inalterável  que  lhe 
votava  esse  excellente  rapaz ;  a  sua  innata  bon- 
dade revelava-lhe,  intuitivamente,  todos  os  the- 
zouros  de  boa  e  paciente  ternura  que  existiam, 
latentes,  no  coração  do  Silvestre ;  sabia  que  a  vida 
d7elle  se  absorvia  toda  n'esse  amor  e  que  lh'a  sa- 
crificaria, se  fosse  preciso  ;  estremecia-o,  queria- 
lhe  como  a  um  irmão,  admirava  a  força  de  res- 
peito que  o  pobre  rapaz  impunha,  heroicamente, 
á  intensidade  do  amor ;  entretanto,  nenhum  des- 
ses alfectos  lograva  preencher  o  insondável  vácuo 
da  sua  alma,  inquieta  e  perturbada. 


87 

Severina  esperava  sempre,  sem  saber  porque, 
sem  o  confessar  a  si  própria,  alguma  cousa,  que 
não  chegava  nunca. 

Seria  um  amor  lendário,  personificado,  como 
no  Rêve,  em  um  príncipe  descendente  de  cardeaes  ? 

Mas  se  ella  nem  sequer  suspeitava  a  existên- 
cia das  paixões  românticas,  que  inspiram  os  gran- 
des artistas. 

Seria  a  riqueza ;  seria  a  satisfação  da  vaidade, 
o  iman  que  exerce  a  sua  imperiosa  attracção  so- 
bre todas  as  mulheres  ? 

Mas  a  singela  filha  de  um  pescador  não  podia 
conhecer  o  valor  do  oiro,  applicado  ao  voluptuoso 
epicurismo  da  vaidade. 

Ás  vezes,  ao  cair  da  noite,  Severina  gostava 
de  divagar  na  praia,  acompanhada  dos  sobrinhos. 

Emquanto  as  creanças  rebolavam  na  areia, 
rindo,  saltando,  correndo  ao  desafio,  ella  queda- 
va-se  immovel  e  pensativa,  perfilando  o  seu  vulto 
esguio  na  clara  luz  argêntea  do  luar,  que  se  alas- 
trava na  praia. 

O  seu  obscuro  instincto  de  artista  acordava 
vagamente  em  face  da  noite  estreitada  e  do  largo 
mar  ondulante.  O  olhar  de  Severina  percorria  a 
linha  alvejante  das  casas,  desdobrando-se,  como 
um  collar  de  pérolas,  sobre  o  crystal  das  ondas ; 
detinha-se  no  Revelim,  o  colosso  de  granito,  re- 
saltando  com  o  seu  contorno  anguloso  do  azul  dia* 
phano ;  em  seguida,  perdia-se  na  immensidade 
do  oceano,  esfumado  ao  longe  em  um  penumbroso 
fundo  de  aguarella  e  absorvia-se  na  visão  do  in- 
finito, sentindo  confusamente,  sem  ter  consciência 
da  impressão  que  a  agitava,  da  admiração  que  a 
possuía,  o  indefinido  terror  do  incognoscivel. 

Voltava-se  depois  para  o  Pontal,  curvado  para 


88 

o  abysmo,  como  uma  gigantesca  esphinge,  e  fitava 
longamente  as  anfractuosidades  do  rochedo,  immer- 
gindo  da  agua  espelhante  e  recortando  na  luz  opa- 
lina do  luar  a  sua  negra  silhoetta  de  monstro  pe- 
treficado. 

E  nessas  horas  de  silenciosa  abstracção,  Seve- 
rina  esquecia  o  Silvestre,  a  sua  aldeia,  a  condi- 
ção humilde  em  que  nascera,  o  ignorado  cantinho 
da  terra  em  que  deveria  morrer  e  viver. 

•A  voz  dolente  das  ondas,  desenrolando-se  na 
praia  e  quebrando-se  de  encontro  ás  ribas,  soava- 
lhe  ao  ouvido  como  um  rythmo  fantástico  que  a 
arrebatava  em  espirito  para  uma  região  desco- 
nhecida. Pungia-a  o  nostálgico  anceio,  o  torturante 
desejo  de  uma  ignorada  felicidade,  que  ella  não 
sabia  onde  existia  nem  de  que  elementos  era  for- 
mada, mas  que  a  chamava  de  longe,  fugindo-lhe 
sem  cessar. 

Então  Severina,  tremia,  estendia  os  braços,  na 
attitude  de  quem  supplica,  e  dos  seus  límpidos 
olhos  azues,  franjados  de  compridas  pestanas,  des- 
prendiam-se  duas  lagrimas,  que  lhe  rolavam  nas 
faces  pallidas. 

—  Tia,  gritava  um  dos  três  pequenitos,  tenho 
frio ! 

—  Cala-te,  choramigava  o  mais  novo,  deixa-me 
brincar. 

Severina  corria  para  as  creanças,  abria-lhes  os 
braços,  apertava-as  ao  peito  e  beijava-as  carinho- 
samente, deleitando-se  no  amoravel  contacto  des- 
sas três  cabecinhas,  que  afugentavam  a  visão  ob- 
cecante. 


89 


N'esse  domingo  de  dezembro,  o  Silvestre,  ves- 
tido de  ponto  em  branco,  viera  procurar  o  Ma- 
nuel Cherne. 

A  Severina  tinha  ido  á  missa ;  as  crianças  cor- 
riam atraz  dos  patos  e  gallinhas,  flanadores  habi- 
tuaes  das  estreitas  ruas  de  Sines ;  o  velho  pesca- 
dor, assentado  no  banco  fronteiro  á  casa,  aque- 
cia-se  ao  sol. 

—  Olá,  meu  rapazola,  bradou  o  Manuel,  ca- 
chimbando, como  tu  vens  catita ! 

Timidamente,  o  Silvestre  approximou-se  ;  tirara 
o  chapéo  e  com  um  lenço  encarnado  limpava  a 
testa,  inundada  de  suor. 

—  Homem,  notou  o  Manuel,  piscando  os  olhos, 
pois  tu  suas  com  este  frio  de  levar  coiro  e  ca- 
bello? 

Fez-se  um  silencio.  O  Silvestre  assentára-se  no 
banco,  sem  proferir  palavra.  O  velho  pescador 
continuava  a  fital-o,  rindo-se  maliciosamente. 

O  sol  nimbava-os,  avivando-lhes  a  cor  argilosa 
e  imprimindo-lhes  o  firme  desenho  rectilíneo  de 
um  grupo  de  terra  cota. 

E  no  amplo  espaço,  vaporisado  por  uma  ténue 
neblina  que  azulejava  os  longes,  adelgaçando-os  em 
uma  fluidez  aquática,  o  mar  rugia  lamentosamen- 
te,  executando  o  seu  requiem  gemebundo. 

—  Não  queres  esperar  pela  Severina  ?  perguntou 
o  velho  ao  Silvestre,  que  se  levantara  na  mesma 
attitude  taciturna  e  contrafeita,  enrolando  as  abas 
do  chapéo  e  cravando  os  olhos  no  chão. 

Aquelle  nome,  que  resoára  até  ao  mais  in- 
timo do  seu  ser,  respondendo  a  todos  os  sen- 
timentos que  o  preoccupavatn,  foi  a  chave  mys- 


90 

teriosa  que  lhe  descerrou  a  boca,  obstinadamente 
muda. 

—  Tio  Cherne,  começou,  tartamudeando,  eu  vi- 
nha dizer- lhe. . . 

—  Acaba,  homem,  acudiu  o  outro,  salivando, 
tens  a  lingua  pregada  ao  céo  da  boca  ? 

—  Sim,  eu  vinha  pedir-lhe. . .  e  o  Silvestre  he- 
sitou, não  se  atrevendo  a  formular  o  audacioso  de- 
sejo que  alli  o  trouxera. 

—  Valha-te  Deus,  volveu  o  Cherne,  batendo-lhe 
no  hombro,  tu  acobardas-te  de  fallar  commigo? 

—  Não  é  isso,  tio  Cherne,  mas  como  o  outro 
que  diz,  sim,  vossemecê  bem  percebe. . . 

—  Percebo  que  és  um  pedaço  d'asno,  rematou 
o  velho,  soltando  uma  gargalhada. 

—  Pois  lá  vae,  exclamou  o  Silvestre,  desempe- 
nando  a  estatura,  como  um  homem  disposto  a  af- 
frontar  um  perigo  mortal.  Eu  gosto  da  menina  Se- 
verina  e  vinha  perguntar-lhe  se  seria  do  seu  agrado 
que  nos  casássemos. 

O  pedido  não  surprehendeu  o  Manuel  Cherne. 
Havia  muito  que  elle  notara  a  sympathia  do  Sil- 
vestre. Por  vezes,  sorrira-lhe  a  idéa  d'essa  união, 
que  respondia  aos  seus  mais  secretos  votos. 

Com  tanto  que  a  rapariga  não  se  opponha,  con- 
cluía, ponderando  nas  exquisitices  da  filha. 

Ergueu-se  de  golpe  e  abraçando  o  Silvestre, 
prometteu-lhe  que  fallaria  á  Severina. 

Ella  ouviu  o  pae  e  com  o  seu  meigo  sorriso  do- 
loroso respondeu,  que  casaria  com  o  Silvestre, 
se  tal  era  a  vontade  de  ambos. 

Aprazou-se  a  ceremonia  para  o  mez  de  S. 
João. 

O  Silvestre  parecia  um  ébrio,  cambaleava,  fal- 
lava  só,  ria  sem  motivo  e  tinha  infantilidades  que 


91 

contrastravam  com  a  musculosa  estructura  (Tesse 
corpo  de  athleta,  fundido  em  bronze. 

VI 

Aquella  lua  nova  do  mez  de  janeiro  dera  agua 
pela  barba  aos  pescadores. 

O  vento  e  o  mar  batiam-se  desesperadamente, 
empenhados  em  uma  lucta  titânica.  Logo  ao  fechar 
da  noite,  a  espessa  cerração  embrulhava  as  on- 
das em  uma  mortalha  de  largas  dobras  roçagan- 
tes. E  o  mar  crescia  em  acastellados  vagalhões, 
ameaçando  devorar  Sines. 

Por  espaço  de  muitos  dias,  os  pescadores  não 
se  aventuraram  a  ir  ao  mar. 

O  combate  era  impossível  entre  o  homem,  mí- 
sero átomo  perdido  na  immensidade,  e  o  monstro, 
indomado  e  indomável,  prompto  a  engulil-o. 

O  Manuel  Cherne  ficára-se  no  casinholo,  a  re- 
mendar as  redes,  emquanto  o  Silvestre  aprovei- 
tava a  primeira  aberta^  para  se  fazer  ao  largo. 

Amanhecera  um  dia  chuvoso  e  encarvoado. 

Do  céo  baixo,  acolchoado  de  nuvens  pardacen- 
tas, descia  lentamente  a  lúgubre  tristeza  das  ca- 
tastrophes  eminentes. 

Sentia-se  o  convulsivo  dilaceramento  de  uma 
agonia  tumultuosa  n'esse  oceano  embravecido,  ca- 
vado de  medonhos  vórtices,  alteando-se,  por  ve- 
zes, em  montanhas  de  espuma,  que  pareciam 
lamber  as  nuvens,  vergastado  pelo  vento  da  tem- 
pestade que  lhe  arrancava  rugidos  cavernosos. 

A's  duas  horas  da  tarde,  a  cerração  augmen- 
tára,  confundindo  a  terra  e  o  mar  na  mesma  tinta 
aquosa,  cobrindo-os  com  o  mesmo  sudário  plúmbeo, 
apertando-os  na  mesma  cinta  de  ferro  sulcada, 


92 

a  espaços,  pela  cbamma  azulada  dos  relâmpagos. 

—  O  lobo  anda  assanhado !  comraentára  o 
Cherne  para  o  vizinho,  que  viera  pedir-lhe  uma 
pitada  de  rapé. 

O  outro  abanara  a  cabeça,  compenetrado,  es- 
boçando um  largo  gesto  de  acabrunhamento. 

Ao  anoitecer,  correu  em  Sines  que  um  vapor  hes- 
panhol,  procedente  de  Gibraltar,  viera  descair  so- 
bre os  rochedos  da  Perceveira,  erguidos  entre  o 
farol  e  o  forte. 

Ao  clamor  dos  náufragos,  responderam  os  gritos 
dos  pescadores  ;  mas  uns  e  outros  perderam-se  no 
estrondear  das  ondas;  despedaçando-se  de  encon- 
tro ás  ribas. 

O  Silvestre  saltara  para  a  canoa  e  remara,  de- 
sesperadamente, na  direcção  da  Perceveira. 

Immergindo  na  densa  cerração,  a  carcassa  do 
vapor  desenhava-se  vagamente,  como  um  ponto 
negro  perdido  no  infinito  do  céo  e  das  aguas. 

A  canoa  do  Silvestre,  sacudida  pelas  ondas, 
batida  pelo  sul,  revoluteava  ás  cegas,  sem  gover- 
no, como  uma  gaivota  desazada.  De  instante  a 
instante,  despenhava-se  no  abysmo  e  desappare- 
cia,  para  reapparecer  em  seguida,  boiando  á  tona 
d'agua,  arrastando-se  ao  acaso  n'esse  vasto  pélago 
enfurecido. 

De  súbito,  um  pé  de  vento  voltou-a. 

Então  o  Silvestre  descançou  alguns  instantes, 
deitado  ao  lume  d'agua. 

Em  seguida,  invocou  a  Senhora  das  Salas,  pro- 
nunciou o  nome  de  Severina  e  com  os  seus  bra- 
ços musculosos  cortou  as  vagas,  nadando  vigoro- 
samente. 

O  vento  amainara ;  o  nevoeiro  abrira  uma  cla- 
reira, àtravéz  da  qual  se  avistava  uma  nesga  de 


93 

céo  azul,  doirada  pela  tremula  scintillaçâo  de  uma 
estrella. 

Esporeado  pelas  ondas,  o  negro  esqueleto  do 
vapor  cambaleava,  estorcendo-se  em  deslocações 
fumnambulescas.  , 

O  Silvestre  nadava  sempre,  tentando  approxi- 
mar-se  da  praia. 

N'essa  occasião,  sentiu-se  empolgado  pela  mão 
crispada  de  alguém  que  pesava  sobre  os  seus 
hombros,  como  uma  massa  inerte. 

Reunindo  as  forças  que  começavam  a  atrai- 
çoal-o,  levantou  a  cabeça,  aspirou  o  ar  que  lhe 
faltava,  e  sem  tentar  fugir  ao  mortal  abraço  d'esse 
corpo  de  afogado,  que  se  lhe  collára  á  pelle,  con- 
tinuou a  nadar.  Mas  a  vista  obscurecia-se-lhe,  os 
braços  e  as  pernas,  inteiriçados,  perdiam  a  agili- 
dade e  não  deslocavam  a  agua,  que  o  arrastava 
lentamente  para  o  trágico  sorvedouro. 

De  repente,  soou-lhe  aos  ouvidos,  como  um  lon- 
ginquo  zumbido,  o  murmúrio  de  vozes,  fechou  os 
olhos  e  mergulhou  nas  trevas,  que  o  cobriram, 
apagando-lhe  a  consciência  da  vida. 

VII 

Chegara  a  primavera,  lavando  os  céos  brumo- 
sos e  mosqueando  as  charnecas  e  o  pinhal  com 
viçosos  ramilhetes  de  rosmaninho,  malmequeres  e 
giesta. 

A  renovação  começava  a  agitar  surdamente  os 
flancos  da  terra,  que  se  abriam  em  sulcos  fecun- 
dos ao  contacto  da  charrua. 

O  mar  tinha  a  doçura  enternecida  do  convales- 
cente que  acaba  de  debater-se  nos  paroxismos 
de  uma  agonia  tumultuosa. 


94 

José  de  Lumbrelas,  salvo  pelo  Silvestre,  viera 
com  elle  para  casa  do  Manuel  Cherne. 

Severina  tratara  desveladamente  dos  dois  ho- 
mens, prodigalisando-lhes  todos  os  cuidados  de 
uma  enfermeira  solicita,  infatigável  e  intelligente 
como  poucas. 

A  gente  da  canoa,  que  acudira  a  tempo  de  pes- 
car os  dois  náufragos,  fora  largamente  retribuída 
pelo  hespanhol,  um  esbelto  rapaz  de  25  annos,  en- 
genheiro de  pontes  e  calçadas,  que  visitava  Portu- 
gal em  viagem  de  estudo. 

Quinze  dias  depois  do  naufrágio,  José  de  Lum- 
brelas  fora  hospedar-se  para  casa  de  um  negociante 
inglez,  correspondente  do  pae.  E  alli  se  deixara 
ficar,  encantado,  affirmava  elle,  com  o  aspecto, 
desartificiosamente  pittoresco,  d'esse  burgo  de  pes- 
cadores, adormecido  no  seio  do  oceano. 

Ao  entardecer,  Lumbrelas  ia  ver  os  seus  ami- 
gos, os  seus  salvadores,  conforme  os  designava. 

Brincava  com  as  crianças,  que  lhe  chamavam 
o  sr.  Pepe,  conversava  com  o  Manuel  Cherne,  per- 
guntava pelo  Silvestre  e,  por  vezes,  os  seus  gran- 
des olhos  pretos,  que  lhe  illuminavam  a  tez  mo- 
rena, sombreada  pela  barba  á  Guise,  cravavam-se 
ardentemente  em  Severina. 

A  filha  do  pescador  ouvia>o  silenciosa,  enlevada 
na  sonoridade  d'essa  voz  de  homem  finamente 
educado,  exprimindo  no  viril  idioma  de  Cervantes 
idéas  elevadas,  phrases  de  uma  estranha  graça 
suggestiva. 

Só,  no  seu  pequenino  quarto,  Severina  via-o,  fal- 
lava-lhe,  confiava-lhe  a  torturante  historia  da  sua 
mocidade,  perseguida  por  uma  visão  allucinadora ; 
via  no  escuro  da  noite  esses  dois  olhos  negros, 
profundos  como  o  oceano,  que  a  deslumbravam. 


95 

O  engenheiro  começara  a  fallar  portuguez,  ex- 
pressamente, explicava  elle,  para  ser  entendido 
pelos  seus  amigos. 

Pouco  a  pouco,  foram-se  amiudando  as  visi- 
tas. 

Pepe  ficava- se  dias  seguidos  em  casa  do  Ma- 
nuel Cherne,  captivo  do  encanto  de  Severina,  en- 
volvendo-a  na  irresistível  fascinação  do  seu  amor, 
provando-lh?o  a  cada  instante  em  attenções  de 
uma  delicadeza  reservada  e  por  isso  mesmo  du- 
plamente perigosa. 

Por  esse  tempo,  o  Silvestre,  que  passava  sema- 
nas inteiras  no  mar,  apparecendo  raras  vezes  em 
casa  da  noiva,  —  sempre  taciturno  e  cabisbaixo,  - — 
veio  participar  ao  Manuel  Cherne  que  resolvera 
ir  tentar  fortuna  ao  Brazil,  acceitando  para  o  ef- 
feito  a  proposta  que  lhe  fizera  o  capitão  de  um 
brigue  hollandez,  ao  engajal-o  para  moço  de 
bordo. 

O  velho  tentou  dissuadil-o,  recordou-lhe  a  pro- 
jectada união  com  a  filha,  encarregou  Severina 
de  convencel-o. 

Mas  o  Silvestre  insistiu  no  seu  propósito,  pre- 
textando que  só  casaria  quando  pudesse  offerecer 
á  menina  Severina  um  marido,  que  lhe  desse  a 
estimação  que  ella  merecia. 

Quatro  dias  depois  largava  de  Sines,  direito  a 
Lisboa,  o  brigue  que  levava  o  Silvestre,  avistada 
família  Cherne,  agrupada  na  praia,  acenando-lhe, 
pequenos  e  grandes,  o  adeus  saudoso,  que  punha 
lagrimas  nos  olhos  de  todos,  emquanto  o  pobre 
rapaz,  voltado  para  a  terra  onde  lhe  ficava  para 
sempre  morta  a  primeira  e  a  única  felicidade  da 
sua  vida,  chorava  convulsivamente. 


96 


VIII 


Muito  antes  de  Pepe  lhe  declarar  que  a  ama- 
va, Severina  comprehendera  que  se  operara  na 
sua  vida  um  súbito  reviramento,  que  a  transfigu- 
rara. 

A  sua  alma,  doentiamente  perturbada,  repou- 
sara afinal  na  divina  realisação  do  sonho,  até  ali 
inaccessivel. 

A  visão  huinanisara-se ;  o  Deus  ignoto  viera, 
atravez  das  ondas,  ao  seu  caminho,  personificado 
n'esse  homem  bello  como  um  principe,  eloquente 
como  um  poeta,  delicado  e  meigo  como  um  ar- 
chanjo. 

No  seu  coração,  pungido  de  secretos  anceios, 
fizera-se  uma  paz  ineffavel  e  fulgira  uma  luz  re- 
demptora. 

E  desde  então,  Severina  vivia  em  um  mundo  á 
parte,  absorta  na  muda  adoração  do  seu  vivo  ideal, 
estranha  a  todos  os  desencantos  da  terra,  alheia 
a  todos  os  obstáculos  que  a  distanciavam  do  ente 
amado,  esquecendo  a  dor  da  eterna  separação,  sus- 
pensa sobre  a  sua  cabeça,  como  uma  sinistra 
ameaça. 

Uma  manhã  de  maio  que  o  Manuel  Cherne 
aproveitara  para  a  pesca  dos  linguados,  José  de 
Lumbrelas  veio  ler  a  Severina  uma  carta  do  pae, 
em  que  o  velho  negociante  ordenava  ao  filho  que 
partisse  sem  demora  para  Barcelona,  onde  um  ne- 
gocio urgente  solicitava  a  sua  presença. 

—  E  o  senhor  obedece-lhe?  perguntou  Seve- 
rina, lívida  como  uma  defunta. 

—  Que  remédio !  volveu  elle,  fitando-a  apaixo- 
nadamente ;  depois,  curvando-se,  dominando-a  sob 


97 

a  imperiosa  fascinação  do  olhar,  murmurou-lhe  ao 
ouvido  :  Venha  commigo  para  Hespanha  ;  amal-a- 
hei  sempre,  sempre ! 

—  Sim !  balbuciou  Severina,  na  inconsciência 
da  commoção  que  a  prostrava  inerte,  que  a  cegava 
e  entontecia,. 

Então  elle  beijou-a  doidamente,  supplicando-lhe 
que  o  esperasse  ás  11  horas,  explicando-lhe  que 
n'essa  mesma  noite  partiriam  para  Lisboa. 

Durante  as  horas  que  se  seguiram,  Severina 
moveu-se  como  uma  somnambula,  indifferente  a 
tudo  que  a  rodeava. 

A's  11  horas,  José  de  Lumbrelas  fez  o  signal 
convencionado. 

Severina  ergueu-se  na  sua  pallidez  espectral  e 
abriu  automaticamente  a  porta,  absorta  no  mes- 
mo extasiante  sonho,  atravéz  do  qual  pronunciara 
a  palavra  que  deveria  decidir  de  todo  o  seu  des- 
tino. 

Lá  fora,  o  luar  argentava  a  linha  das  casas,  a 
massa  escura  dos  pinheiros  e  o  perfil  granítico  dos 
rochedos,  e  na  doce  e  religiosa  serenidade  da  noite 
estrellada  o  mar  cantava  o  seu  requiem  geme- 
bundo. 

Elle  enlaçou-a  nos  braços  sofregamente  e  trans- 
pôz  o  limiar  do  humilde  casinholo,  onde  o  velho 
pescador  e  as  três  creanças  dormiam  socegada- 
mente. 

De  repente,  uma  fresca  voz  de  creança  gritou : 

—  Tia  Severina,  deita- te  ao  pé  de  mim,  tenho 
medo! 

Ella  estremeceu,  sacudida  pela  violenta  reac- 
ção de  todo  o  seu  organismo,  acordado  á  impe- 
riosa voz  do  dever. 

Recuou  aterrada,  esfregou  os  olhos  e  levantando 


\y 


98 

o  braço  na  direcção  da  estrada  que  se  desenro- 
lava ao  longe,  disse  para  o  hespanhol,  que  a 
olhava  estupefacto : 

—  Pode  retirar -se.  Eu  não  deixo  aquelles  inno- 
centes,  os  meus  filhos !  A  mãe,  accrescentou,  le- 
vantando para  o  céo  os  seus  limpidos  olhos  azues, 
húmidos  de  lagrimas,  a  pobre  mãe  não  m'o  per- 
doaria. 

E  fechou-lhe  a  porta,  como  se  fecha  a  pedra 
de  um  tumulo  sobre  os  restos  inanimados  de  um 
morto. 


ALBERTO  TELLES 


A  noite  de  3  de  setembro  de  1758 


O  crime  existiu.  Os  tiros  eram  para  el-rei ; 
e  os  que  padeceram  foram  réos. 

Rebello  da  Silva  —  Lagrimas  e  Thesou- 
ros,  pag.  57. 


A  noite  de  3  de  setembro  de  1758 


Na  manha  de  4  de  setembro  de  1758  espalhou- 
se  em  Lisboa  um  boato  atterrador.  Dizia-se,  a 
principio,  que  na  véspera  á  noite  tinham  dispa- 
rado uns  tiros  contra  Pedro  Teixeira,  creado  par- 
ticular do  rei ;  mas  depois  correu  com  insistência 
que  haviam  sido  dados  em  D.  José  I,  e  foi  esta 
ultima  atoarda  a  que  por  fim  prevaleceu. 

A  voz  geral  attribuiu  logo  aos  Tavoras  o  sa- 
crílego attentado,  e  essa  família  da  primeira  no- 
breza, que  tinha  o  seu  brazão  de  armas  na  sala 
dos  Cervos  do  paço  real  de  Cintra,  era  então  bas- 
tante numerosa,  pois  d'ella  faziam  parte  os  mar- 
quezes  do  mesmo  titulo,  pae  e  filho,  as  marque- 
zas,  D.  Leonor  e  D.  Tbereza,  —  José  Maria  de 
Távora  e  suas  irmãs  a  marqueza-de  Alorna  e  a 
viscondessa  de  Athouguia;  —  a  duqueza  de  Aveiro 
e  a  condessa  da  Ribeira  Grande,  o  cónego  José 
Maria  de  Távora,  Manuel,  João  e  Nuno  Gaspar 
de  Távora,  os  quaes  todos  quatro  estiveram  en- 
cerrados no  forte  da  Junqueira,  onde  um  d'elles 
(João)  acabou  os  seus  dias  e  foi  sepultado. 

O  facto  de  se  terem  dado  os  tiros  no  rei  é,  en- 
tre todos  os  lances  d'esse  mysterioso  drama,  o  pri- 
7 


402 

meiro  que  foi  posto  em  duvida,  tendo  sido  lançado 
á  conta  de  enredos  e  manejos  de  Sebastião  José 
de  Carvalho  e  Mello,  depois  conde  de  Oeiras  e 
marquez  de  Pombal,  a  quem  o  partido  da  aristo- 
cracia e  dos  jesuítas  julgou  conveniente  mimosear 
com  a  invenção  de  uma  pavorosa,  como  hoje  di- 
ríamos, para  se  assenhorear  ainda  mais  do  animo 
do  rei,  abatendo-o  e  dominando-o  pelo  terror.  To- 
davia, quando  não  existissem  os  importantes  do- 
cumentos, que  vamos  transcrever  em  parte,  e  ou- 
tros testemunhos  contemporâneos  dignos  de  fé, 
bastaria  para  comprovar  esse  triste  successo  o 
ofíicio  em  cifra  do  ministro  de  França  em  Lisboa, 
M.  de  Saint-Julien,  o  qual,  transmittindo  ao  seu 
governo  no  dia  12  de  setembro  a  noticia  do  atten- 
tado,  havia  de  certo  obtido  as  suas  informações 
de  fonte  limpa. 

Esse  ofíicio,  conforme  o  extracto  publicado  pelo 
visconde  de  Santarém  a  pag.  123  do  tomo  vi  do 
seu  Quadro  elementar  das  relações  politicas  de 
Portugal,  é  como  se  segue : 

«...  em  cifra  lhe  diz  que  era  com  horror  que 
dava  parte  da  verdadeira  causa  d'aquella  doença, 
sobre  a  qual  se  guardava  o  maior  segredo,  sendo 
que  a  supposta  contusão  era  uma  ferida  no  braço 
e  espádua  direita  occasionada  por  dois  tiros  de 
bacamarte  que  atiraram  á  carruagem  de  el-rei.  — 
Que,  segundo  se  dizia,  eram  seis  os  assassinos,  bem 
que  fossem  só  três  os  bacamartes  ;  o  primeiro 
destinado  para  o  boleeiro  não  fez  fogo  ;  os  dois 
outros  foram  disparados  sobre  a  carruagem,  que 
ficou  cravada  de  balas.  Os  assassinos  estavam  a 
cavallo. » 

Sobre  o  caso  dos  tiros  havia  duas  testemunhas 
de  vista:  o  sargento-mór  Pedro  Teixeira,  confi- 


103 

dente  do  rei,  a  quem  acompanhava  na  referida 
noite  dentro  da  sege,  e  o  boleeiro  Custodio  da 
Costa. 

Ambos  foram  inquiridos  no  palácio  da  Ajuda 
a  2  de  janeiro  de  1759  pelo  desembargador  Pe- 
dro Gonçalves  Cordeiro  Pereira,  na  presença 
dos  três  secretários  de  estado  Sebastião  José  de 
Carvalho  e  Mello,  D.  Luiz  da  Cunha  e  Thomé 
Joaquim  da  Costa  Corte  Real. 

Pedro  Teixeira  «disse  que,  vindo  elle  testemu- 
nha na  carruagem  com  el-rei  nosso  senhor  na  noite 
infaustissima  de  que  se  trata  para  entrar  pela  porta 
da  quinta  de  Baixo  ('palácio  de  Belém) ,  que  está 
junto  á  travessa  do  Guarda-inór  da  Saúde,  e  pre- 
tendendo abrir  a  dita  porta  achara  que  lhe  não 
era  possível  em  razão  de  que  haviam  entupido  o 
logar  por  onde  a  chave  entra  na  dita  fechadura, 
de  tal  sorte  que  n'ella  não  poude  nunca  intròdu- 
zir  a  referida  chave  ;  que,  porém,  fazendo  alim- 
par a  dita  fechadura,  e  sahindo  sua  magestade 
com  elle  testemunha  pela  referida  porta  tomara 
pela  calçada  que  d'ella  vai  por  entre  o  muro  da 
referida  quinta  e  as  casas  e  terra  do  official  maior 
da  secretaria  de  estado  António  José  Galvão,  indo 
a  sege  a  passo  até  á  esquina  e  arco  que  íicam  ao 
norte  das  casas  da  quinta  do  Meio  ou  pateo  das 
Vaccas ;  que,  depois  de  haver  dobrado  a  dita  es- 
quina reparou  em  que  o  boleeiro  Custodio  da  Costa 
apressara  inesperadamente  os  passos  dos  referidos 
machos  ;  que,  tendo  avançado  quarenta  ou  cin- 
coenta  palmos  pelo  caminho  acima,  ouvira  um  gran- 
de estrondo  de  tiros ;  que  logo  successivameute  se 
sentira  el-rei  nosso  senhor  gravemente  ferido  ;  que 
elle  testemunha  percebera  que  os  mesmos  tiros  o 
tinham  offendido,  e  que  o  sobredito  boleeiro  se 


104 

principiou  a  queixar  de  que  se  achava  também 
com  a  grave  lesão  que  depois  se  manifestou, 
achando-se  o  sobredito  boleeiro  todo  crivado  de 
grossa  munição  ;  que  successivamente  se  achou  o 
dito  senhor  com  o  horrorosíssimo  estrago  que  elle 
testemunha  presenciou  na  mesma  forma  que  consta 
da  certidão  do  cirurgião-mór  do  reino  António 
Soares  Brandão,^  a  que  se  refere:  e  que,  emfim, 
examinando  depois  por  onde  haviam  penetrado 
os  referidos  tiros,  viu  elle  testemunha  que  foram 
disparados  contra  o  espaldar  da  carruagem  que 
transportava  o  dito  senhor,  abrindo  n'elle  dois  bu- 
racos muito  grandes  e  desformes,  e  arruinando 
quasi  todo  o  espaldar  com  a  muita  copia  de  mu- 
nição que  n'elle  penetrou.  E  acrescentou  que,  ao 
tempo  em  que  sua  magestade  se  sentiu  ferido,  con- 
siderando com  a  inseparável  serenidade  e  heróica 
constância  do  seu  augusto  animo  que  todos  os 
passos  que  desse  para  o  seu  real  palácio  o  po- 
riam mais  distante  do  cirurgião-mór,  que  devia 
cural-o,  mandando  voltar  pela  calçada  grande  que 
está  por  fora  dos  quartéis  do  regimento  de  in- 
fanteria  e  das  reaes  cavallariças,  passou  a  casa 
do  dito  cirurgião-mór,  onde  depois  de  haver  re- 
cebido com  religiosíssima  piedade  a  absolvição 
sacramental  permittiu  que  se  descobrissem  as  fe- 
ridas e  com  ellas  o  horrorossissimo  estrago,  que 
todos  deploramos,  para  se  lhe  applicarem,  como 
applicaram,  os  próprios  remédios,  o  que  tudo  elle 
testemunha  disse  que  sabia  por  ter  visto  e  pre- 
senciado tudo  na  referida  forma.» 

O  boleeiro  Custodio  da  Costa  foi  em  seguida 
interrogado  sobre  os  factos  mencionados  no  de- 
poimento anterior,  os  quaes  plenamente  confirmou, 
dizendo  «que  todos  passaram  na  verdade  assim 


105 

como  no  mesmo  depoimento  se  acham  declarados, 
e  que  a  elles  se  refere  ;  sendo  todos  os  referidos 
factos  escriptos  assim  como  passaram  na  verdade, 
que  elle  testemunha  presenciou  por  ser  o  mesmo 
idêntico  boleeiro  que  na  infaustissima  noite  de  3 
de  setembro  próximo  passado  guiava  a  sege  em 
que  el-rei  nosso  senhor  passava  da  quinta  de  Baixo 
para  o  seu  real  palácio. »  Só  acrescentou  i<que  o 
motivo  que  teve  para  accelerar  o  passo  dos  ma- 
chos que  conduziam  a  sobredita  sege,  ao  tempo 
em  que  esta  passava  do  arco  que  estava  da  esquina 
das  casas  da  quinta  do  Meio  para  o  norte,  foi  por 
haver  visto  sahir  três  homens  a  cavallo  debaixo 
do  referido  arco,  um  dos  quaes  desfechou  contra 
elle  testemunha  um  tiro  que  elle  testemunha  viu 
que  errara  fogo,  sendo  quasi  á  queima  roupa,  dis- 
parado para  matar  a  elle  testemunha,  que  por  isso 
procurou  salvar  a  real  pessoa  de  sua  magestade 
com  os  passos  apressados  que  deu,  sem  comtudo 
haver  declarado  ao  dito  senhor  o  motivo  d'aquella 
pressa :  e  que  um  pouco  mais  acima  lhe  parecera 
ver  uns  vultos  a  cavallo  da  parte  do  muro  novo, 
ao  tempo  em  que  se  dispararam  os  referidos  ti- 
ros, o  que  elle  testemunha  sabe  pelas  razoes  que 
dito  tem.» 

Cabe  aqui  naturalmente  perguntar  que  grau  de 
credito  merecem  esses  depoimentos?  Foram  acaso 
forjados  para  fins  sinistros  da  politica  sanguiná- 
ria do  ministro  Carvalho,  ou  serão,  com  efFeito, 
a  fiel  expressão  da  verdade  ?  A  esses  quesitos  não 
ha  resposta  mais  cabal  do  que  as  declarações  fei- 
tas pelo  duque  de  Aveiro  e  por  outro  assassino, 
António  Alvares  Ferreira, .  nenhum  dos  quaes  foi 
posto  a  tratos,  como  se  mostra  do  processo.  Por 
ellas  se  verá,  não  só  até  que  ponto  confirmam  os 


106 

depoimentos  de  Pedro  Teixeira  e  de  Custodio  da 
Costa,  mas  também  que  os  ampliam  e  completam 
de  forma  tal  que  se  torna  fácil  recompor  a  horrí- 
vel scena,  passada  nas  trevas  da  noite,  em  sitio 
ermo,  entre  uma  carruagem  em  que  el-rei  voltava 
de  uma  aventura  amorosa,  como  de  costume,  na 
companhia  de  um  creado  particular,  e  quatro  as- 
sassinos, postados  em  duas  embuscadas,  estando 
dois  a  pé  e  dois  a  cavallo. 

A  dama  com  quem  D.  José  i  se  encontrava  em 
todos  os  domingos  á  noite  no  paço  de  Belém  era 
a  marqueza  de  Távora,  moça,  D.  Thereza,  sendo 
elle  sempre  tão  pontual  nassas  entrevistas  que 
nem  faltou  á  d'aquelle  dia,  não  obstante  ser  o  ter- 
ceiro do  nojo  em  que  estava  encerrado  pelo  falle- 
cimento  de  sua  irmã,  a  rainha  de  Hespanha. 
Vejamos  agora  o  que  disse  o  duque  de  Aveiro  : 
«Respondeu  que  por  descargo  da  sua  consciên- 
cia declarava  que  haverá  três  mezes  pouco  mais 
ou  menos  mandara  chamar  por  um  guarda-roupa, 
que  actualmente  serve  a  elle  respondente,  por 
nome  Manuel  Alvares,  a  um  irmão  d'este,  chamado 
António  Alvares,  morador  em  Alfama  ou  nos  Oli- 
vaes,  e  que  vindo  o  dito  António  Alvares  falar 
a  elle  respondente  lhe  propuzera  ser  elle  o  que 
commettesse  o  sacrílego  insulto,  debaixo  da  ex- 
pressão de  que  havia  atirar  a  uma  sege  que  havia 
passar  pela  calçada  que  vae  da  quinta  do  Meio 
para  o  paço  de  Nossa  Senhora  da  Ajuda;  que  o 
dito  António  Alvares  se  encarregou  da  referida 
diligencia,  dizendo  comtudo  que  elle  a  não  podia 
executar  por  si  somente  :  que  por  isso  falou  o  dito 
António  Alvares  a  um  seu  cunhado,  chamado  Jo- 
sé Polycarpo  de  Azevedo,  para  associar  nos  referi- 
dos tiros,  que  elle  respondente  mandara  dar  na  so- 


107 

bredita  sege.  Que  unindo-se  ambos  receberam  d'elle 
respondente  dezeseis  moedas  por  uma  vez,  qua- 
tro por  outra  vez,  e  vinte  moedas  por  outra ;  que 
por  este  premio  somente  executaram  o  referido 
mandato,  descarregando  os  tiros  de  que  recebeu 
a  offensa  el-rei  nosso  senhor ;  que  depois  de  ha- 
verem dado  os  referidos  tiros  fugiram  logo  nos 
cavallos  que  haviam  comprado  para  este  efFei- 
to,  sem  que  elle  respondente  os  tornasse  a  ver 
n^quella  noite  :  que,  mandando  elle  respondente 
chamar  dois  dias  depois  d'aquelle  infaustissimo 
successo  o  mesmo  aggressor  António  Alvares* 
e  vindo  elle,  com  effeito,  de  noite  a  casa  d'elle 
respondente  o  vira  então  pela  primeira  vez  de- 
pois de  haver  sido  commettido  o  referido  in- 
sulto ;  que  então  lhe  contara  os  eífeitos  qne  ha- 
viam tido  os  sacrílegos  tiros,  recommendou-lhe  o 
segredo  d'aquelle  horrendo  caso  ;  que  os  motivos 
que  teve  elle  respondente  para  se  precipitar  em 
um  tão  inaudito  e  tremendo  absurdo  foram  a  ira 
e  a  paixão  que  desordenadamente  concebera  con- 
tra a  real  e  sacratíssima  pessoa  de  el-rei  nosso 
senhor  por  lhe  haver  impedido  com  as  suas  reaes 
ordens  o  vencimento  da  causa  das  commendas,  que 
tinham  andado  na  casa  de  Aveiro,  e  a  celebração 
do  matrimonio  que  tinha  ajustado  com  licença  de 
sua  magestade  entre  o  marquez  de  Gouveia,  filho 
d'elle  respondente,  e  D.  Margarida  de  Lorena,  fi- 
lha dos  duques  de  Cadaval.» 

Confessou  também  que  estivera  debaixo  do  arco 
contíguo  ás  casas  da  quinta  do  Meio  «esperando 
a  pé  associado  de  um  seu  creado,  João  Miguel ; 
sendo  elle  respondente  quem  disparou  o  tiro  que 
errou  fogo  contra  o  boleeiro  que  conduzia  sua  ma- 
gestade na  sege,  a  que  logo  depois  se  atirou.» 


108 

•  

António  Alvares  Ferreira,  natural  da  fregue- 
zia  de  Negrellos,  no  arcebispado  de  Braga,  tinha 
quarenta  annos  de  edade  e  era  feitor  do  Jardim 
do  Tabaco. 

Eis  a  sua  tocante  e  sincera  confissão : 

«Respondeu,  pondo-se  de  joelhos  com  as  mãos 
postas,  que  elle  queria  descarregar  a  sua  con- 
sciência e  salvar  a  sua  alma,  dizendo  toda  a  ver- 
dade, e  que  esta  era  : 

«Que  antes  da  fatal  noite  em  que  succedeu 
este  caso,  três  mezes  pouco  mais  ou  menos,  man- 
dara o  duque  de  Aveiro  chamar  a  elle  respon- 
dente por  um  seu  irmão,  chamado  Manuel  Al- 
vares,  e  que  importava  muito  lhe  falasse  logo. 

«E  como  elle  respondente  tinha  servido  ao  dito 
duque  onze  ou  doze  annos,  como  tem  dito,  na  oe- 
cupação  de  seu  guarda-roupa,  lhe  veiu  logo  falar. 
E  o  dito  duque  o  levou  para  uma  barraquinha 
nas  terras  defronte  do  jardim  das  suas  casas  e 
ahi  lhe  disse :  «Que  elle  respondente  o  tinha  ser- 
vido tantos  annos,  e  tinha  conhecido  que  elle  res- 
pondente era  de  segredo  e  fidelidade,  e  assim  que 
fiava  d'elle  respondente  um  grande  segredo,  e  que 
só  d'elle  o  fiava;  que,  se  o  revelasse,  corria  evi- 
dente perigo  a  vida  d'elle  duque  e  a  d' elle  res- 
pondente, e  que  vinha  a  ser  :  —  que  a  elle  duque 
o  andavam  esperando  para  o  matarem  e  que  já 
lhe  tinham  atirado  um  tiro  e  o  tinham  errado,  e 
que  assim,  para  se  livrar  doeste  perigo,  queria 
que  elle  respondente  o  acompanhasse  para  matar 
a,  quem  o  queria  matar  a  elle  duque,  e  assim  que 
ambos  haviam  ir  em  uma  sege  com  duas  espin- 
gardas curtas  esperar  uma  sege  que  havia  des- 
cer pela  calçada  da  Ajuda,  e  que  haviam  espe- 
rar em  cima  no  largo  acima  das  casas  do  ex.mo 


109 

secretario  de  estado,  o  sr.  Sebastião  José  de  Car- 
valho e  Mello,  e  que  ahi  haviam  de  esperar  ambos 
a  um  tempo  a  dita  sege,  em  que  vinham  duas  pes- 
soas.» —  E  logo  lhe  tornou  a  dizer  —  que  o  irem 
em  sege  podia  ser  perigoso,  que  o  melhor  era  irem 
ambos  de  cavallo ;  e  assim  que  elle  respondente 
comprasse  dois  cavallos,  um  para  elle  duque  e  ou- 
tro para  elle  respondente,  para  o  que  o  mandou 
esperar  em  quanto  chegava  a  casa,  e  voltando  lo- 
go lhe  deu  dezeseis  moedas  de  ouro  para  comprar 
os  ditos  dois  cavallos.  E,  com  effeito,  elle  respon- 
dente, comprara  os  dois  cavallos,  um  por  quatro 
moedas  a  um  homem  chamado  Luiz  da  Horta,  que 
mora  no  pateo  do  Soccorro,  e  outro  a  um  cigano 
chamado  Manuel  Soares,  que  mora  em  Marvilla, 
por  outras  quatro  moedas.  E  agora  lhe  lembra 
que  o  primeiro  custou  quatro  moedas  e  meia. 

eE  que,  vindo  elle  respondente  com  os  dois  ca- 
vallos na  mesma  semana  em  que  o  duque  lhe  fala- 
ra, este  montara  em  um  e  elle  respondente  em  ou- 
tro, e  lhe  dissera  que  lhe  queria  ir  mostrar  a  sege. 
E,  com  effeito,  ambos  foram  esperar  no  sitio  que  tem 
declarado,  onde  estiveram  até  ás  dez  horas  e  meia, 
e  que,  como  não  passara  a  sege  que  esperavam, 
se  foram  ambos  embora.  E  que  d'essa  vez  não  le- 
varam armas  algumas.  E  que,  passados  três  ou 
quatro  dias,  tornaram  a  pé  ao  mesmo  sitio  para  o 
mçsmo  effeito  do  duque  lhe  mostrar  a  sege  a  elle 
respondente  ;  que  também  foram  sem  armas  e  que, 
esperando  até  ás  mesmas  horas,  não  passara  a  dita 
sege,  e  da  mesma  sorte  se  recolheram.  E  que  de- 
pois lhe  dissera  o  dito  duque  a  elle  respondente 
que  d'aquella  forma  não  faziam  bem,  porque  elle 
duque  era  muito  conhecido,  que  o  melhor  era  di- 


«10 

zer  elle  respondente  a  seu  cunhado  José  Polycarpo 
de  Azevedo  que  lhe  fosse  falar  a  elle  duque,  que 
como  também  era  de  segredo  e  com  resolução 
ambos  podiam  fazer  bem  aquella  diligencia.  E, 
com  effeito,  elle  respondente  dera  o  recado  ao  dito 
seu  cunhado,  da  parte  do  dito  duque  e  lhe  dissera 
o  para  que  era.  E  o  dito  seu  cunhado  viera  falar 
com  o  duque  e  este  lhe  dissera  o  mesmo  que  lhe 
tinha  dito  a  elle  respondente.  E  se  ajustaram  a 
irem  todos  três  para  lhes  mostrar  e  verem  e  co- 
nhecerem a  dita  sege.  Mas  que,  chegando  acima 
das  terras  e  defronte  do  pateo  do  dito  ex.mo  sr.  se- 
cretario de  estado,  ahi  mandou  o  duque  a  elle  res- 
pondente que  ficasse  com  os  cavallos,  e  elle  foi 
mais  o  dito  José  Polycarpo  ao  mesmo  sitio,  e  ahi 
então  disseram  que  tinha  passado  a  sege  que  o  dito 
seu  cunhado  ficou  conhecendo. 

«E  que  depois  fora  elle  respondente  e  mais  o 
dito  seu  cunhado  muitas  vezes,  que  seriam  doze 
ou  quinze  vezes,  fazer  que  iam  esperar  a  dita 
sege,  e  que,  supposto  algumas  vezes  a  viram  pas- 
sar, não  quizeram  atirar,  e  iam  sempre  dar  parte 
ao  dito  duque  que  nao  tinha  passado. 

a  Até  que  ultimamente  em  um  domingo,  segun- 
do lembrança  d'elle  respondente,  lhe  dissera  o  di- 
to duque  que  n'essa  noite  certamente  havia  pas- 
sar a  dita  sege,  que  fossem  elles  sem  falta  porque 
elle  duque  também  havia  ir.  E,  com  effeito,  foram, 
e  o  duque  não  toi.  E  elle  respondente  e  o  dito  seu 
cunhado  estiveram  esperando  acima  da  quinta  do 
Meio  da  banda  das  terras,  junto  ao  muro  que  es- 
tava por  acabar,  e  ahi  passara  a  dita  sege  a  tem- 
po que  já  tinham  dado  onze  horas  da  noite,  e 
disparando  ambos  ao  mesmo  tempo  as  espingar- 


Ill 

das  nas  costas  da  sege  se  retiraram  a  correr  pe- 
las terras  abaixo  direitos  á  travessa  do  Guarda- 
mór,  e  mettendo-se  na  rua  direita  d'este  logar  se- 
guiram para  Lisboa,  por  signal  que  quando  de- 
ram os  ditos  tiros  tinha  passado  Bento  António, 
e  ainda  o  vieram  encontrar  quasi  no  meio  do 
muro  da  quinta.  E  que,  passados  dois  dias,  viera 
elle  respondente  falar  ao  dito  duque,  e  este,  sem 
elle  respondente  lhe  dizer  cousa  alguma,  lhe  dis- 
sera que  aquillo  não  prestara  para  nada,  por- 
que tinham  atirado  ao  meio,  e  não  tinham  chega- 
do ás  portinholas  da  sege  com  as  pistolas,  como 
elle  duque  lhes  tinha  dito.  E  elle  respondente  se 
desculpara,  dizendo-lhe  que  quando  atiraram  com 
as  espingardas  fora  a  tempo  que  passara  gente, 
causa  porque  não  foram  com  as  pistolas  á  sege. 
Ao  que  lhe  respondera :  «Está  feito,  está  fei- 
to». 

Quanto  ao  outro  assassino,  José  Polycarpo  de 
Azevedo,  ninguém  ignora  que  elle  não  só  não  foi 
preso  em  14  de  dezembro  na  quinta  do  duque  de 
Aveiro  em  Azeitão,  por  não  ter  sido  ainda  sequer 
suspeitada  a  sua  cumplicidade,  e  não  ir  portanto 
o  nome  d'elle  na  relação  que  levava  o  desembar- 
gador encarregado  de  effectuar  a  captura  de  va- 
rias pessoas  d'aquella  família,  mas  também  que 
nunca  poude  ser  agarrado,  por  mais  diligencias 
que  para  isso  fizesse,  dentro  e  fora  do  reino,  o 
marquez  de  Pombal. 

Ficaria,  de  certo,  incompleta  esta  noticia,  se 
não  apresentássemos  também  aqui  a  descripção 
authentica  dos  graves  ferimentos  do  rei,  confor- 
me se  lê  na  certidão  passada  pelo  cirurgião-mór 
António  Soares  Brandão. 


H2 

Eil-a  : 

«António  Soares  Brandão,  cavalleiro  professo  na 
ordem  de  Christo,  cirurgião  da  camará  de  sua 
magestade  fidelíssima,  dos  seus  exércitos  e  ci- 
rurgião-mór  do  reino  e  suas  conquistas,  etc. 

«Certifico  que  no  dia  três  de  setembro  d^ste 
presente  anno,  depois  das  onze  horas  da  noite,  vi 
e  curei  a  el-rei  nosso  senhor,  que  Deus  Guarde, 
de  umas  feridas  combustas  e  dilaceradas,  feitas 
com  armas  de  fogo,  ao  meu  parecer,  maiores  que 
as  espingardas  ordinárias,  carregadas  estas  com 
chumbo  grosso,  as  quaes  feridas  principiavam  desde 
a  omoplata  ou  espádua  direita,  descendo  pelo 
hombro  e  braço  abaixo  até  o  cotovello  e  tudo  pela 
parte  posterior,  comprehendendo  também  o  peito 
da  mesma  parte,  no  qual  também  recebeu  do 
chumbo  seis  orifícios,  mas  na  parte  superior  do 
braço  perto  da  articulação  e  sobre  o  musculo  dei* 
toide  foi  a  maior  força  da  carga  que  pelos  effei- 
tos  do  estrago  me  pareceram  os  tiros  dados  á 
queima  roupa ;  de  sorte  que  fez  na  sua  entrada 
uma  grande  cavidade,  com  muita  perda  de  sub- 
stancia, grande  dilaceração,  da  qual  resultou  muita 
perda  de  sangue,  e  passou  o  chumbo  embuxado, 
junto  e  por  cima  dos  processos  da  articulação  do 
hombro,  a  parte  interior,  d 'onde  fez  um  grande  tu- 
mor, no  qual  fpi  preciso  fazer  uma  incisão  e  se 
tirou  por  esta  parte  chumbo  e  fragmentos  da  car- 
ruagem, tudo  em  muita  quantidade,  excepto  o 
chumbo  que  já  se  tinha  tirado  pela  sua  entrada, 
e  na  continuação  da  cura  se  tiraram  mais  por  di- 
versas partes  do  braço  trinta  e  oito  grãos  do  mes- 


H3 

mo  chumbo  e  algumas  porções  do  vestido,  e  por 
ser  tudo  verdade  o  juro  pelo  habito  de  Christo 
de  que  sou  professo.  — Junqueira  a  20  de  dezem- 
bro de  1758. — António  Soares  Brandão. 

Ora,  eis  ahi  o  que  succedeu  na  infausta  noite 
de  3  de  setembro  de  1758,  noite  de  tão  angus- 
tiosas recordações  para  D.  José  I  que  elle,  não 
só  fez  voto  de  erigir  um  templo  em  memoria  de 
ter  escapado  á  sanha  dos  assassinos,  mas  também, 
volvidos  dois  annos  certos  sobre  aquella  data, 
lançou  com  a  maior  solemnidade,  em  presença  de 
toda  a  corte,  a  primeira  pedra  dos  alicerces,  e 
ainda,  á  hora  da  sua  morte,  recommendou  á  her- 
deira da  coroa,  D.  Maria  I,  que  acabasse  a  egre- 
ja.  «Em  terceiro  logar  lhe  recommendo  que  com- 
pletará a  egreja  da  Memoria  que  prometti  a  Deus 
fazer  e  se  acha  meia  feita,  em  agradecimento  do 
beneficio  que  me  fez  e  que  foi  notório  a  todo  o 
reinou. 

A  egreja  de  Nossa  Senhora  do  Livramento  e 
S.  José,  que  ficou  sendo  denominada  da  Memoria, 
ahi  está  no  mesmo  sitio  em  que  se  deram  os  ti- 
ros, com  o  seu  elegante  zimbório  e  um  conjuncto 
harmonioso  e  bello,  ao  gosto  do  Renascimento. 
Se  o  exterior  carecido  de  limpeza,  as  vidraças 
partidas  e  os  telhados  e  terraços  mal  reparados, 
por  onde  entra  a  agua  das  chuvas  que  damnifica 
a  abobada  interna  e  o  madeiramento,  annunciam 
em  verdade  ruína  próxima  e  attestam  infelizmente 
ao  estrangeiro  incúria  e  desleixo  indesculpáveis, 
não  accusemos  por  tão  justo  motivo  os  nossos  go- 
vernos ou,  antes,  desgovernos. 

Referindo,  sem  nenhum  receio  da  menor  con- 
testação, o  que  passou  n'aquella  famosa  noite,  dei- 


114 

xámos  ainda  no  tinteiro  o  que  se  não  viu.  Calá- 
mos, muito  de  propósito,  se  mais  alguém,  afora 
o  infame  duque  de  Aveiro,  armou  o  braço  dos  re- 
gicidas ;  se  porventura  contra  a  vida  do  soberano 
tramaram  outros  membros  da  nobreza  e  os  je- 
suítas que,  na  phrase  ambígua  do  illustre  dr. 
Coelho  da  Rocha,  ficaram  envolvidos  na  conspira- 
ção. Pareceu-nos,  ao  traçar  estas  linhas,  que 
n'uma  epocha  de  tão  afferrado  positivismo,  como 
a  nossa,  o  rigor  inflexível  dos  documentos  diria 
muito  melhpr  que  todas  as  conjecturas,  por  mais 
bem  fundadas  e  deduzidas  que  fossem,  e  contra 
as  quaes  é  bom  estar  de  sobre  aviso  porque  nem 
sempre  serão  desinteressadas  e  sinceras.  Por  isso, 
já  em  1876,  o  nosso  grande  historiador  Herculano 
se  mostrava,  com  razão,  adverso  a  «certas  gene- 
ralisaçoes  e  philosophias  da  historia,  hoje  de  mo- 
da, em  que  se  generalisa  o  erróneo  ou  o  incerto». 


Alberto  fasnis: 


IA  iilllIIA 

(AO  DR.  ALVES  CRESPO) 


—  Se  elle  não  for  santo,  quem  o  ha  de  ser ! 

—  Já  o  viste,  Thuribia? 

—  Se  o  vi !  ?  Já  até  lhe  fallei.  Está  mettido 
dentro  da  sua  gruta,  d'onde  só  avista  o  mar.  E 
como  se  quizesse  ter  Deus  sempre  deante  dos 
olhos.  Figura- te  que  cheguei  á  bocca  da  gruta,  e 
chamei,  tremendo  :  Meu  senhor  !  meu  senhor  !  D'ahi 
a  momentos,  vejo-o  apparecer  :  um  lindo  homem, 
muito  branco,  com  os  cabellos  louros  e  os  olhos 
azues,  com  um  ar  de  tristeza,  que  fazia  respeito. 
Mal  que  me  viu,  perguntou-me :  «A  que  vens  tu, 
minha  filha?»  Estive  um  instante  sem  poder  res- 
ponder-lhe.  Mas  cobrei  alento  e  disse-lhe  :  a  A  vêr- 
vos,  real  senhor.»  E  logo  cahi  de  joelhos,  porque 
as  pernas  me  tremiam  como  varas  verdes.  Então 
aquelle  anjo  do  ceu,  estendendo  os  braços,  levan- 
tou-me,  passou-me  a  mão  pelo  rosto,  e  disse-me 
como  se  estivesse  fallando  a  sua  filha  :  «Ora  pois ! 
entra  com  Deus,  e  ouvir- te-hei.» 

—  Não  sei  como  tiveste  coragem  de  estar  fal- 
lando a  tão  alto  senhor ! 

8 


118 

—  Eu  andava  já  ha  dias  para  dar  tão  ousado 
passo,  porque  tinha  curiosidade  de  ver  o  nosso 
santo  rei  D.  Sebastião  ;  mas  acanhava-me  de  o  fa- 
zer. Outro  dia  fui  á  Carvoeira  e,  quando  lá  me  vi, 
entrou  comigo  a  curiosidade.  Uma  voz  cá  de  den- 
tro dizia-me :  «Vae.»  Fui.  Metti  pelo  caminho  de 
S.  Julião  e  procurei  a  gruta,  que  me -tinham  dito 
ficava  á  beira  do  mar.  Lá  mesmo  o  encontrei.  O 
tio  António  Simões  havia  jurado  a  meu  pae  que 
era  aquelle  em  carne  e  osso  el-rei  nosso  senhor, 
que  tinha  podido  escapar  aos  mouros.  Elle  que  o 
diz  é  porque  o  sabe,  que  o  tio  António  Simões  é 
um  homem  de  bem  ás  direitas. 

—  E  que  te  disse  el-rei  nosso  senhor? 

—  Perguntou-me  quem  me  tinha  mandado  lá. 
Contei-lhe  a  pura  da  verdade  :  o  que  meu  pae  ou- 
vira dizer  ao  tio  António  Simões.  Vae  elle  e  sor- 
riu-se.  Esteve  alguns  instantes  calado,  com  os 
olhos  fitos  no  mar,  e  depois  disse-me  com  uma 
voz  tão  doce,  que  parecia  musica  do  ceu :  «Antó- 
nio Simões  é  um  bom  homem,  mas  julga  que  eu 
sou  quem  não  sou.  Não  passo,  filha,  de  um  pobre 
solitário,  que  já  não  quer  nada  do  mundo,  e  só 
deseja  que  o  deixem  tranquillo  para  chorar  tudo 
quanto  tinha  e  perdeu.» 

—  E  tu  que  lhe  disseste? 

—  O  que  lhe  havia  eu  de  dizer  ? !  Que  todo  o 
povo  da  Ericeira  sabia  muito  bem  quem  era  aquelle 
grande  senhor,  por  mais  que  sua  alteza  real  o  qui- 
zesse  disfarçar.  Que  não  havia  palmo  de  terra 
onde  não  tivessem  cahido  as  lagrimas  do  povo, 
que  chorava  a  grande  desgraça  do  seu  rei.  E 
n'isto,  filha,  rebentaram-me  as  lagrimas  dos  olhos, 
a  quatro  e  quatro.  Vae  elle  e  levantou-se,  encos- 
tou a  minha  cabeça  ao  seu  peito,  e  disse-me : 


no 

*Não  perdeste  o  teu  tempo,  comquanto  te  enga- 
nasses com  a  pessoa  que  procuravas.  Eu  não  sou 
quem  António  Simões  cuida ;  sou,  sim,  um  pobre 
solitário  que  se  habituou  a  conversar  com  Deus, 
de  dia  e  de  noite,  na  grandeza  das  suas  obras. 
Vae-te,  e  dize  ao  honrado  povo  da  Ericeira  que 
eu  não  sou  quem  elles  erradamente  suppoem,  mas 
que  nem  por  isso  deixo  de  ser  menos  peccador. 
Pede-lhes  que  me  deixem  em  paz,  que  não  pro- 
curem avivar  no  meu  espirito  pensamentos  quç 
eu  desejo  affastar.  Dize  a  teu  pae  e  a  teus  visi- 
nhos  isto  mesmo,  que  o  meu  maior  desejo  é  fa- 
zel-o  saber  a  este  desgraçado  povo  escravisado.» 
Eu  tinha  relanceado  os  olhos  pela  gruta,  onde  só 
havia  terra  e  pedra.  Não  tive  mão  em  mim  que 
não  dissesse:  «E  estaes  vós  aqui,  meu  senhor, 
sem  uma  enxerga  onde  o  vosso  corpo  repouse  ?  ! » 
Aquelle  grande  senhor  sorriu-se,  e  tornou-me : 
«Perdi  tudo  o  que  era  do  mundo,  filha,  não  se  me 
dá  de  agasalhos.  António  Simões  já  para  aqui  tei- 
mou em  trazer  uma  enxerga  e  uma  manta,  e  eu 
dei-as  ao  primeiro  mendigo  que  por  aqui  passou. 
Era  um  cego,  —  cego  dos  olhos,  que  outros  o  são 
do  entendimento,  mais  cegos  ainda  que  os  dos 
olhos,  porque  não  querem  ou  não  podem  ver  a  sua 
desgraça.  E  despedindo-me  deu-me  um  beijo  na  tes- 
ta. A  sua  bocca  parecia  feita  de  velludo.  Eu  corei, 
que  senti  todo  o  sangue  subir-me  á  cara.  E,  re- 
cuando, sahi  da  gruta,  com  o  mesmo  respeito  com 
que  teria  sahido  do  Paço  da  Ribeira. 

—  Não  contaste  isso  a  mais  ninguém  ? 

—  Ora !  não  contei  eu  outra  cousa !  Vim  pela 
Carvoeira,  e  logo  alli  ficou  tudo  em  pratos  limpos. 
Juntou-se  povo  assim  para  ouvir-me, — e  juntava, 
93  dedos  das  mãos  uns  aos  outros,  Mulheres  não 


120 

havia  mais  na  povoação.  Umas  já  o  tinham  ido 
ver.  Tal  qual  como  a  mim !  diziam  ellas  quando 
eu  estava  contando  o  que  aquelle  grande  senhor 
me  havia  dito. 

—  Não  se  quer  dar  a  conhecer  !  bradava  uma. 

—  E  o  que  é !  dizia  o  tio  Duarte  Gil,  que  sabe 
muito  bem,  por  lh'o  ter  confessado  o  tio  António 
Simões,  que  aquelle  santo  é  a  real  pessoa  de  el-rei  D, 
Sebastião  em  carne  e  osso.  Outras  mulheres  vão  lá 
amanhã  pedir-lhe  que  as  deixe  beijarem-lhe  a  mão. 

—  E  tu  beijaste-lh'a? 

—  Mal  peccado !  De  atarantada  que  estava, 
nem  lembrança  tive  de  lhe  pedir  que  me  deixasse 
beijar-lhe  a  mão.  Que  falta  de  respeito  que  eu 
commetti  com  aquelle  grande  senhor !  Mas  hei  de 
lá  tornar  para  lhe  beijar  a  mão. . . 

—  E  eu  vou  comtigo  também. 

—  Pois  iremos  ambas,  que  tiraremos  o  medo 
uma  á  outra.  Que  elle  a  bem  dizer  não  ha  pessoa 
mais  bondosa,  mas  a  gente,  como  sabe  que,é  el-rei 
nosso  senhor,  acobarda-se  de  lhe  fallar.  E  o  que 
é.  Quando  queres  tu  lá  ir? 

—  Vamos  para  a  semana,  que  tenho  menos  lida. 

—  Tens  tu  lida  tamanha  que  te  não  dê  vagar 
para  anediar  as  crenchas  ?  Ou  queres  pôr  saia  de 
cós  de  velludo  com  alforza  nas  vasquinhas? 

—  Sou  agora  alguma  figura  d'almadraques ! 
Mas  para  a  semana  deve  estar  prompto  o  meu 
gonete  de  serguilha. 

II 

Era  raro  o  dia  em  que  na  gruta  de  S.  Julião 
não  entravam  dezenas  de  pessoas  propellidas  pelo 
desejo  de  vêr  de  perto  o  santo  rei  desgraçado/ 


m 

que  se  tinha  purificado  de  todos  os  seus  erros  na 
catastrophe  de  Alcacer-quibir  e  que,  extranho  no 
seu  próprio  paiz,  chorava  na  solidão  a  perda  da 
coroa  real,  que  recebera  de  seus  avós. 

O  litoral  é  retalhado  em  grandes  penedias  des- 
conjunctadas,  que  tombaram  umas  sobre  outras, 
como  destroços  de  uma  vasta  edificação  arruinada. 
A  negrura  do  basalto  parece  retinta  nas  labare- 
das de  um  incêndio  antigo,  que  o  facho  de  uma 
destruição  enorme  ateou.  Aqui  e  alli  uma  estreita 
faixa  de  areia  mitiga  a  aridez  das  ribas,  offere- 
cendo-se  aos  beijos  da  onda,  que  umas  vezes  se 
contenta  em  osculal-a  fugitivamente,  outras  vezes, 
empinando-se  em  vagalhão,  arquea  sobre  as  ro- 
chas negras  o  dorso  flexível,  quebrando-se  subi- 
tamente n'uma  explosão  estrondosa  de  flocos  de 
espuma* 

Na  corda  do  litoral,  avançando  para  o  sul,  o 
Cabo  da  Roca  altea-se  com  a  perspectiva  de  um 
cubello  longinquo,  que  fortifica  a  extremidade  da 
ampla  cordilheira  de  Cintra,  recortada  em  ondu- 
lações gibosas,  dando  a  impressão  de  um  enorme 
dromedário  petrificado. 

Em  frente  da  gruta,  o  mar,  sem  limites  e  sem 
recifes,  immenso  como  a  ambição  dos  homens, 
profundo  como  a  grandeza  de  Deus. 

Era  alli,  no  recesso  d'aquella  gruta  solitária, 
que  Matheus  Alvares  alimentava  os  seus  planos 
audaciosos,  vastos  como  o  oceano,  —  espelho  de 
todas  as  ambições  terrenas,  porque  agora  se  aquieta 
por  momentos  para  logo  se  revoltar  n'um  deses- 
pero incansável. 

Elle  tinha  nascido  na  ilha  Terceira,  rodeiado 
pelo  mar,  —  pelo  mar  que  parecia  ser  o  modelo 
caprichoso  do  seu  destino.  Seu  pae  fora  um  pe- 


122 

dreiro,  um  humilde,  que  não  atava  ás  suas  tradi- 
ções de  família  um  appellido  distincto.  Uma  febre 
lenta  de  celebridade  devorava  em  segredo  a  alma 
de  Matheus  Alvares,  enfuriando-o  na  raiva  de  se 
ver  tão  humilde  como  seu  pae. 

O  mar  sorria-lhe  como  uma  estrada  aberta  e 
provocadora,  que  chamava  os  sonhadores,  para  os 
afogar  na  perfídia  de  um  naufrágio  ou  para  os  re- 
vessar  numa  praia  de  continente. 

Tantas  vezes  o  mar  o  procurou  attrair,  que  Ma» 
theus  Alvares  acabou  por  confiar-se-lhe. 

Por  única  bagagem,  a  sua  ambição.  Não  têem 
outra  os  ambiciosos  que  se  aventuram. 

Veiu  quasi  ao  acaso  para  a  metrópole,  e  obteve 
ingresso  n'um  convento  da  Extremadura.  A  sua 
alma  pôde  respirar  mais  desafogada,  porque  elle, 
o  filho  de  um  obscuro  pedreiro  açoriano,  conse- 
guira irmanar- se  pelo  habito  aos  mais  illustres  da 
communidade»  Mas  a  sua  ambição  constituirá  uma 
espécie  de  indisciplina  revoltada,  que  lhe  tornara 
insoffrivel  o  peso  dos  cânones.  Deliberou,  pois, 
fugir  ás  peias  regulamentares  da  vida  monástica, 
e  continuar  a  aventurar-se  ao  sabor  da  sua  phan- 
tasia  irrepremivel. 

Ainda  assim  trouxera  do  convento  um  pecúlio 
proveitoso  de  phrases  unctuosas  e  de  inflexões 
macias,  que  não  era  para  desaproveitar. 

Para  uma  viagem  incerta  todo  o  viatico  é  pru- 
dente.  Da  sciencia  dos  frades  trouxera  apenas 
essa  :  a  de  saber  viver  para  manobrar  a  rota  de 
uma  ambição  indeterminada,  mas  audaz. 

Transitando  de  povoação  em  povoação,  reco- 
nheceu que  todo  o  burgo  era  como  que  uma  es- 
ponja que  absorvia  as  mais  salientes  individuali- 
dades. Escolheu  pois  a  solidão  para  se  fixar,  por- 


123 

que  a  solidão  dá  relevo  á  excentricidade,  quasi 
sempre  pretenciosa,  do  solitário.  E  depois  melhor 
èy  para  os  ambiciosos,  attrair  o  burgo  do  que  ser 
absorvido  por  elle.    * 

Uma  gruta,  não  tão  solitária  que  não  estivesse 
encravada  entre  duas  povoações  do  litoral,  a  Eri- 
ceira ao  norte,  S.  Julião  ao  sul,  mas  não  tão  pró- 
xima do  povoado  que  o  povoado  a  assoberbasse, 
foi  o  palco  escolhido  por  Matheus  Alvares  para 
o  drama,  que  elle  entrevia,  da  sua  existência  fu- 
tura. 

Os  primeiros  dias  arrastaram-se  estéreis  de  pe- 
ripécias, porque  a  vida  da  lavoura  deslisa  sempre 
no  mesmo  trilho,  sem  avidez  de  sensações,  e  elle 
estava  ladeado  de  camponezes.  As  primeiras  noi- 
tes eram  profundas,  insondáveis  nas  oscillaçoes 
vagarosas  d'esse  colossal  relógio  que  se  chama  o 
ceu.  A  lua,  enorme  pêndula  de  prata,  baloiçava-se 
monotonamente  sobre  o  azul,  parecendo  marcar 
as  primeiras  horas  da  eternidade. 

E  Matheus  Alvares,  entregue  á  sua  imaginação 
audaciosa,,  pensava,  assentado  n'uma  pedra  da 
gruta,  com  o  rosto  apoiado  nas  mãos,  os  cotovel- 
los  apoiados  nos  joelhos,  descaído  o  lábio  inferior, 
—  como  D.  Sebastião,  diríeis. 

Foi  na  solidão  da  beira-raar  que  Matheus  Al- 
vares procurou  sondar  a  sua  ambição,  interrogal-a 
e  medil-a.  O  que  era  que  elle  queria,  a  que  ideiál 
aspirava?  E  então,  como  se  encontra  de  repente 
o  conceito  de  um  enigma,  reconheceu  que  tinha 
seguido  o  rasto  do  rei  de  Penamacor,  o  primeiro 
falso  D.  Sebastião.  Como  elle,  havia  tentado  e 
abandonado  a  vida  conventual ;  também  como  elle 
se  fizera  eremita.  Mas  o  capuz  que  escondia  a 
physionomia  do  rei  de  Penamacor }  bem  pouco  si- 


124 

milhante  á  de  D.  Sebastião,  podia  Matheus  Alva- 
res dispensâl-o  vantajosamente,  porque  as  suas 
feições  accordavam  a  reminiscência  das  feições 
do  mysterioso  vencido  d^lcacer-quibir.  Era  uma 
vantagem  enorme  sobre  o  seu  predecessor.  Não  a 
deixaria  escapar- se. 

Este  sonho  de  grandeza  subjugara  completa- 
mente a  sua  ambição ;  enchera-a.  Matheus  Alva- 
res erguera-se  a  meio  da  gruta,  e,  com  o  rosto 
alto,  fitava  o  mar,  onde  a  lua  estirava  um  tapete 
de  malhas  argênteas.  Uma  visão  grandiosa  pas- 
sara pelo  seu  espirito,  como  na  fascinação  de  um 
espectáculo  phantastico  :  ouvira  o  throno  de  Por- 
tugal gemer  debaixo  dos  seus  pés  e  vira  o  leão  de  Cas- 
tella  recuar  deante  dos  seus  chapins  doirados. 

O  alvo  do  seu  destino  estava,  desde  essa  hora, 
fixado  :  mirava-o  com  segurança,  a  despeito  da  sen- 
tença que  condemnára  a  galés  perpetuas  o  rei  de 
Penamacor. 

Mas  as  tavolas  do  jogo  de  Matheus  Alvares 
eram  outras,  e  melhores.  A  sua  similhança  com 
D.  Sebastião  valorisava  o  êxito  da  empresa.  Ti- 
nha a  mesma  edade  do  rei,  a  mesma  brancura  de 
pelle,  a  mesma  barba  aloirada.  E  depois  a  opinião 
publica  estava  já  impressionada  pela  credulidade, 
disposta  a  admittir  como  possivel  o  regresso  do 
vencido  d'Alcacer-quibir.  O  rei  de  Penamacor  ha- 
via preparado  o  caminho,  fora  o  martyr  de  uma 
ideia  e,  pelo  que  respeita  ás  ideias,  raras  vezes 
lhes  colhe  o  fructo  aquelle  em  cujo  espirito  ellas 
primeiro  floriram. 

Isto  pensara  Matheus  Alvares,  e  desde  essa  hora, 
sonhou- se  rei  de  Portugal. 


m 


in 


Traçado  o  plano,  Matheus  Alvares  começou 
desde  logo  a  executal-o  habilmente. 

O  acaso  havia-lhe  deparado  um  poderoso  auxi- 
liar na  pesscíl  de  António  Simões,  abastado  pro- 
prietário de  S.  Julião.  Foi-lhe  fácil  reconhecer  a 
ingenuidade  que  enchia  a  alma  crédula  e  boa  do 
camponez.  Exaltou-lhe  a  imaginação  íallando-lhe 
das  desgraças  que  pesavam  sobre  Portugal  oppri- 
mido.  Contou-lhe  a  historia  do  desastre  d'Alcacer- 
quibir  com  grande  minudência  de  informações, 
umas  exactas,  outras  phantasiosas.  Foi  até  o  ponto 
de  descrever-lhe  as  sensações  intima?  do  rei  na 
hora  em  que  a  nacionalidade  portugueza  se  engol- 
phou  febrilmente  n'um  abysmo  de  sessenta  annos 
àe  captiveiro.  A  escravidão  havia  accordado  na 
alma  popular  o  sentimento  do  prophetismo  poéti- 
co. Bandarra,  fallecido  trinta  e  cinco  annos  antes, 
tinha  accendido  nas  almas  simples  o  facho  da  cre- 
dulidade vidente.  O  rei  voltaria  da  ilha  encober- 
ta, porque  as  prophecias  o  promettiam  :  % 

Este  sonho  que  sonhei 
E'  verdade  muito  certa, 
Que  lá  da  ilha  encoberta 
Vos  ha  de  chegar  este  rei. 

Matheus  Alvares,  que  facilmente  conseguira  lan- 
çar suspeitas  no  animo.de  António  Simões,  acerca 
da  sua  mysteriosa  individualidade,  revelára-lhe 
comtudo,  accentuando  muito  intencionalmente  esta 
revelação,  que  tinha  chegado  dos  Açores,  de  uma 
ilha,  a  Terceira.  E  recordava-lhe  ao  mesmo  tem- 
po, como  entregando-lhe  o  fio  de  um  segredo,  a 
trova  de  Bandarra : 


126 

Que  lá  da  ilha  encoberta 
Vos  ha  de  chegar  este  rei. 

D.  Sebastião  voltaria  pois,  porque  o  propheta 
mais  de  uma  vez  o  affirmava  com  segurança : 

Vejo  sem  abrir  os  olhos 
Tanto  ao  longe,  como  ao  perto, 
Virá  do  mundo  encoberto 
Quem  mate  da  águia  os  polhos. 

O  sebastianismo,  diffundido  nos  campos  pelas 
trovas  que  se  popularisaram,  ao  mesmo  tempo  que 
robustecia  á  crença  de  que  o  Encoberto  voltaria, 
cavava  abysmos  de  dor  no  intimo  das  almas,  que 
viam  perdida  a  independência  da  pátria. 

Matheus  Alvares  não  deixou  de  accentuar  o  ef- 
feito  suggestivo  de  cada  uma  das  suas  meias-pa- 
lavras,  e  procurou  atear  no  espirito  do  pobre  cam- 
ponez  a  magua  que  o  desastre  de  Alcacer-quibir 
havia  derramado  em  todos  os  corações,  a  sede  de 
repor  no  throno  o  rei  christão  que  tinha  sido  ven- 
cido pelos  infiéis  nas  plagas  de  Africa. 

Ensinou-lhe  o  romance  castelhano,  que  se  vul- 
garisára  em  muitas  povoações  : 

Puestos  estan  frente  a  frente 
Los  dos  valerosos  campos, 
Uno  es  dei  rey  Moluco, 
Otro  de  Sebastiano. 

E  quando  pronunciou  a  palavra  Sebastiano,  o 
seu  corpo  estremeceu  n'uma  vibração  nervosa,  e 
dos  seus  olhos  rebentaram  lagrimas,  que  revela- 
vam uma  dor  muito  intima,  muito  concentrada 
n'um  segredo  cheio  de  personalismo. 

Mas  não  passou  das  meias-palavras,  nos  pri- 
meiros tempos,  não  passou  das  suggestoes  artifi- 
ciosas, por  gestos  ou  vocábulos. 


127 

António  Simões  revelou  primeiro  á  mulher,  de- 
pois ao  seu  amigo  Pedro  Affonso,  de  Rio-de-Mou- 
ro,  o  segredo  das  suas  apprehensoes.  A  mulher 
acreditou  logo  que  o  solitário  da  gruta  fosse  el- 
rei  D.  Sebastião.  Mas  Pedro  Affonso  achou  pru- 
dente que  António  Simões  procurasse  um  meio  de 
levar  Matheus  Alvares  a  denunciar  a  sua  indivi- 
dualidade, a  trahir  o  seu  disfarce.  Combinaram  os 
dois  que  António  '  Simões,  durante  uma  d'essas 
entrevistas,  chamaria  o  dialogo  para  a  pessoa  do 
rei  e,  levantando-se  de  repente  para  logo  cahir 
de  joelhos,  beijaria  a  mão  de  Matheus  Alvares, 
bradando,  inclinado  e  reverente :  «Meu  senhor  ! 
meu  senhor !» 

Assim  fez.  O  solitário,  julgando  que  já  era  tempo 
de  vibrar  o  golpe  de  misericórdia,  quando  Antó- 
nio Simões  genuflectiu  osculando-lhe  effusivamente 
a  mão,  levantou -o  carinhosamente  nos  braços,  en- 
costou-o  ao  peito,  que  conseguiu  fazer  arquejar, 
e  disse-lhe  :  «Pois  bem  !  já  que  adivinhaste  o  meu 
segredo,  respeita  a  minha  miséria,  deixa- me  aca- 
bar na  obscuridade  uma  vida  que  não  soube  con- 
servar no  throno.» 

António  Simões  jurou  guardar  a  mais  absoluta 
reserva,  para  tranquillisar  o  espirito  do  solitário, 
mas  o  seu  coração  transbordava  de  felicidade  ex- 
pansiva por  ser  elle  a  pessoa  a  quem  coubera  a 
sorte  de  restituir  á  patna  o  rei  Desejado  e  a  in- 
dependência perdida. 

Pediu,  instou  com  Matheus  Alvares  que  lhe 
desse  a  honra,  ainda  que  immerecida,  de  ser  seu 
hospede.  Alvares,  já  auctoritariamente,  intimou - 
lhe  que  se  abstivesse  de  insistir  no  offerecimento. 

Requereu  submissamente  António  Simões  que 
ao  menos  sua  alteza  real  se  dignasse  acceitar-lhe 


128 

uma  enxerga,  para  o  seu  real  corpo  repousar,  e 
uma  manta,  para  cobrir  o  seu  corpo  real. 

Matheus  Alvares  transigiu,  se  bem  que  ainda 
contrariado,  mas  previu  que  o  acceitar  a  enxerga, 
para  a  dar  depois  a  qualquer  mendigo,  seria  um 
acto  de  abnegação  que  António  Simões  se  apres- 
saria a  capitular  de  sublimemente  evangélico. 

Pedro  Affonso  quiz  ir,  com  o  seu  amigo  Antó- 
nio Simões,  beijar  a  mão  do  rei  Encoberto.  Ma- 
theus Alvares  deu  a  perceber  que,  sendo  Pedro 
Affonso  intimo  amigo  de  António  Simões,  não  po- 
dia nem  devia  reservar  de  um  o  segredo  que  ti- 
nha revelado  ao  outro.  Portanto,  deu  a  dextra  a 
beijar  a  Pedro  Affonso,  e  tratou-o  com  tanta  maior 
deferência  quanto,  desde  o  primeiro  lance  de  olhos, 
reconheceu  que  era  esse  o  homem  enérgico  e  re- 
soluto que  lhe  convinha. 

Effectivamente,  Pedro  Affonso  conservava  o 
typo  d'esses  chefes  athleticos  que  nas  sociedades 
grosseiras  se  impõem  ainda  pela  força.  Uma  pa- 
gina de  Herbert  Spencer  na  Sociologia  assignala 
que  é  a  força  que  constitue  ainda  o  primado  en- 
tre os  boschismans,  os  tapajos,  os  beduínos  e  ou- 
tros povos  selvagens.  S.  Julião,  no  século  xvi,  e 
porventura  ainda  hoje,  não  variava  muito  dos  cos- 
tumes dos  boschismans,  beduínos  e  quejandos. 

Era  de  elevada  estatura,  quasi  um  gigante.  Ca- 
beça leonina,  peito  arqueado,  braços  musculosos, 
voz  volumosa.  Estava  habituado  a  correr  aventu- 
ras com  as  armas  na  mão.  Combatera  nos  bata- 
lhões populares  pela  causa  do  prior  do  Crato,  o 
rei  mais  ephemero  e  também  mais  popular  que 
tem  havido  em  Portugal. 

Moralmente,  partia  do  principio  de  que  todos 
os  cam  inhos  levam  a  Roma,  e  para  derrubar  o  go- 


129 

verno  de  Castella,  que  odiava,  parecia-lhe  que  to- 
dos os  meios  seriam  excellentes  comtanto  que  of- 
ferecessem  alguma  probabilidade  de  bom  êxito, 

Matheus  Alvares  ficou  encantado  de  ouvil-o,  so- 
bretudo quando  Pedro  Affonso,  resolutamente,  poz 
cartas  na  mesa  e  aclarou  o  jogo. 

Tinha  uma  filha.  Estava  disposto  a  sustentar 
a  causa  de  el-rei  D.  Sebastião,  como  havia  sus- 
tentado a  do  Prior  do  Crato,  porque  elle  apenas 
queria,  segundo  affirmava,  assegurar  a  indepen- 
dência de  Portugal.  Mas  era  arriscado  o  jogo, 
porque  os  castelhanos  não  largariam  de  boa  mente 
o  poder  que  haviam  empolgado.  Offerecia-se  como 
chefe  das  hostes  do  Encoberto ,  deitaria  pregão  para 
uma  nova  cruzada,  recrutaria  gentes,  reuniria  ar- 
mas, com  o  auxilio  do  seu  amigo  António  Simões, 
se  ficasse  estipulado  que  sua  filha  viria  a  ser 
rainha  de  Portugal.  Declarou  que,  se  António  Si- 
mões tivesse  uma  filha,  não  faria  similhante  pro- 
posta, porque  ella,  em  attenção  ao  pae,  deveria 
ser  a  preferida.  Mas  como  António  Simões  tinha 
um  filho,  que  poderia  ser  largamente  agraciado 
pelo  soberano,  não  prejudicava  os  justos  direitos 
do  seu  amigo. 

O  rei  concordou.  António  Simões  subscreveu 
ao  pacto,  e  offereceu  a  Matheus  Alvares  mais  um 
soldado  na  pessoa  do  filho. 

Desde  essa  entrevista,  que  tomara  um  caracter 
decisivo,  Matheus  Alvares  era,  para  aquslles  dois 
homens,  o  rei  de  Portugal. 

IV 

Em  entrevistas  ulteriores,  Matheus  Alvares  com- 
binara com  Pedro  Affonso  e  António  Simões  qae, 


430 

ao  passo  que  elles  espalhariam  que  finalmente  el- 
rei  D.  Sebastião  havia  reapparecido  disfarçado  em 
eremita,  elle,  por  sua  vez,  negaria  sybillinamen- 
te,  isto  é,  por  palavras  duvidosas  e  vagas  a  sua 
qualidade  de  pessoa  real. 

D'este  modo  justificaria  o  disfarce  que  havia 
tomado  e  acautelava-se  de  qualquer  represália  que 
o  archiduque  Alberto  podesse  empregar  contra  elle. 

Eram  ainda  uns  assomos  de  medo  e  de  incer- 
teza pelo  impulso  que  Pedro  AfFonso  daria  ao  com- 
mettimento. 

Mas  Pedro  AfFonso  não  se  importava  de  correr 
todo  o  perigo  n'uma  empresa  cujo  bom  êxito  po- 
deria transformal-o  no  segundo  homem  de  Portu- 
gal, sogro  do  rei  e  seu  braço  direito.  Badalava 
por  toda  a  parte  que  na  gruta  de  S.  Julião  estava 
recolhido  o  rei  de  Portugal,  vivendo  em  miséria 
extrema  ;  que  era  preciso  repol-o  no  throno,  expul- 
sando o  estrangeiro  intruso ;  que  a  conquista  da 
independência  da  pátria,  estando  no  coração  de 
toda  a  gente,  apenas  dependia  do  regresso  do  rei, 
a  quem  o  throno  pertencia  perante  a  justiça  de 
Deus  e  o  direito  dos  homens.  «Ora,  perorava  elle, 
o  rei  voltou,  está  na  gruta  de  S.  Julião.  Ide  lá 
vel-o,  apresentar-lhe  as  vossas  homenagens  de 
amor  e  respeito.  Se  elle  vos  quizer  fazer  persua- 
dir de  que  não  é  D.  Sebastião,  tomae  as  suas  pa- 
lavras por  uma  prova  de  humildade  christã,  e  de 
arrependimento,  que  não  podemos  consentir. » 

A  filha  de  Pedro  Affonso,  António  Simões,  sua 
mulher  e  seu  filho  secunda  vam-n'o  n'esta  cruzada 
patriótica,  annunciando  aos  povos  que  o  rei  D.  Se- 
bastião tinha  voltado  e  estava  na  gruta  de  S.  Ju- 
lião sem  ter  enxerga  para  deitar-se,  nem  manta 
para  cobrir-se. 


131 

Formigueiros  de  gente  concorriam  diariamente 
a  visitar  o  Encoberto  na  sua  gruta  da  beira-mar. 
As  mães  levavam-lhe  açafates  de  fartes,  girgila- 
das  e  fructas.  As  filhas,  que  tinham  começado  por 
ir  beijar  a  mão  de  Matheus  Alvares,  acabaram 
por  levar-lhe  flores  do  campo,  que  dispunham  em 
tapete  dentro  e  fora  da  gruta,  como  fazem  delica- 
damente certas  aves  do  paraíso,  a  amblyomis  or- 
nata,  principalmente,  no  seu  ninho  primaveril. 

Elle,  dando  ao3  olhos  azues  uma  doce  expres- 
são de  ternura,  abraçava-as  respeitosamente,  e 
procurava  palavras  com  que  podesse  negar  frou- 
xamente ser  o  rei  D.  Sebastião,  sem  comtudo  fe- 
rir a  credulidade  ardente  do  mulherio  exaltado. 

Que  não  era  quem  ellas  cuidavam ;  mas  que  no 
seu  coração  havia  uma  inextinguível  magua  pela 
ruina  de  Portugal  e  pela  usurpação  feita  ao  rei 
lusitano,  que  elle  conhecera  muito  bem  n'uma  ilha 
encoberta,  como  diziam  as  trovas  do  propheta  de 
Trancoso. 

As  velhas  respondiam-lhe  que  não  estivesse  sua 
alteza  real  a  negar  a  sua  jerarchia,  e  as  rapari- 
gas, curvadas,  abraçavam-lhe  os  joelhos,  procu- 
rando beijar-lhe  os  pés  que,  graças  ao  aroma  das 
flores,  podiam  disfarçar  qualquer  exhalação  me- 
nos aromática  que  a  das  flores. 

Algumas  raparigas,  á  bocca  pequena  e  entre  si, 
queixavam-se  da  esperteza  ambiciosa  umas  das 
outras,  citando  o  nome  das  que  tinham  ido  de  noite 
perguntar  a  el-rei  D.  Sebastião  se  elle  queria  ser 
allumiado  pela  lamparina  dos  seus  olhos. 

Os  homens,  fanatisados  por  Pedro  Affonso,  prin- 
cipalmente, arregimenta vam-se  para  defender  a  sa- 
grada causa  do  rei  D.  Sebastião,  e  já  o  alistamento 
dos  yoluntarios  orçava  por  oitocentos  soldados, 


132 

Desenvolvendo  uma  grande  actividade,  no  com- 
inando em  chefe  da  hoste,  Pedro  Affonso  fazia  ex- 
cursões até  Torres  Vedras  a  fim  de  adquirir  ar- 
mas e  munições  de  guerra. 

Encontrava,  é  certo,  alguns  incrédulos,  que  lhe 
lembravam  o  caso  do  mallogrado  rei  de  Penama- 
cor. Mas  Pedro  Affonso,  com  uma  grande  audá- 
cia, respondia-lhes  que  fosse  ou  não  fosse  o  ven- 
cido de  Alcacer-quibir,  Matheus  Alvares  havia  de 
estar  sentado  no  throno  de  Portugal  antes  do  dia 
de  S.  João. 

Vendo  que  as  adhesoes  eram  numerosas,  e  que 
o  alistamento  engrossava,  o  que  valorisava  a  em- 
presa, Matheus  Alvares  julgou  ser  chegado  o  mo- 
mento opportuno  de  começar  a  execução  do  plano 
audacioso  a  que  se  havia  associado. 

Fixou  dia  para  a  solemne  acclamação  e  consor- 
cio de  sua  alteza  real.  Alea  jacta  erat :  Matheus 
Alvares,  comquanto  arriscasse  a  pelle,  não  podia 
recusar  nem  retroceder. 

No  burgo  da  Ericeira,  em  plena  praça  publi- 
ca, dispozeram-se  os  aprestos  para  as  grandes  ce- 
remonias  em  que  o  rei,  pela  primeira  vez  depois 
de  repatriado,  devia  apparecer  ao  seu  povo. 

As  flores  e  os  estandartes  ornamentavam  ga- 
lhardamente a  praça,  em  cujo  centro  fora  levan- 
tado o  sólio  com  docel  e  cadeiras  de  espaldar. 

N^m  altar,  armado  de  improviso,  a  coroa  de 
Nossa  Senhora  esperava  o  momento  de  descer  so- 
bre a  cabeça  da  rainha,  a  filha  de  Pedro  Affonso, 
e  ninguém  se  lembrava  de  perguntar,  nem  ella 
mesma,  se  seria  certo  que  D.  Sebastião  aborrecia 
as  mulheres,  como  dizem  alguns  escriptores  fáceis 
em  acreditar  cousas  pouco  verosímeis. 

Parecia-lhe  á  noiva  que  tal  não  succederia. 


133 

Em  torno  da  praça  o  pequeno  exercito  do  rei 
da  Ericeira,  marcialmente  equipado,  fazia  guarda 
de  honra  ao  throno. 

Um  vozear  atroador  e  festivo  saudou  a  appari- 
ção  do  cortejo  real. 

Vinham  á  frente  dois  mocetões  de  Fonte  Boa 
dos  Nabos  desempenhando  as  funcçoes  de  portei- 
ros da  canna. 

Seguiam-se  os  reis  de  armas,  a  cavallo  e  des- 
cobertos, e  os  moços  da  estribeira :  a  fina  flor  dos 
rapazes  de  Odrinhas  e  Chelleiros. 

O  cargo  de  estribeiro-mór  era  exercido  por  Pe- 
dro Affonso,  que  tivera  a  discrição  de  se  nobili- 
tar com  o  appellido  de  Menezes. 

A  cavallo,  e  coberto,  o  seu  olhar  altivo  domi- 
nava a  multidão. 

Com  pequeno  intervallo,  cavalgava  o  rei,  car- 
navalescamente  magestoso,  de  elmo  e  arnez,  com 
o  manto  de  purpura  pendente  sobre  as  ancas  do 
cavallo  branco.  A  espada  núa  não  era  precisamente 
a  de  Affonso  Henriques,  que  D.  Sebastião  tinha 
levado  para  Alcacer-quibir,  mas  não  seria  menos 
antiga.  A  futura  rainha  montava  também  um  ca- 
vallo branco,  que  António  Simões,  por  grande 
distincção  honorifica,  levava  de  rédea. 

O  vestido  era  de  fazenda  azul-celeste,  decota - 
do,  e  com  tufos  brancos  nas  mangas.  Na  cabeça 
bonnet  de  velludo  preto,  com  pluma  branca  e  pe- 
dras falsas.  Punhos  de  renda  cuja  brancura  con- 
trastava com  a  negrura  das  mãos  crestadas.  Desde 
a  cintura  até  aos  pés  um  cordão  de  retroz  ama- 
rello  intervallado  com  esmeraldas  de  vidro.  Hom- 
bros  nus,  opulentos  de  carnação  sadia,  e  algum 
tanto  morena.  Um  collar  de  ouroj  com  um  bonso 
pendurado. 


134 

Após  as  pessoas  reaes  agglomerava-se  multi- 
dão de  cavalleiros,  sem  distincção  de  logares  e 
cobertos  :  as  rédeas  soffreadas,  as  cabeças  dos 
cavallos  muito  altas,  os  pés  enfiados  nos  estribos 
quasi  até  aos  calcanhares. 

Hoje  poder-se-ia  chamar  áquillo  um  cirio.  No 
anno  da  graça  de  1585  era  a  parodia  de  um  cor- 
tejo real. 


O  rei  e  a  rainha  descavalgaram  á  ilharga  da 
praça  do  Jogo  da  Bola,  e  dirigiram-se,  a  pas- 
so mesurado,  para  o  sólio  erguido  a  meio  da 
praça. 

O  rei  subiu  primeiro  e  conservou-se  de  pé  so- 
bre o  throno.  Pedro  Affonso,  com  voz  stentorosa, 
perguntou,  do  alto  do  ultimo  degrau : 

—  Não  é  verdade  que  reconheceis  a  presença 
do  nosso  senhor  e  rei  D.  Sebastião,  que  Deus  guarde 
por  muitos  e  dilatados  annos  ? 

—  E'  verdade !  é  verdade !  conclamou  a  mul- 
tidão. 

Pedro  Affonso  proseguiu  : 

—  Não  é  verdade  que  de  livre  vontade  o  reco- 
nheceis como  nosso  senhor  e  rei,  a  quem  de  di- 
reito pertence  a  coroa  de  Portugal? 

—  E'  verdade !  é  verdade !  repetiu  em  coro  a 
multidão. 

Então  Pedro  Affonso  subiu  ao  estrado,  tirou 
delicadamente  o  elmo  que  cingia  a  cabeça  de  Ma- 
theus  Alvares,  substituindo-o  pela  coroa  real,  que 
o  capellão  da  ermida  do  Espirito  Santo  lhe  en- 
tregou depois  de  a  ter  abençoado  na  presença  do 
povo. 


135 

Procedeu-se  em  seguida  ao  casamento,  sendo  a 
filha  de  Pedro  Affonso  conduzida  ao  solío  pela 
mão  de  António  Simões. 

O  capellão  da  ermida  do  Espirito  Santo  pro- 
nunciou em  alta  voz  as  palavras  sacramentaes, 
terminando  por  collocar  sobre  a  cabeça  da  rainha 
a  coroa  de  Nossa  Senhora. 

Então  uma  cerrada  metralha  de  flores,  con- 
feitos e  grãos  de  trigo  cobriu  litteralmente  o 
sólio,  fustigando,  por  varias  vezes,  as  reaes  fa- 
ces dos  augustos  cônjuges. 

Junto  á  Fonte  do  Cabo,  a  mais  antiga  fonte  da 
povoação,  estrugiram  morteiros  atroadores. 

O  cortejo  desfilou  novamente  no  meio  d'este 
estrondoso  charivari,  e  suas  altezas  reaes  foram 
hospedar-se  em  casa  de  António  Simões,  que  fi- 
cou sendo  provisoriamente  o  paço  do  rei  de  Por- 
tugal. 

N'esse  mesmo  dia,  Matheus  Alvares,  querendo 
remunerar  tantas  provas  de  dedicação  recebidas, 
agraciou  seu  sogro  com  os  títulos  de  conde  de 
Monsanto,  marquez  de  Torres  Vedras,  senhor  da 
Ericeira  e' governador  de  Lisboa...  in  partibus 
injidelium. 

A  uma  das  Valverdes,  prima  da  rainha,  nobi- 
litou com  o  titulo  de  condessa.  Creou  mais  um 
duque,  e  um  marquez,  títulos  que  ainda  hoje  se 
conservam  como  alcunha  nas  famílias  agraciadas. 
Também  ainda  subsiste  o  titulo  de  rainha  em  Anna 
Sunana,  descendente  da  filha  de  Pedro  Affonso. 

A'  noite  o  burgo  da  Ericeira  illuminou ;  as  suas 
casas  brancas,  de  um  aspecto  moirisco,  tinham  a 
animação  de  uma  folia  do  Ramadan  em  Marro- 
cos. Havia  gente  ás  janelias  e  ás  portas.  Pelas 
ruas  estreitas  formigava  a  multidão  como  se  a  voz 


136 

do  mudden,  em  pleno  Ramadan,  lhe  houvesse  an- 
nunciado  a  hora  do  magreb. 

E  todavia  estava-se  num  paiz  chris-ão,  que  en- 
tão, mais  do  que  nunca,  odiava  os  moiros,  causa- 
dores da  derrota  tremenda  de  Alcacer-quibir. 

A  filha  de  Pedro  Affonso  não  encontrou  no  leito 
nupcial  o  frio  D.  Sebastião  descripto  por  Cezar 
Cantu  e  outros  historiadores.  O  que  ella  achou  foi 
um  D.  Sebastião  mais  perfeito  que  o  das  historias. 
Historias ! 

A  comedia  da  Ericeira  teve  écco  em  Lisboa, 
chegou  ao  conhecimento  da  corte  do  archiduque 
Alberto.  Com  a  primeira  tentativa  de  mystificação, 
representada  pelo  rei  de  Penamacor,  mostrou-se  o 
archiduque  benevolente.  Mas,  em  vista  de  uma 
nova  tentativa,  aggravada  pela  reincidência  do 
espirito  popular  que  a  applaudia,  o  regente  julgou 
dever  proceder  com  severidade. 

Foi  enviado  á  Ericeira  o  corregedor  Diogo  da 
Fonseca,  que  já  tinha  instruído  o  processo  do  rei 
de  Penamacor. 

A'  noticia  da  sua  aproximação,  os  voluntários 
da  hoste  de  Pedro  Affonso  intimidaram-se  a  ponto 
de  desertar  :  uns  foram  esconder- se  nos  barrocaes 
do  litoral  entre  a  Ericeira  e  Peniche ;  outros,  os 
que  eram  pescadores,  fizeram  se  ao  mar. 

O  próprio  rei  desappareceu  com  a  sua  real  es- 
posa. E  Pedro  Affonso,  vendo-se  sem  soldados, 
sumiu-se  também. 

Ficaram  apenas  as  mulheres  e  as  creanças. 

Que  noite  aquella,  comparada  com  a  da  solemne 
acclamação  de  el-rei  Matheus  Alvares  !  Comquanto 
se  estivesse  no  estio,  soprava  um  rijo  vento  nor- 
te, que  fazia  ulular  funebremente  os  moinhos  sobran- 
ceiros ao  burgo.  As  ruas  silenciosas  e  desertas. 


i37 

As  casas  luctuosamente  fechadas.  Só  de  vez  em 
quando  se  ouvia  a  voz  plangente  das  mulheres  que, 
lastimando-se,  voltavam  de  ser  inquiridas  pelo 
corregedor. 

Relacionados  os  réos  de  alta  traição,  Diogo  da 
Fonseca  retirou  para  Lisboa,  expedindo^os  respe- 
ctivos mandados  de  captura  ás  justiças  de  Tor- 
res Vedras. 

E'  n'este  lance  que  se  evidenceia  a  audácia  de 
Pedro  Affonso.  Vendo  escapar-se-lhe  das  mãos  o 
seu  próprio  marquesado  e  a  coroa  real  da  filha, 
julgou  dever  jogar  uma  ultima  cartada. 

Teve  artes  de  alliciar  de  novo  os  fugitivos  e  de 
os  armar  para  combate,  estimulando  o  animo  das 
mulheres  com  dizer-lhes  que  elle,  com  as  armas 
na  mão,  vingaria  em  Lisboa  o  ultrage  que  lhes 
fora  feito  pelo  corregedor  da  corte. 

Ao  mesmo  passo,  induzia  o  genro  a  proclamar 
ao  paiz,  dando-se  a  conhecer  como  sendo  o  rei  D. 
Sebastião,  convidando  o  povo  a  expulsar  o  estran- 
geiro e  a  reivindicar  a  coroa  para  o  legitimo  rei. 

Pedro  Affonso  ensinou  a  António  Simões,  sem- 
pre fácil  em  acredital-o,  que  o  almirante  D.  Diogo 
ds  Sousa,  que  acompanhara  D.  Sebastião  a  Afri- 
ca, tinha  tido  uma  entrevista  com  Matheus  Alva- 
res na  gruta  de  S.  Julião,  e  o  havia  reconhecido 
como  sendo  o  próprio  rei. 

Esta  prova  era  tão  concludente,  que  António 
Simões  correu  a  noticial-a  de  povoação  em  po- 
voação, fazendo  grande  numero  de  proselytos. 

Tendo  já  armado  e  espiritado  o  seu  exercito, 
Pedro  Affonso  julgou  dever  romper  as  hostilida- 
des antes  que  os  mandados  de  captura  chegassem 
ao  seu  destino. 

Chamou  o  filho  de  António  Simões  e  pergun- 


138 

tou-lhe  se  elle  estava  disposto  a  desempenhar  uma 
commissão  de  honrosa  importância. 

—  Tudo,  respondeu  com  firmeza  o  rapaz. 

—  Pois  bem.  Vaes  a  Lisboa  e  entregas  ao  re- 
gente esta  carta  de  sua  alteza  real,  nosso  rei  e 
senhor.    « 

O  filho  de  António  Simões  deu-se  pressa  em 
partir  para  Cintra,  onde  descansou  alguns  in- 
stantes, seguindo  logo  para  Lisboa. 

Chegado  ao  Paço  da  Ribeira,  em  quinta  feirada 
Ascensão,  perguntou  se  poderia  fallar  ao  cardeal 
archiduque  Alberto.  Disseram-lhe  que  o  cardeal 
tinha  ido  á  Sé.  Dirigiu-se  immediatamente  para  a 
Sé  e,  avistando  o  cardeal,  que  saía  da  egreja,  poz- 
se  de  joelhos  deante  d'elle,  e  entregou-lhe  a  carta. 

O  archiduque  leu.  Era  um  cartel  insolente  in- 
timando-o  a  restituir-lhe  sem  delongas  o  governo 
de  Portugal. 

Sorriu  o  cardeal,  e  mostrou  a  carta  ao  correge- 
dor, que  o  acompanhava.  Diogo  da  Fonseca  in- 
dignou-se  e  ali  mesmo  interrogou  o  portador  da 
missiva : 

—  De  quem  é  esta  carta? 

—  D'el-rei  nosso  senhor,  que  a  escreveu  de  seu 
punho. 

—  Ah  !  villão,  que  estás  zombando  ! 

—  Por  Deus,  meu  senhor,  que  o  solitário  da 
gruta  é  propriamente  em  pessoa  el-rei  D.  Sebas- 
tião. Meu  pae  e  minha  mãe  conhecem-n'o  como 
aos  seus  dedos,  e  toda  a  gente  lá  sabe  que  é  esta 
a  pura  da  verdade. 

—  Que  tolice  ou  que  descaramento  !  exclamou 
o  corregedor. 

—  Que  ingenuidade  !  replicou  ostentosamente 
o  archiduque.  Deixae  ir  em  paz  o  muchacho. 


139 

— Deixal-o  ir,  meu  senhor! 

—  Não  dêmos  importância  áquillo  que  de  sua 
natureza  a  não  tem.  Quando  os  perseguimos,  fo- 
gem !  Que  raça  de  valentes  ! 

E  o  archiduque  despediu,  sorrindo  com  altivez 
castelhana,  o  filho  de  António  Simões. 

Mas  o  corregedor,  recolhendo  a  casa,  mandou 
officiar  ao  seu  collega  de  Torres  Vedras  ordenan- 
do-lhe  que  sem  demora  procedesse  á  captura  dos 
sebastianistas  da  Ericeira. 

VI 

Pedro  Affonso,  vendo  voltar  o  filho  de  António 
Simões,  o  que  porventura  não  esperava,  tirou  d'ahi 
argumento  para  exaltar  a  imaginação  dos  seus  vo- 
luntários, dizendo-lhes  que  o  regente  tanto  reconhe- 
cia a  verdade  da  carta,  que  se  não  atrevera  a  con- 
testai-a. 

Ao  mesmo  tempo  tomava  as  suas  precauções, 
cobrindo  a  rectaguarda  no  intuito  de  marchar  so- 
bre Lisboa. 

Mafra  estava  bem  policiada,  e  o  litoral  era  vi- 
giado a  todo  o  momento.  Como  reféns,  ordenara 
aos  de  Mafra  que  pozessem  cerco  á  casa  do  dou- 
tor Gaspar  Pereira,  magistrado  superior  e  mem- 
bro do  conselho  real. 

O  corregedor  de  Torres  Vedras,  estimulado 
pela  instancia  que  lhe  fizera  o  corregedor  da  corte, 
dirigira-se  á  Ericeira. 

Mas  em  Mafra  os  revoltosos  prenderam-n'o  e 
ameaçaram-n'o  de  morte. 

O  golpe  de  mão  estava  preparado.  Na  véspera  de 
S.  João  o  exercito  sebastianista,  commandado  por 
Pedro  Affonso,  atacaria  Lisboa,  forçando  a  entrada. 


140 

Justamente  n'esta  occasião.  chegava  a  Lisboa 
uma  carta  do  jesuíta  Leão  Henriques,  antigo  con- 
fessor do  cardeal-rei,  para  o  secretario  distado 
Miguel  de  Moura,  incluindo  um  exemplar  da  pro- 
clamação espalhada  por  Matheus  Alvares. 

Immediatamente,  Miguel  de  Moura  ordenou  ao 
marquez  de  Santa  Cruz,  capitão-general  de  mar 
e  terra,  que  pozesse  á  disposição  do  corregedor 
da  corte  as  forças  suffi cientes  paia  baterem  os  re- 
voltosos. 

A  ordem  foi  logo  cumprida. 

Diogo  da  Fonseca,  cinco  léguas  andadas  de 
Lisboa,  soube  que  o  corregedor  de  Torres  Vedras 
tinha  sido  lançado  ao  mar  do  alto  das  ribas  da 
Ericeira  ;  que  o  doutor  Pereira,  um  filho  e  um  so- 
brinho, foram  massacrados  pelos  revoltosos  em 
Mafra  ;  finalmente,  que  Pedro  Affonso  havia  en- 
trado no  caminho  das  mais  sangrentas  represálias 
tripudiando  n'um  orgia  de  sangue. 

Sem  mais  demora,  avançou  para  a  Ericeira, 
quartel-general  dos  sebastianistas. 

Ahi  pelas  alturas  de  Odrinhas,  appareceu-lhe 
uma  guarda-avançada  de  esclarecedores  revolto- 
sos. Seriam  uns  duzentos.  Diogo  da  Fonseca  man- 
dou-os  intimar  para  que  se  rendessem.  EUes  res- 
ponderam-lhe  audaciosamente  com  uma  descarga 
de  arcabuzes.  O  combate  foi  rápido  e  decisivo. 
Desmantelados  os  sebastianistas  de  Matheus  Al- 
vares, trataram  de  salvar-se  fugindo ;  mas  cerca 
de  oitenta  cairam  em  poder  do  corregedor,  que 
lhes  arrancou  pelo  terror  ou  pela  tortura  o  segredo 
do  seu  plano  de  campanha. 

Soube  Diogo  da  Fonseca  que  o  grosso  da  guer- 
rilha havia  sahido  de  Torres  Vedras  na  hypothese 
de  ofFerecer  combate  ás  forças  castelhanas,  já  a 


141 

esse  tempo  reforçadas  pelas  companhias  que  os 
capitães  Santo-Esteban  e  Collantes  commandavam. 

Tendo  expedido  dois  esclarecedores  a  cavallo, 
as  tropas  do  governo  hespanhol  foram  avançando 
para  o  valle  do  rio  de  Chelleiros,  e  iam  já  descendo 
a  vertente  meridional  do  valle  quando  os  esclare- 
cedores retrocederam,  á  rédea  solta,  para  annun- 
ciar  que  a  guerrilha  dos  revoltosos  estava  á  vista. 

Desde  a  Carvoeira,  o  declive  da  vertente  me- 
ridional é  pedregoso  e  alpestre.  Plantas  silvestres 
verdejam  pallidamente  n'um  ou  n'outro  cômoro, 
mas  o  valle,  por  onde  o  rio  deslisa  tortuosamente, 
escacissimo  de  aguas  no  verão,  é  feracissimo,  e 
os  trigos  vegetavam  altos  e  robustos. 

Diogo  da  Fonseca  tinha  dois  meios  a  seguir. 
Demorar-se  no  topo  da  vertente,  pairando  como 
Fabius  Cunctator  ou  avançar  resolutamente  ao  en- 
contro da  guerrilha. 

Como  não  tinha  por  inimigo  Annibal  ou  quem 
o  valesse,  e  como  estivesse  cônscio  da  força  nu- 
mérica e  disciplina  militar  do  exercito  que  lhe 
obedecia,  não  quiz  desairal-o  a  ponto  de  mostrar 
receio  da  guerrilha.  De  mais  a  mais  recebera  in- 
strucçoes  para  acabar  com  a  insurreição  fulminan- 
temente. Metteu-se  pois  ao  «valle  com  a  intenção 
de  ganhar  a  vertente  setemptrional.  Mas,  ao  atra- 
vessal-o,  como  se  ouvisse  já  perto  o  alarido  ber- 
beresco  da  guerrilha,  mandou  occultar  os  seus  ar- 
cabuzeiros entre  os  trigos,  e  só  elle  avançou  a  ca- 
vallo, acompanhado  por  uma  pequena  escolta  de 
officiaes  de  justiça. 

A  guerrilha  vinha  chibante,  fanfarrona,  caminho 
do  valle:  á  frente,  Pedro  Affonso  a  cavallo,  no 
meio  de  um  estado-maior  que  não  brilhava  pelo 
numero.  Eram  os  mesmos  pimpões  de  Fonte  Boa 


142 

dos  Nabos,  que  tinham  precedido  o  cortejo  real 
no  dia  da  acclamação. 

Mal  que  avistaram  o  corregedor  e  a  sua  pe- 
quena escolta,  deram  em  perseguil-o  com  grande 
fúria  e  grita.  Mas  o  corregedor  e  os  seus  desan- 
daram a  galope  simulando  medo.  A  guerrilha, 
chegando  ao  topo  da  encosta,  achou  deserto  o 
valle,  e  só  avistou  ao  longo  da  planície  o  corre- 
gedor, que  fugia  á  rédea  solta  contra  a  corrente 
do  rio. 

As  tropas  regulares  viram,  dentre  os  trigos, 
descer  os  sebastianistas,  e,  quando  elles  desceram, 
deram  a  primeira  descarga  de  arcabuzes,  que  foi 
terrivelmente  mortífera. 

Pedro  Affonso,  reconhecendo  o  estratagema,  lar- 
gou a  fugir,  e  a  guerrilha,  espavorida  e  fraccio- 
nada, procurava  baldadamente  ganhar  algumas 
das  vertentes  do  valle.  Muitos  dos  voluntários  fica- 
ram prisioneiros,  e  não  poucos  cairam  mortos  e 
feridos. 

Houve  porém  um  grupo  de  sebastianistas  que 
se  portou  com  heróica  bravura.  No  valle,  a  pe- 
quena distancia  da  vertente  septemtrional,  assenta 
a  egreja  de  Nossa  Senhora  do  Porto,  que  foi  mes- 
quita, e  que  denuncia  ainda  todo  o  seu  cunho  de 
antiguidade  moirisca,  comquanto  a  data  mais  an- 
tiga que  hoje  se  nos  depara  lá  seja  a  de  1627. 

Os  últimos  guerrilheiros  do  rei  da  Ericeira  for- 
tificaram-se  valorosamente  no  alpendre  e  nos  pa- 
rapeitos do  muro  que  torneja  o  templo.  D'ahi  con- 
tinuaram descarregando  os  seus  arcabuzes  até  os 
derradeiros  cartuchos.  Não  podendo  ganhar  a  ver- 
tente, procuraram  morrer  com  honra. 

Este  feito  militar  faz-nos  lembrar  de  uma  tela, 
Les  ãerniers  cartouches,  em  que  o  pintor  Neuville 


143 

eternisou  um  episodio  similhante,  occorrido  em 
Bazeilles,  por  occasião  da  batalha  de  Sédan. 

O  que  em  Sédan  fizeram  em  1870  os  soldados 
de  ihfanteria  de  marinha  —  que  nós  cá  não  temos 
—  realisaram-n'o,  no  nosso  pequeno  paiz,  em 
1585,  os  guerrilheiros  do  rei  da  Ericeira,  Ma- 
theus  Alvares. 

E  elle,  o  heroe  da  gruta  de  S.  Julião  ?  Que  é 
feito  d'elle? 

Matheus  Alvares,  avisado  da  approximação  da 
sua  guerrilha,  fora  cautelosamente  observal-a  do 
alto  de  um  dos  montes  que  pelo  norte  dominam  o 
valle.  Chegou  a  tempo  que  o  corregedor  Diogo 
da  Fonseca  e  a  sua  pequena  escolta  de  beleguins 
fugiam  á  rédea  solta  pelo  valle  dentro,  simulando 
grande  medo.  O  rei  da  Ericeira  desconcertou-se 
da  sua  gravidade  real  batendo  palmas  á  fuga  do 
corregedor,  que  julgava  ser  sincera ;  e  com  elle 
applaudiram  também  dois  ou  trez  próceres  invá- 
lidos que  o  acompanhavam. 

Mas  quando  d'entre  os  trigos  explodiu  a  pri- 
meira descarga  dos  arcabuzeiros,  Matheus  Alva- 
res largou  a  fugir  sem  se  importar  com  os  próce- 
res inválidos,  nem  com  a  dignidade  real,  nem  com 
os  seus  guerrilheiros  sacrificados. 

Na  hypothese  de  uma  invasão  das  tropas  cas- 
telhanas pelo  sul,  a  rainha  havia-se  aposentado 
na  Ericeira,  onde  as  primas  Valverdes  e  outras 
moçoilas  nobilitadas  lhe  assistiam  em  improvisada 
corte. 

•  Quando  a  guerrilha  passou  na  Ericeira  para 
vir  tomar  o  caminho  de  Cintra,  por  onde,  segundo 
o  plano  de  Pedro  AfFonso,  devia  marchar  sobre 
Lisboa,  a  rainha  com  as  suas  donas  e  donzellas 
saiu  ao  encontro  dos  voluntários  fazendo-lhes  fes- 


144 

tiva  recepção  e  saudando  o  pae,  que  do  alto  do 
bucéphalo,  como  Cid  Campeador  o  poderia  fazer 
de  cima  do  seu  famoso  Babieca,  a  cumprimentou 
inclinando  a  espada  impolluta. 

Pobre  rainha  saloia !  Esperando  o  pae,  não  foi 
tão  infeliz  como  a  filha  de  Jephté,  mas  a  sua  gran- 
deza real  estava  condemnada  por  horas. 

As  raparigas  do  burgo,  fanatisadas  pela  causa 
do  solitário  de  S.  Julião,  offereciam  aos  volunta* 
rios  copinhos  de  agua-ardente  e  flores.  Sorriam- 
lhes  e  acclamavam-n'os.  Mas  dentro  de  pouco 
tempo  todo  este  scenario  de  ovação  patriótica  se 
transmudava  no  quadro  lúgubre  de  uma  derrota 
tremenda. 

E  quem  sabe  talvez  se  os  heroes  que  queima- 
ram os  seus  últimos  cartuchos  na  egreja  de  Nossa 
Senhora  do  Porto  não  teriam  sido  mais  alcoolisa- 
dos  pelo  amor  do  que  pelos  copinhos  d'aguardente 
que  beberam? 

O  amor  é  sempre  o  mesmo  impulsor  de  nobres 
audácias,  seja  nas  cidades  ou  nas  aldeias. 

Quem  hoje  afunda  o  olhar  na  grande  sere- 
nidade de  valle,  por  onde  o  rio  de  Chelleiros  en- 
tra no  mar,  próximo  á  Ericeira,  mal  poderá  re- 
construir o  episodio  guerreiro  que  ali  occorreu, 
entre  descargas  de  arcabuzes  atroadores,  ha  tre- 
zentos e  cinco  annos  exactos. 

VII 

O  corregedor  Diogo  da  Fonseca  marchou,  de- 
pois da  victoria,  sobre  Mafra,  onde,  tendo  man- 
dado instaurar  uma  severa  devassa,  fez  celebrar 
honras  fúnebres  por  alma  do  doutor  Gaspar  Pe- 
reira, seu  filho  e  sobrinho. 


145 

O  pobre  corregedor  de  Torres  Vedras  nem  suf- 
fragios  teve.  A  ingratidão  dos  governos !  Ponde 
os  olhos  n'isto,  ó  ingénuos  magistrados  do  presente 
e  do  futuro. 

E'  claro  que  Diogo  da  Fonseca  tratou,  em  pri- 
meiro logar,  de  haver  ás  mãos  o  rei  da  Ericeira 
e  Pedro  Affonso. 

Matheus  Alvares  fugindo  de  serra  em  serra,  pe- 
las terras  dentro,  pediu  poisada  n'uma  locanda. 
A  estalajadeira,  sabendo  d'ahi  a  pouco  a  noticia 
da  derrota,  entrou-se  de  receios  pela  responsabi- 
lidade que  lhe  cabia  por  dar  hospedagem  ao  so- 
litário de  S.  Julião,  muito  conhecido  em  dez  lé- 
guas ao  redor.  Mas  um  sentimento  bom,  de  pie- 
dade feminina,  acabou  por  convencel-a  a  receber 
na  sua  casa  o  pobre  rei  duas  vezes  vencido.  Ti- 
nha ella  razão  para  receiar  das  represálias  do  go- 
verno castelhano,  bem  mais  razão  por  certo  do  que 
tivera  o  marquez  de  Santa  Cruz  para  mandar  re- 
forçar em  Lisboa  a  guarda  do  Paço  da  Ribeira, 
com  medo  da  guerrilha  dos  sebastianistas.  O  certo 
é,  porém,  que  a  piedade  poude  mais  n'ella  do  que 
o  medo,  e,  acolhendo  o  rei  fugitivo,  ungiu-lhe  por- 
ventura o  corpo  fatigado  com  lagrimas  piedosas. 
Dois  dias  depois,  soldados  castelhanos  cerca- 
vam a  locanda,  e  hospede  e  hospedeira  caiam  nas 
mãos  do  corregedor  Diogo  da  Fonseca. 

Matheus  Alvares  era  sem  demora  enviado  para 
Lisboa,  sobre  o  dorso  de  um  burro,  como  Jesus 
Christo  entrou  em  Jerusalém.  António  Simões  e 
outros  graduados  sebastianistas,  com  excepção  de 
Pedro  Affonso,  acompanhavam-n'0  custodiados  e 
montados  biblicamente,  como  elle.  As  mãos  atadas 
atraz  das  costas.  A  gente  que  transitava  pelas 
ruas  da  cidade,  e  que  tinha  visto  passar  pouco 


<46 

antes  o  archiduque  Alberto,  viu  chegar  o  rei  da 
Ericeira  com  o  seu  irrisório  cortejo,  chasqueado 
e  apupado  pelos  transeuntes  castelhanos. 

A  pobre  estalajadeira,  que  dera  poisada  a  Ma- 
theus  Alvares,  foi,  com  outras  muitas  pessoas, 
justiçada  no  Alto  da  Forca,  na  Ericeira,  a  mesma 
eminência  onde  o  povo  d'aquella  villa  julga  ainda 
hoje  que  foi  executado  o  falso  D.  Sebastião. 

N'uma  manhã  de  setembro  d'este  anno,  junto 
á  egreja  de  Nossa  Senhora  do  Porto,  perguntava 
eu  ao  tio  Filippe  Gaspar,  o  mais  lettrado  campo- 
nez  da  Carvoeira: 

—  Onde  foi  então  que  mataram  Matheus  Alva- 
res? 

E  elle  respondia  com  arreigada  convicção : 

—  Na  Ericeira,  no  Alto  da  Forca. 

E'  uma  tradição  confusa,  que  emparelha  na 
morte  o  rei  e  os  seus  partidários.  Ali  mesmo  na 
Ericeira,  onde  o  povo  lançara  ao  mar  o  correge- 
dor de  Torres  Vedras,  e  onde  Pedro  Affonso  fi- 
zera quartel-general,  era  natural  que  Diogo  da 
Fonseca  quizesse  dar  o  espectáculo  de  uma  se- 
vera punição.  Mas  era  também  natural  que  o  go- 
verno de  Castella  quizesse,  por  sua  vez,  mostrar 
á  capital  a  dureza  do  castigo  com  que  punia  os 
que  ousavam  incommodal-o. 

Matheus   Alvares  fez  declarações  categóricas  : 

—  O  seu  plano,  combinado  com  Pedro  Affonso, 
era  entrar  em  Lisboa  na  véspera  de  S.  João,  quando 
o  povo  estivesse  reunido  nos  folguedos  tradicionaes 
d'essa  noite.  Dar-se-ia  a  conhecer  como  sendo  o 
rei  Encoberto ,  annunciado  nas  trovas  do  Bandarra, 
e,  depois  de  reconhecido  e  acceito  pelo  povo,  dir- 
lhe-ia  do  alto  de  um  balcão :  Eu  não  sou  o  rei 
D.  Sebastião,  mas  sou  um  homem  que  vos  resti- 


147 

tuiu  a  independência  da  pátria  livrando-vos  do 
jugo  de  Castella. 

E  o  povo  reconhecido  não  duvidaria  acceital-o 
como  rei. 

Eis  o  que  elle  havia  pensado  nas  noites  silen- 
ciosas da  gruta  de  S.  Julião. 

A  14  de  junho,  Matheus  Alvares  foi  conduzido 
ao  cadafalso.  Cortaram-lhe  primeiro  a  mão  com  que 
elle  havia  falseado  a  assignatura  de  D.  Sebastião  ; 
depois  enforcaram-n'o  com  alguns  dos  seus  cúmpli- 
ces ;  por  ultimo,  cortaram  a  cabeça  ao  cadáver, 
espetaram- n'a  n'um  poste,  e  esquartejáram-lhe  o 
corpo,  pregando-lhe  os  quartos  nas  portas  da  ci- 
dade. 

Pedro  Affonso  conseguiu  andar  a  monte  durante 
algum  tempo.  Mas  acabou  por  ser  denunciado  por 
um  dos  seus  correligionários,  vendido  a  Castella. 
Enviado  a  Lisboa,  teve  a  sorte  do  genro  :  enforcado 
e  espostejado. 

E  a  filha,  a  mallograda  rainha?  Que  ella  so- 
breviveu ao  desgosto  de  perder  a  coroa,  não  ha 
duvida  nenhuma,  porque  deixou  descendência  que 
na  Ericeira  perpetuou  a  alcunha  de  Rainha  na 
sua  família.  Provavelmente,  atiraram-n'a  no  pri- 
meiro momento  para  o  fundo  de  um  cárcere,  até 
que  se  apiedaram  d'ella,  e  lhe  restituíram  a  liber- 
dade. Pobre  mulher !  ella  tudo  havia  sacrificado 
ao  impostor  Matheus  Alvares,  tudo. .  . ;  era  justo 
que  lhe  dessem  alguma  compensação  piedosa.  De 
mais  a  mais,  nem  o  seu  sexo  nem  a  sua  desgraça 
eram  temerosos  para  o  governo  de  Castella.  Per- 
doando-lhe,  ligavam-lhe  menos  consideração  do 
que  a  seu  marido,  cuja  sombra,  vista  á  distancia 
de  legoas,  fizera  reforçar  a  guarda  do  Paço  da 
Eibeira ! 


148 

De  simulato  rege  Sebastiano  é  o  titulo  do  poema 
em  que  o  doutor  Estevam  Rodrigues  de  Castro 
contou  as  façanhas  do  rei  da  Ericeira.  Eu,  que  já 
vou  estando  divorciado  do  verso,  achei  que  era 
preferível  a  prosa  para  contar  uma  historia  em 
que  o  único  poeta  que  figura  é  um  sapateiro. 

Lisboa,  10  de  novembro  de  1890. 


chaucuÀ)    ã/J    «ú/ma!    a\.\/m,ojO 


OTttEllOSITO 

Comedia  original  em  1  acto 


10 


> 


êsmmímí 


EDUARDO,  irmão  de 
ALBERTINA. 

ACTUALIDADE 

TJma  modesta  saleta,  desordenadamente  mobilada.  Á  direita 
mesa ;  em  cima  uma  barretina  de  papelão  e  uma  espada  de 
folha/Proximo,  uma  cadeira  de  jantar,  para  creança,  com  uma 
grande  boneca  sentada. —Ao  fundo,  um  canapé.  —  Á  es- 
querda, portas  envidraçadas  para  o  jardim.  Perto,  um  ca- 
vallo  de  balanço.  — Á  direita,  um  piano  de  estudo. 

Scena  I 

ALBERTINA,  sentada  ao  piano,  corre  escalas.  EDUARDO  montado  no 
cavallo  de  balanço,  faz  contas  n'uma  pedra,  collocada  sobre  a  ca- 
beça do  cavallo. 

EDUARDO 

Tres  vezes  nove .  . .  dezoito .  . ,    Oh  !  Não  ando 
para  traz  nem  para  diante.  . 

ALBERTINA 

Apezar  de  estares  a  cavallo. 

EDUARDO 

Vá  lá  fazer  cohtas  com  esse  chocalho  a  mar- 
tellar-me  os  ouvidos  e  a  paciência. 

(Vae  sentar-se  n'uma  cadeira  com  a  pedra  sobre  a  perna  traçada). 


152 


ALBERTINA. 


Cáustica  menos  um  chocalho  do  que  um  cho- 
calheiro como  tu. 


EDUARDO 


Não  me  accusa  a  consciência  de  metter  no  bico 
dos  outros  o  que  vejo  ou  oiço. 


ALBERTINA 

Francamente  não  sei  de  que  te  sirva  a  feliz  me- 
moria que  tanto  te  gabam. 

EDUARDO 

Ora!. . .  deixa- os  lá  f aliar. 

ALBERTINA 

Papagueias  tudo  em  casa  que  ouves  de  véspera 
no  theatro . . . 

(EDUARDO  (cumprimentando  irónico) 

De  V.  Ex.a;  papagaio  reconhecido. 

ALBERTINA 

Esqueces-te   então  das  queixas   que   fazes  de 
mim? 

EDUARDO 

Eu  ? ! .  • .  Não  estás  boa  de  cabeça, 

ALBERTINA 

Ah !  eu  é  que  não  estou !  Nega,  se  és  capaz, 
que  foste  dizer  á  mamã  que  bati  no  Diógenes? 

EDUARDO      . 

Sabes  que  sou  bastante  amigo  d'elle  para  o  pro- 
teger... 


153 


ALBERTINA 

Em  meu  desfavor  que  sou  tua  irmã. . .  Sacri- 
ficar-me,  por  amor  d/aquelle  fidalgo...  Não  ha 
uma  coisa  assim  ! 

(Tocando  fortemente  o  piano). 

EDUARDO 

Tu  tens  entendimento  e  elle  não...  Demais, 
deixa-me  estudar  e  não  me  incoramodes. 

ALBERTINA 

O  incommodado  é  que  se  muda. 

EDUARDO 

Ora  a  menina  que  ainda  ha  dois  dias  mudou 
os  dentinhos,  já  feita  doutora. 

ALBERTINA 

Se  alguém  te  escutasse  iria  imaginar  que  o  teu 
dente  de  sizo  nos  havia  dado  a  honra  de  se  dei- 
xar ver. 

EDUARDO 

Invejosa!  Pois  olha  que  já  ha  bastantes  annos 
mudei  os  meus. 

ALBERTINA 

Elles  não  se  mudaram . . . 

EDUARDO 

Então  o  que  fizeram  ? 

albertRa 

Cahiram . . .  das  gracinhas. 
<Bi)v 


154 


EDUARDO 

Estás  a  atenazar-me. . .  e  eu  nao  sei  que  con- 
tas heide  mostrar  ao  papá  quando  m'as  pedir. 

ALBERTINA 

Mostra-lhe  as   contas  em  que  reza  a  avósinha. 

EDUARDO 

Por  essas  e  outras  é  que  o  papá  nao  te  levou 
hontem  commigo  á  representação  do  Othello. 

ALBERTINA 

Faltas  á  verdade.  Não  fui  porque  já  tinha  ido 
com  o  padrinho. 

EDUARDO 

E  gostaste  ? 

ALBERTINA 

Gostei,  mas  o  ultimo  acto  affligiu-me  muito. 

EDUARDO 

Tenho-o  todo  na  cabeça. 

ALBERTINA 

Ah! 

EDUARDO 

O  que  foi? 

ALBERTINA 

De  todo  se  me  varreu  da  ideia . . . 

EDUARDO 

O  quê? 

ALBERTINA 


Estudar  a  lição  de  grammatica. 


455 

EDUARDO 

Assustaste-me. 

ALBERTINA 

Recommendo-te  silencio. 

EDUARDO  (aparte) 

Apanhei- te  com  a  bocca  na  botija.  Vou  desfor- 

rar-me.   (Agarra  de  um  pau  e  monta  o  cavallo  de  papelão.  Alto). 

Eh ! . . .  Eh,  boi ! . . .  Uh ! . . .  Toca  a  musica ! . . . 
Toca  a  musica ! . . .  Táratá. . .  tchin ;  tchin,  tchin! 

ALBERTINA 

Oh !   que  inferneira !   Vae-me  a  cabeça  pelos 


ares 


EDUARDO 

Melhor.  • .  ficas  sem  ella. . .  e  não  pagas  nada. 
(Gritando).  Quem  não  tem  cabeça,  não  paga  nada ! 

ALBERTINA  (zangada) 

Estás-me  incommodando  atrozmente. 

EDUARDO  (insidioso) 

O  incommodado  é  que  se  muda. 

ALBERTINA  (aparte) 

Sim,  senhor !  cahi  na  rede.  (Alto).  Não  me  fazes 
pirraça. . .  Vou  estudar  para,  o  jardim. . .  Estou 
lá  mais  á  fresca. 

(Sae  e  deixa  a  porta  aberta). 

Scena  II 

EDUARDO  (só) 

Não  te  constipes,  nem  batas  no  Diógenes . . . 
Toca  a  concluir  esta  multiplicação. . .  Três  vezes 


156 

nove,  vinte  e  sete ;   e  vão  dois . . .    Oito  vezes 
oito. . .  hum. .  -  hum. . .  cinco  vezes. . .  hum. . . 
hum . . .  hum . . .  Agora  a  prova  :  hum . . .  hum .  . . 
quatro  ;  hum . . .  hum .  . .  quatro . .  .  Certa.  Ainda 
bem.  Estou  livre  da  massada.  Agora  folgar !  De 
que  modo  ?. . .  Ah  !  já  sei.  Ensaio  o  ultimo  acto 
do  Othello.  Mas,  falta-me  a  Desdemona.  Com  mi- 
nha irmã  escusado  será  contar.  .  .    Também,  na 
scena  da  morte,  ella  pouco  tem  que  dizer.  .  .  Que 
ideia !  A  boneca  de  Albertina  está  ao  pintar.  Vae 
dito,  faz  a  boneca  de  Desdemona.  Mãos  á  obra. 
—  A  scena  representa  um  quarto  de  dormir.  Des- 
demona  dorme  no  leito.  (Deita  a  boneca  do  canapé.)  PrO- 
XÍmO    arde    uma   lâmpada.    (Accende  uma  vella  e  colloca-a 

junto  da  boneca.)    Bem    bom!    Agora    arranjemos    o 

OthellO.  A  espada.  #  .  O  Capacete.  .  .  (Põe  a  espada  de 
folha  á  cinta  e  a  barretina  de  papelão  na  cabeça.  Vae  buscar  a  uma 
gaveta  uma  caraça  negra  e  colloca-a  na  cara.  Vendo-se  ao  espelho.) 

Óptimo  !  Esplendido !  Se  a  mana  me  visse  dei- 
tava a  fugir.  Ah  !  ah  !  ah  ! .  '. .  Ora,  o  mouro  en- 
tra por  aqui;  assim*  ..  e,  depois  de  umas  refle- 
xões, diz  :  «Não  quero  verter-lhe  o  sangue,  nem 
rasgar-lhe   a   pelle  mais  branca  do  que  a  neve. 

{Depõe  a  espada).  E'  necessário  comtudo  que  ella  morra. 

Mostrando  a  luz).   Apaguemos    esta    luz   e  depois .  • . 

(Mostrando  a  boneca)  apaguemos  também  aquella.  (Beija-a.) 

Oh!  hálito  perfumado,  que  á  justiça  quasi  per- 
suades que  torça  e  quebre  o  gladio  ! .  . .  Um  beijo 

mais .  .  .    mais  OUtro.  (Cobre  a  boneca  de  beijos.)  Mais  OU- 

tro  ainda!  e  seja  o  ultimo  I  Tão  doce  nunca  o 
houve  e  tão  íatal!...  Accòrdou.»  Segue-se  um 
dialogosito  até  que  elle  sae  se  com  esta:  «Se  te 
lembras  de  algum  crime,  para  o  qual  ainda  não 
alcançaste  perdão  do  ceu,  implora-o  já.»  Ella,  coi- 
tadinha, depois  de  umas  lamurias  de  apertar  o  co- 


157 

ração,  implora  -lhe  cora  uns  modos  muito  bonitos : 

(Sempre  que  arremeda  Desdemona  deve  tirar  a  mascara.)  «Matae- 
me  amanha  ;  deixae-me  viver  esta  noite.  —  Não. 
Se  resistes. .  .  — Meia  hora  apenas.  — Não  ha  de- 
mora possível. — Só  o  tempo  de  resar  uma  ora- 
ção. — -E  tarde  de  mais.)>   (Asphixia  a  boneca.) 

ALBERTINA  (fora) 

Oh!  Eduardo,  Eduardo! 

EDUARDO  (aparte) 

Nem  de  encommenda. . .  (Declamando.)  «Que  ru- 
mor é  este?. . .  ainda  não  morreu  !  ainda  não  está 
bem  morta  ! . . .  Apesar  de  cruel  sou  compassivo . . . 
Não  quero  prol'ongar-te  a  agonia.  Assim!  assim!» 

(Carrega  sobre  o  peito  da  boneca,  rasgando-a.) 
ALBERTINA  (fora) 

Então,  Eduardo,  não  ouves  ? 

EDUARDO 

Mau !  mau  !  que  lá  se  foi  tudo  quanto  Martha 
fiou.  Representei  tanto  ao  vivo  que  rasguei  de  alto 
a  baixo  o  vestido  á  boneca.  Quem  ha  de  ouvir 
Albertina?  Não  eu,  que  por  aqui  me  safo.  (Occui- 

ta-se  atraz  de  um  movei  e  logo  que  entra  Albertina  escapa-se  para  o 

jardim.)  Pernas  para  que  te  quero'. 

Scena  III 

ALBERTINA  (só) 

Também  não  serves  para  nada.  Olha  o  gran- 
de trabalho  de  responderes  á  gente.  Queria  pedir-te 
a  boneca.  .  .  Agora  reparo. . .  estou  fallando  ás 
paredes.  Temos  jogo  das  escondidas.  E  o  mesmo. 


158 

Entre  tenho -me  com  a  minha  bébê.  Mas  não  a  ve- 
jo. Leinbra-me  perfeitamente  de  tel-a  posto  na  ca- 
deirinha. Aqui  anda  obra  do  penhor  meu  irmão. 
Forte  mania  de  me  escolher  para  objecto  dos  seus 
brinquedos.  Espera. . .  eu  já  te  ensino.  Vou  para 
cima  do  canapé  fingir  que  gemo,  que  estou  doente. 
(Dirige-se  ao  canapé  e  dá  um  grito.)  Ah  ! 

Scena  IV 

ALBERTINA  e  EDUARDO 

EDUARDO 

Deve  sortir  bom  effeito  o  meu  plano.  (Reparando 

em  Albertina  que  tem  as  mãos  na  cara.)    Soffres  ?   Tens  algu- 
ma coisa? 

ALBERTINA  (choramigando) 

A  minha  bebé  toda  escangalhada ! 

EDUARDO  (vê  um  boccado  do  vestido  da  boneca,  apanha-o 
e  mette-o  no  bolso.  Aparte.) 

Serve-me  para  prova. 

ALBERTINA  (aparte) 

Hei  de  vingar-me.  (Alto.)  Então,  o  que  dizes  a 
isto  ? 

EDUARDO 

Digo  que  já  descobri  o  auctor  do  crime. 

ALBERTINA 

Es  um  Colombo  para  descobertas.  Então  quem 
foi? 

EDUARDO 

Peço-te  encarecidamente  que  não  lhe  faças  mal» 
Foi... 


159 

ALBERTINA 

Foi?... 

EDUARDO 

...  O  Diógenes. 

ALBERTINA 

Diógenes  ? ! 

EDUARDO 

Sim,  Diógenes  !  (Aparte.)  Disfarcemos.  (Alto.)  Aposto 
que  não  te  recordas  porque  o  papá  o  baptisou  com 
aquelle  nome? 

ALBERTINA  (reprimindo- se) 

Não  ! . . .  não  me  recordo  !  (Aparte.)  Velhaco  ! 

EDUARDO  (aparte) 

Está  de  fel  e  vinagre.  (Alto.)  Porque  tendo  o  jar- 
dineiro, de  uma  pipa  velha,  armado  a  casa  do 
cão,  e  como  Diógenes,  um  philosopho  grego,  vi- 
via dentro  de  uma  pipa . . . 

ALBERTINA  (frenética) 

. . .  E  andava  de  dia  com  uma  luz  em  busca  de  um 
homem  verdadeiro,  mas  só  encontrava  aldraboes 
como  tu ! . . . 

EDUARDO,  (aparte) 

Peior!  (Alto.)  Eu  não  falto  á  verdade. 

ALBERTINA 

Para  que  criminas,  então,  o  animal  que  se  não 
pôde  defender? 

EDUARDO 

Porque  podia,  se  valespe  a  pena,  jurar  em  co- 
mo foi  elle.  (Aparte.)  Queres  apanhar-me,  mas  para 
cá  vens  de  carrinho. 


160 


ALBERTINA 


Juravas  falso!  Por  elle  punha  as  mãos  no  fogo 
e  por  ti. . .  nem  que  me  dourassem.  Anda,  com- 
vence-me  de  que  foi  o  cão  que  trouxe  a  boneca 
da  cadeira  para  o  canapé ! 

EDUARDO  (aparte) 

Estava  a  calhar  para  juiz,  a  mana.  (Alto.)  Natu- 
ralmente foste  tu  própria,  e  já  te  esqueceste. . . 
Comes  tanto  queijo. . . 

ALBERTINA 

Desculpa  de  mau  pagador.  Não  se  me  dava  de 
saber  também,  como  entrou  o  animal  aqui. 

EDUARDO 

Pelo  seu  pé...  Ha  pouco  deixaste  a  porta 
aberta. . .  Está  claro. . . 

ALBERTINA 

Como  tinta  de  escrever !  (Aparte.)  Que  descaro ! . . . 

EDUARDO 

Eu  já  te  provo,  deixa-me  ir  ver  uma  coisa. 
(Aparte.)   Vou  pôr  o  boccado  do  vestido  ao  pé  do 

Cão.  (Sae.) 

Scena  V 

ALBERTINA  (só) 

Pois  tu  não  has  de  amargar  o  que  fizeste  ?  Mudo 
de  táctica.  Julgas  que  sou  tola,  a  ponto  de  me  dei- 
xar illudir  assim !   Pois  bem.  Principio  de  vin- 

gàr-me   por   aqui.    (Vae  á  pedra  e  apaga  as  contas.)   Has  de 


161 

fazel-as  de  novo  que  te  has  de  regalar.  Elle  ahi 
vem.  Fingirei  que  acredito  tudo. 

Scena  VI 

ALBERTINA  e  EDUARDO 

ALBERTINA 

Já  viste  a  tal  coisa? 

EDUARDO  (triumphante) 

Já  e  certifiquei-me  de  que  foi  o  câo  o  culpado. 

ALBERTINA 

Sim? 

EDUARDO 
Anda  cá.   (Encaminha-a  até  á  porta  do  jardira.)  Vês  O  CaO 
deitado  ? 

ALBERTINA 

Vejo. 

EDUARDO 

O- que. tem  elle  ao  pé  da  bocca? 

ALBERTINA 

Um  pedaço  do  vestido  da  bebé. 

EDUARDO 

Insistes  em  culpar-me? 

ALBERTINA 

Pelo  contrario.  Dou  as  mãos  á  palmatória,  foi 
o  mau  do  Diógenes.  Perdôa-me  ter  duvidado  da 
tua  palavra. 

EDUARDO. 

Isso  não  é  cá  para  nós. 


Até  logo. 
Adeus. 


162 


ALBERTINA. 


EDUARDO 


ALBERTINA  (aparte) 

Levas  uma  lição  de  mestre,  essa  te  prometta 
eu! 

Scena  VII 

EDUARDO   (só) 

Ora  aqui  está  como  se  engana  uma  tola,  com 
quanto  não  seja  toleima. . .  Bondade!  Até  me  faz 
pena.  A  mana  é  tão  amiga  da  boneca,  como  a 
mamã  de  nós.  Não  foi  por  mal.  Enthusiasmei- 
me . .  .  E  o  Diógenes,  coitadito !  a  pagar  as  fa- 
vas, elle  tão  meu  amigo,  que  me  estima  tanto, 
que  me  lambe  as  mãos ...  e  eu  pago-lhe  as  suas 
meiguices  com  a  minha  ingratidão.  Sou  um  in- 
triguista  ! . .  •  um  falso  denunciante  !  —  Vejam 
como  se  trocaram  os  papeis.  Quiz  fazer  de  Othello 
e  faço  de  Yago,  aquelle  mau  homem  da  peça  de 
hontem.  —  Ao  mesmo  tempo  dá-me  vontade  de 
rir,  Diógenes  transformado  em  Othello.  Tem  gra- 
ça!  Ah!  ah!  ah! 

Scena  VIII 

EDTJABDO  e  ALBERTINA 

ALBERTINA  (perturbada  e  como  que  em  busca  de  alguma  coisa, 
com  uns  modos  entre  desgosto  e  angustia) 

Agora  é  que  vão  ser  ellas. 

EDUARDO  (admirado) 

Ha  alguma  novidade?  O  que  procuras? 


163 


ALBERTINA  (cada  vez  mais  perturbada) 

Ai ! . . .  deixa-me  !  • . .  Estou  muito  afflicta ! .  • . 
muito  assustada!. . . 

EDUARDO 

Mas  por  Deus  !  o  que  succedeu  ?. . . 

ALBERTINA 

Má  hora  aquella,   em  que  me  lembrei ...   de 
contar  tudo . . . 

EDUARDO 

Tudo  quê?. . .  pela  tua  saúde  explica-te! 

ALBERTINA 

. .  .  Sem  pensar  nas  funestas  consequências  ! . .  . 

EDUARDO 

Se  não  pões  tudo  em  pratos  limpos,  endoideço ! 

ALBERTINA 

Onde  estarão  as  correias  ? 

EDUARDO 

As  correias  ? ! 

ALBEUTINA 

Sim,  fui  dizer  ao  papá. . .  que  o  Diógenes. . . 
tinha  escangalhado  a  boneca.  . . 

EDUARDO 

Não  sou  eu  só  o  chocalheiro. 

ALBERTINA 

Tens  razão.  Mas  eu  não  adivinhava  que  o  papá 
ficasse  furioso. . .  Quer  por  força  matar  o  cão. . . 


164 

Pediu-me  logo  as  correias...  Pretendi  descul- 
par o  animal . .  .  mas  quem  diz  lá !  Não  houve 
meio. 

EDUARDO 

O  que  se  ha  de  fazer  ? ! 

ALBERTINA 

Tenho  uma  idéa. 

EDUARDO 

Dize,  dize  depressa. 

ALBERTINA 

Vae  mostrar  as  contas  ao  papá  para  o  distra- 
hir.  Talvez,  vendo  as  contas.  .  .  lhe  passe. 

EDUARDO 

Bem  achado,  sim,  senhor.  Vou  immediatamen- 
te.  Onde  está  a  pedra  ?  (Vae  buscar  a  pedra.)  Oh  ! 

ALBERTINA 

O  que  foi? 

EDUARDO  (muito  triste) 

Está  apagado  o  que  fiz.  E  não  foste  senão  tu ! 

ALBERTINA 

Eu?! 


EDUARDO 

Sim,  tu. 

ALBERTINA 

Eu?! 

EDUARDO 

Pois  quem 

havia  de  ser? 

ALBERTINA 

Ora!   Tem 

pouco   que  saber 

O  Diógenes. 


165 

EDUARDO 

Hein?! 

ALBERTINA 

Sem  tirar  nem  pôr. 

EDUARDO 

Não  me  illudes.  Suppozeste  ser  eu  o  destrui- 
dor da  tua  boneca  e  de  revindicta  apagaste  as 
contas. 

ALBERTINA 

Isso  é  que  é  ser  desconfiado.  Pois  foi  o  cão. . . 
Eu  vi. 

EDUARDO 

Tontinha !  Como  querias  tu  que  o  animal  apa- 
gasse as  contas? 

ALBERTINA 

.  . .  Com  a  lingua. 

EDUARDO 

Com  a  lingua  ? 

ALBERTINA 

Sim,  Eduardo.  Olha,  muito  surrateiramente  poz 
as  patinhas  em  cima  da  cadeira  e  principiou  de 
lamber  os  algarismos . .  .  Apenas  pude  evitar  que 
lambesse  os  números  que  o  papá  escreveu. 

EDUARDO 

Lavre  lá  dois  tentos . .  •  Apanhou-me. 

ALBERTINA  (fingindo  não  ouvir) 

Ah !  encontrei  as  correias.  Visto  não  haver 
meio  de  evitar  que  o  papá  mate  o  cão,  vou  le- 
var-lh'as. 

EDUARDO  (impedindo4he  a  passagem) 

Suspende  ? 


166 

ALBERTINA. 

Mas . . . 

EDUARDO 

Não  consinto  que  pague  o  justo  pelo  peccador. 

ALBERTINA 

O  quê?.,.  Diógenes  está  innocente? 

EDUARDO 

Innocentissimo. 

ALBERTINA 

N'esse  caso  o  culpado. . . 

EDUARDO 

Fui  eu. ,  .  fui  eu  que  pretendendo  imitar  Othello 
matando  Desdemona,  estrangulei  a  boneca... 
rasguei-lhe  o  vestido.  (Ajoelha.)  Perdoa  ! 

ALBERTINA  (aparte) 

Que  coração  de  oiro !  Já  agora,  para  o  emen- 
dar, levo  a  comedia  até  o  fim.  (Alto.)  Perdoo-te  de 
mil  vontades  ! .  .  . 

EDUARDO 


Obrigado  ! 
Mas . . . 
Outro  mas? 


ALBERTINA 
EDUARDO 


ALBERTINA 

E'  que  o  papá  deve  estar  fulo  á  espera  das 
correias. 

EDUARDO  (triste) 

E  verdade  ! 

ALBERTINA 

Agora  pergunto  eu,  o  que  se  ha  de  fazer  ? 


167 

EDUARDO  (com  muita  dignidade,  depois  de  reflectir  um  momento) 

E*  a  única  solução. 

ALBERTINA 

Qual? 

EDUARDO 

Dá-me  as  correias. 

ALBERTINA 

Para  que  as  queres  ? 

EDUARDO 

Dá-as  cá. 

ALBERTINA 
Ahi  as  tens.  (Eduardo  colloca-as  nos  hombros  e  encaminha-se 
para  a  porta.) 

ALBERTINA  .(embargando-lhe  0  passo.) 

O  que  pretendes  fazer  ?  1 

EDUARDO 

A  propósito  das  lições  que  o  papá  nos  ensina 
de  historia,  ainda  tu,  ha  pouco,  alludiste  a  Co- 
lombo ;  a  mim  agora  lembra-me  Egas  Moniz.  Como 
sabes,  elle,  arrependido  da  infidelidade  que  pra- 
ticou a  el-rei  de  Castella,  se  lhe  apresentou  com 
uma  corda  ao  pescoço  para  receber  castigo. . . 

ALBERTINA  (com  as  lagrimas  nos  olhos) 

Não  digas  mais.  Es  um  anjo !  (Beija-o.) 

EDUARDO  (muito  commovido) 

Está  quieta ! . . .  isso  íaz-me  peior !  (Quer  fugir.) 

ALBERTINA  (segurando-o) 

Fica.  Tem  paciência,  vae  fazer  de  novo  as  con- 


168 

tas  que  eu  apaguei,  o  que  rne  perdoarás. . .  Ne- 
nhumas outras  tens  que  dar  ao  papá. 

EDUARDO 

O  que  dizes  ? 

ALBERTINA 

Que  tudo  isto  foi  um  estratagema,  uma  come- 
dia, para  te  prova^  que,  apezar  de  ser  bastante 
tua  amiga,  não  permitto  que  faças  de  mim' tola. 

EDUARDO  (pujando  de  contente  e  um  tanto  commovido) 

Ali !  Albertina  da  minha  alma  !  minha  querida 
irmãsita !  que  pezo  me  tiraste!  E's  mil  vezes  me- 
lhor que  Desdembna.  Peço-te  uma  coisa.  .  .  Re- 
presenta commigo  a  scena  da  morte. 

ALBERTINA 

Com  uma-  condição. 

9 

EDUARDO 

Qual  é? 

ALBERTINA 

Não  me  estrangulares  como  fizeste  á  boneca,  meu 
OthellositO  !   (Abracam-se  e  beijam-se.) 


FIM. 


• 


PQ  Pinheiro  Chagas,  Manuel 

9135  A  Africa  portugueza 

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