Wá
BRINDE
AOS
SENHOEES ASSIGNANTES
DO
DIÁRIO DE NOTICIAS
Em 1890
.£ =5>
A Africa Portugueza, de Pinheiro Chagas.
Nuvem desfeita, de Afionso Vargas.
A minha terra, de Raphael d'Almeida.
A fonte da preguiça e a nogueira da miséria,
de João de Mendonça.
Severina, de Guiomar Torrezão.
A noite de 3 de setembro de 1758, de Alberto
Telles.
O rei da Ericeira, de Alberto Pimentel.
Otuellosito, de Rangel de Lima Júnior.
LISBOA
TYPOGRAPHIA UNIVERSAL
(Imprensa da Casa Real)
110, Rua do Diário de Noticias, 116
1890
(( FEB 9 1968
ff
ohnfmzo Gâaaaò
A AFRICA PORTUGUEZA
A AFRICA PORTUGUEZA
Se, em vez de lhes contar as aventuras do he-
roe de um romance, eu tentasse em breves pagi-
nas contar-lhes as aventuras d'esta Africa portu-
gueza, que tantas amarguras nos tem custado, mas
a que por isso mesmo temos um entranhado amor,
não ficariam os meus leitores mais satisfeitos, so-
bretudo se eu conseguisse condensar em poucos
períodos as idéas geraes que são indispensáveis a
todo o patriota que quer saber deveras o que é, ô
que tem sido um paiz, já hoje tão impregnado de
sangue portuguez, mas ao qual estão hoje ligados,
como ao ultimo filho que nos resta d'essa gestação
audaciosa de mundos novos que estivemos dando
durante dois séculos á luz da civilisação ?
Tomemos simplesmente essas colónias que se
espalham por toda a Africa : Angola, Guiné, Ca-
bo-Verde, S. Thomé e Príncipe, Moçambique, to-
memol-as na occasião em que se funda no nosso
paiz o regimen constitucional.
Já em torno d'ellas pairam, como abutres, as cu-
bicas estrangeiras. Em Lourenço Marques o ca-
pitão Owen reivindica para a Inglaterra o domí-
nio d'essa bahia, que só quarenta annos depois
8
a arbitragem de Mac-Mahon nos reconhece defi-
nitivamente ; já os inglezes da Serra Leoa er-
guem de vez em quando a sua bandeira nas ilhas
do archipelago de Bijagós, e também só qua-
renta annos depois é que a arbitragem de Ulysses
Orant nos reconhece a ilha de Bolama ; já o go-
verno inglez nos impede de estabelecer o nosso
dominio na foz do Zaire, e também só cincoenta
annos depois a conferencia de Berlim nol-o reco-
nhece ; já os francezes também se vão estabele-
cendo, com pés de lã, nas margens do Casamansa,
que temos afinal de sacrificar. Com tanta attenção
devíamos olhar para essas longínquas regiões, e
comtudo não nos occupavamos senão das nossas
discórdias civis, dos nossos pequenos interesses
continentaes 1
As colónias africanas eram o vazadouro para
onde despejávamos todas as fezes que tínhamos no
reino. Com degredados as povoávamos, com de-
gredados formávamos o seu exercito e, quando
não eram degredados, que o compunham, eram
batalhões expedicionários que levavam do conti-
nente os mais torpes elementos das tropas nacio-
naes. Em 1817, quando acabou a guerra penin-
sular, e se tratou de mandar uma expedição para
Montevideu, organisou-se com a flor dos nossos re-
gimentos, pozeram-se á sua frente officiaes como
Lecor, Saldanha, Azevedo e Claudino Pimentel.
Em 1835, pouco depois de ter acabado a guerra
da liberdade, quando se quiz mandar uma expe-
dição para Cabo-Verde, organisou-se um batalhão
com os soldados mais ruins e indisciplinados que
havia, não no exercito vencedor mas no exercito
vencido. Por isso, a façanha que esse batalhão
praticou foi matar todos os seus officiaes, á ex-
9
cepção de um ou dois alferes, que escaparam por
milagre t
Se essas "colónias não eram senão ninhos de es-
cravos, e era a escravatura a única fonte da sua
receita ! . . . Sá da Bandeira appareceu,(Jesse animo
generoso. Promulgou a lei de 1836 que abolia a es-
cravatura, e procurou fazel-a cumprir. Mas todos
os interesses feridos se sublevavam contra elle.
Alcunhavam-n'o de utopista, accusavam-n'o de ar-
ruinar as colónias. Os governadores que iam para
o ultramar, com ordem expressa de acabar com
o odioso trafico, viam-se obrigados a transigir, ou
a fugir.
Em Moçambique, o marquez de Aracaty, um
Oeynhausen, tinha de suspender a lei de 1836>
porque os escravistas não a deixavam executar.
D. António de Noronha em Angola, depois de uma
lucta formidável, tinha de fugir quasi para a Eu-
ropa. Joaquim Pereira Marinho, em Moçambique,
via-se salteado por toda a espécie de calumnias,
e por uma guerra ferocíssima, porque effectiva-
mente debellava os escravistas. O tratado com a
Inglaterra concluído em 1842 impunha-nos sacri-
fícios enormes, sujeitava-nos a continuados vexa-
mes, e a tudo nos resignávamos para cumprir
lealmente a nossa missão emancipadora. E, em-
quanto o cruzeiro portuguez se mostrava impla-
cável com os navios que transportavam escravos,
emquanto as nossas colónias definhavam por-
que perdiam uma receita que não era substi-
tuída, os navios inglezes tomavam os negros es-
cravos não para os libertar, mas para os levar ás Y
suas colónias, e estas floresciam com o trabalho ^
gratuito dos braços que á escravatura deviam.
10
II
De vez em quando algum estadista, algum go-
vernador do ultramar pensava nas colónias, muito
de relance comtudo, que as guerras civis absor-
viam-nos. Bonitas palavras na camará de vez em
quando*, actos raríssimos. Apparecia Pedro Ale-
xandrino em Angola, procurando explorar e co-
nhecer a província, implacável com a escravatu-
ra, mas tentando deveras fazer alguma coisa útil.
Depois em 1849 appareceu também um homem
dedicado, enérgico, de verdadeira iniciativa, Ber-
nardino Freire de Abreu e Castro, que era o ver-
dadeiro fundador da colónia de Mossamedes. Lu-
ctava com innumeras dificuldades, mas a colónia
lá ia rompendo lentamente, até que afinal se trans-
formou na villa, que é hoje uma das nossas glo-
rias ultramarinas. Ha quarenta annos !
E pouco mais se fazia ! Em 1852 appareceu
um decreto, em cujo preambulo se dizia pompo-
samente que, sendo notório e incontestável que
innumeros emigrantes portuguezes iam procurar
trabalho no Brazil, sonhando phantasticas rique-
zas e não encontrando afinal senão a miséria e a
morte, sendo incontestável ainda que os madei-
renses iam procurar em Demerara, nos climas
inhospitos da Guyana ingleza, as febres que fa-
ziam d'essa colónia britânica um cemitério para
os portuguezes, era indispensável que se tratasse
de derivar para as nossas colónias africanas essa
emigração nacional, e com esse louvável intuito
de crear um imposto nas colónias sobre a impor-
tação dos vinhos e aguardentes de Portugal. Pa-
lavras, e só palavras !
li
Trinta e três annos depois é que o auctor (Tes-
tas linhas fundava n'esse districto de Mossamedes,
tão claramente indicado para a colonisação por-
tugueza, as auspiciosas colónias Sá da Bandeira
e S. Pedro de Ohibia !
III
O movimento regenerador punha termo êm
Portugal ás discórdias civis que tinham alagado
de sangue o nosso território, e paralysado o nosso
progresso. Inaugurou-se a politica do fomento,
gastavam-se com plena razão rios de dinheiro
para fazer estradas no paiz, para fazer caminhos
de ferro, mas as nossas colónias africanas não \(
tinham senão um mesquinho quinhão n'esse ju-
bileu do progresso. Pensou-se em tudo que não
custasse muito dinheiro. Auctorisou-se a explo-
ração botânica de Angola pelo dr. Welwitsch, que
foi maravilhosa, mas que de certo não desequi-
librou o orçamento. Creou-se o conselho ultrama-
rino, que deu excellentes indicações, e que cha-
mou um pouco a attenção publica para os negó-
cios coloniaes ; mas, quinze ou dezeseis annos de-
pois, o sr. Latino Coelho aboliu-o porque o jul-
gou dispendioso. Appareceu Sá da Bandeira em
1856 com o seu velho enthusiasmo pelas colónias,
mas sem conseguir arrancar aos seus collegas as
sommas necessárias para a desenvolver. Além
disso não tinha quem o ajudasse, e o seu espirito
generoso, mas demasiadamente theorico, estragava
as suas concepções por não descer ás particu-
laridades da pratica. Quiz fundar colónias milita-
res em Huilla e em Tete. Foram duas povoações
do reino da Utopia.
i2
Prodigalisou os conselhos e as sementes aos go-
vernadores para que elles fomentassem differentes
culturas.
Para que servia, quando as innumeras e enor-
mes concessões de terrenos que se faziam no ul-
tramar ficavam constantemente desaproveitadas?
O enthusiasmo do paiz pelas colónias tornou-se
bem patente na subscripçao que se abriu para a
colónia de Pemba. Sá da Bandeira logrou pôr á
testa d'essa subscripçao um dos grandes capita-
listas do tempo, Thomaz Bessone, fez com que
todos os administradores abrissem subscripçoes
nos seus concelhos. Algumas capitães de distri-
cto chegaram a dar 30$000 réis, o concelho de
Povoa de Varzim subscreveu com dez tostões!
A colónia lá foi ainda assim para Moçambique.
Mas, se faltavam a Sá da Bandeira os subscri-
ptores, ainda mais faltavam os auxiliadores. Os
colonos foram mal escolhidos, peior escolhido
ainda o sitio na bahia de Pemba, onde não havia se-
quer agua potável. Para a encontrarem tinham de se
affastar muito da beira-mar. Um desastre completo
coroou esta malfadada tentativa de colonisação.
Se não conseguíamos atinar com o meio de dar
ás nossas colónias o desenvolvimento de que el-
las careciam, em compensação continuávamos a
ser fidelíssimos á nossa missão de antí-escravistas.
N'aquelle território da Africa Occidental entre 5o,
12' e 8o, em que a Inglaterra não consentia que
puzessemos o pé, fazia-se odiosamente escravatu-
ra. Estava no poder o primeiro ministério rege-
nerador, era ministro da marinha o visconde de
Athouguia, presidente do conselho ultramarino
Sá da Bandeira, governador de Angola Rodrigues
de Amaral, commandante da estação naval Redo-
13
valho. Pa? sou- se por cima da prohibição da In-
glaterra, e em 1855 occupou-se audaciosamente o
Ambriz. Dentro de uns barracões encontraram-se
150 pretos, que esperavam navio escravista para
embarcar. Era flagrante o caso. A Inglaterra não
se atreveu a protestar, como os negociantes in-
glezes, prováveis proprietários dos 150 escravos,
se não atreveram a reclamal-os.
Mas nós continuávamos a ser apresentados á
Europa como incorrigíveis escravistas, e a Ingla-
terra, a pátria de Wilberforce, continuou a osten-
tar a gloria de ser ella a nação chefe na brilhante,
humanitária e redemptora cruzada contra a es-
cravidão.
Em Moçambique os plantadores das colónias
francezas e especialmente os da ilha da Reunião, an-
tiga ilha Bourbon, tinham tomado o costume de ir
contractar o que elles chamavam trabalhadores
livres. Por mais de uma vez, nos próprios tribu-
naes da ilha da Reunião se reconhecera que es-
ses suppostos trabalhadores livres não eram se-
não escravos. A Inglaterra chamava a attenção
do governo portuguez para essa escravatura dis-
farçada, que se fazia em Moçambique. Ingenua-
mente Sá da Bandeira, que acabara de promul-
gar a lei de 1858, abolindo a escravidão, e que era
o complemento da sua lei de 1836, prohibiu que
se consentissem em Moçambique os suppostos
contractos de trabalhadores livres. As auctorida-
des portuguezas informaram o sr. de Méquet,
commandante da estação naval franceza, dos abu-
sos que os navios da sua nação praticavam e que
tinham dado origem a esta prohibição do governo
portuguez. O sr. de Méquet respondeu que não
consentiria que fossem navios francezes a Moçambi-
14
que fazer esses contractos. Comtudo, n'esse mesmo
anno de 1858 um navio de guerra portuguez en-
controu em Quitangonha, na bahia de Conducia,
uma barca franceza, a Charles-et-Georges, a fazer
contractos de trabalhadores pretos livres. Os pre-
tos interrogados declararam que eram levados á for-
ça. A barca foi apresada, o tribunal competente
proferiu a sentença condemnatoria.
O governo francez de então, o governo de Na-
poleão iii, reclamou ; nem quiz esperar a deci-
são dos tribunaes superiores, enviou uma esquadra
ao Tejo, ordenou que o seu ministro, o marquez
de Lisle de Siry, retirasse com o pessoal da sua
legação, se a barca Charles-et-Georges não fosse
entregue. Não o foi. O governo do duque de
Loulé respondeu simplesmente : Sois os mais for-
tes ! Levae-a. E um navio de guerra francez, que
tinha um nome condigno da missão que desempe-
nhava, o Tubarão, le Requin, levou a barca Char-
les-et-Georges.
Tínhamos appellado para a Inglaterra, para a
Inglaterra que fora a nação que protestara contra
os suppostos contractos de trabalhadores livres,
que nos levara a prohibil-os. Encolheu os hom-
bros, e disse-nos : Cedam !
Onze annos depois, em 18(39, uma corveta de
guerra ingleza, a Daphne, fazia no próprio porto
de Moçambique o mesmo que a Charles-et-Georges
fizera na bahia de Conducia.
Simplesmente, em vez de contractar trabalha-
dores livres, contractava criados livres. Era go-
vernador de Moçambique Fernando da Costa
Leal, que fora governador de Mossamedes, e que
era dotado de uma rara energia. Intimou o com-
mandante da Daphne a que não procedesse as-
15
sim, o official inglez desdenhou a intimação, Fer-
nando Leal observou-lhe tranquillamente que a
corveta Daphne não sairia com os seus contra-
ctados do porto de Moçambique, senão debaixo
de fogo das fortalezas e depois de ter destruído
os meios de resistência que elle tinha á sua dis-
posição.
O commandante da Daphne teve medo do es-
cândalo que isso faria na Europa, e cedeu !
E Portugal continuou a ser apresentado pela In-
glaterra ao mundo como um paiz essencialmente
e incorrigivelmente escravista !
IV
E as colónias continuavam no seu triste aban-
dono! Lá se percebia emfim que em Moçambique
o nosso domínio era insignificante, que até os nos-
sos portos de mar estavam á mercê dos pretos, e
alguma coisa se fazia para pôr termo a essa or-
dem de coisas. Em 1861 tomávamos Angoche,
n'esse mesmo anno reoccupavamos o Zumbo aban-
donado, mas o official encarregado de tomar pos-
se, ao sair de Tete, não podia atravessar a Che-
dima e o Dande senão quando lh'o permittiam
os régulos indígenas. Em 1862 o governador de
Lourenço Marques auxiliou eíBcazmente o pode-
roso regulo Muzilla nas guerras que este tivera
com o seu irmão Mauéva, e obtinha que o Muzilla
reconhecido se declarasse vassallo de Portugal ; o
governador de Quilimane, Custodio José da Silva,
á força de dedicação e de coragem, logrou man-.
ter abertas as communicaçoes entre Quilimane,
Senna e Tete, mas tudo isto eram factos isolados,
não havia a persistência indispensável. As com-
i6
municaçoes entre Tete e Zumbo continuaram a
ser quasi impossíveis ; a vassallagem de Muzilla
não se tornou effectiva ; a Zambezia, um momento
pacificada pelo governador de Quilimane Custodio
José da Silva, tornava dentro em pouco a ser
um foco de desordens ; Angoche ficava, apezar de
conquistado, em tristíssimas condições ; a vassalla-
gem do Muzilla não passou de ser nominal, e não
tardou o próprio regulo a esquecel-a, em Sofala
os habitantes, constantemente vexados pelas incur-
sões dos pretos, abandonavam esse antigo padrão
das nossas glorias, e refugiavam-se em Chiloane,
para onde se transferiu também a sede do go-
verno do districto.
De vez em quando, se alguma catastrophe mais
terrível chamava as attenções de Portugal, lá se
organisavam uns tristes batalhões expedicionários,
que iam, tant bien qae mal, restabelecer a ordem
em Cassange, em Angola ; mas nunca a feira de
Cassange se poderá restabelecer, as communica-
coes entre Loanda e Ambriz eram interceptadas
pelo chamado marquez de Mossul, e emquanto isto
continuava assim, abandonado e decadente, não
se parava com a construcção de estradas e de ca-
minhos de ferro em Portugal.
Infelizmente, no meio d7este desleixo absoluto,
começavam a apparecer na Africa Oriental os
viajantes inglezes. Livingstone em seis annos fi-
zera trabalhos que tinham excitado enthusiasmo em
Inglaterra. Nós o tínhamos ajudado, as nossas au-
ctoridades tinham-lhe facilitado os estudos, ti-
nham-n^o por mais de uma vez salvado, acolhe-
ra-o Silva Porto, o grande africanista portuguez,
com a mais cordeal hospitalidade, tinham-lhe dado
as mais amplas indicações geographicas os por-
17
tuguezes de Tete e de Quilimane, e nas suas Fia-
gens não teve para nós o famigerado doutor se-
não palavras de ódio e de malevolencia !
A cubica da Inglaterra fora estimulada ; nunca
mais deixaremos de a encontrar no nosso caminho.
Como se fosse muito o que despendíamos com
as colónias, apparecem n'este momento os minis-
térios das economias. Espalha-se a singular dou-
trina de que as colónias devem viver com os seus
próprios recursos, supprimem-se os subsídios, e
ufanam-se alguns ministros de apresentar um or-
çamento ultramarino com saldo positivo. O sr.
Latino Coelho obedece muito a esse principio.
Rebello da Siltfa decretou leis excellentes com ex-
plendidos relatórios, mas que não encerram se*
não palavras que de pouco servem. O que resulta
de tudo isto é o terrível desastre da Zambezia.
Batalhões organisados segundo o detestável sys-
tema habitual, com tão indisciplinados elementos,
que já na metrópole se começaram a insubordi-
nar, vão succumbir ás intempéries do clima, aos
ataques dos pretos selvagens. As cabeças dos seus
officiaes espetadas na aringa do bonga são o triste
documento do nosso desastre. Ficou tumultuosa,
apezar de uma pacificação apparente, só conse-
guida ainda assim depois de muitos annos, aquella
rica região que orla o Zambeze. O rendimento
da província é insignificante.
Alguma coisa se vae fazendo ainda assim a fa-
vor das colónias. A ilha de S. Vicente de Cabo-
Verde tinha uma situação geographica tão excel-
lente, que os paquetes transatlânticos, apezar de
48
tudo, a procuraram, e o governo conseguiu que
o cabo submarino do Brazil tivesse em S. Vicente
uma estação. Estabeleceu-se, com subsidio pesa-
do, uma carreira de vapores para a Africa Occi-
dental, mas como o governo luctou primeiro que
se resolvesse a fazer esse sacrifício ! E comtudo,
apezar de todo o abandono, as colónias eram taes
que poucos annos depois já a navegação se fazia
sem subsidio.
Depois de Sá da Bandeira era Andrade Corvo
o primeiro ministro que se occupava das colónias
com verdadeiro amor. Foi elle que completou a
obra redemptora de Sá da Bandeira, acabando
definitivamente e de facto com a escravidão no
ultramar, foi elle emfim que teve a coragem de
reclamar para as colónias os melhoramentos que
tão prodigamente se espalhavam na metrópole, e
de organisar as expedições de obras publicas, que,
apezar dos defeitos da execução d;essa medida,
fizeram ás colónias um bem infinito. Mas que
tempo se perdera, e que tempo ainda se perdeu
depois, porque os melhoramentos nas colónias fo-
ram feitos aos sacões, sem persistência, sem amor !
Basta lembrarmos que o paiz soube com a má-
xima indiíferença que Portugal assignára com a re-
publica da Africa do Sul um tratado de limites,
pelo qual se restringia de um modo extraordiná-
rio o nosso districto de Lourenço Marques, aban-
donando sem razão nem motivo, sem pressão ao
menps de uma nação forte, ricos terrenos aurife-
ros.
VI
Ao menos agora pensava-se mais nas colónias,
e concorrera também para isso a fundação em
19
1875 da benemérita Sociedade de Geographia;
mas que desconhecimento dos nossos interesses
coloniaes, que desprezo por esses assumptos se
manifestou no parlamento, quando discutiu em
1879 a concessão da Zambezia feita ao intrépido
explorador Paiva d'Andrada, e em 1881 o tratado
de Lourenço Marques assignado com a Inglaterra !
Nem uma coisa, nem outra eram acceitaveis, mas
a camará ficava na negação sem lembrar, nem
acceitar os alvitres que se propozessem para se
substituir o que se rejeitava.
Quando um desastre fulminava as colónias, lá
vinha um movimento de sobresalto, e foi assim
que o desastre de Bolor na Guiné levou a camará
a dar ao governo os fundos necessários para se to-
marem algumas providencias urgentes, para se se-
parar a Guiné de Cabo- Verde, e cuidar um pouco da
sua guarnição. Caia porém tudo na apathia antiga.
Assim fora em 1877, graças á iniciativa de An-
drade Corvo, que fizera passar na camará uma lei
que auctorisou o governo a gastar 30 contos com ex-
ploração scientifica, que se organisou a gloriosa ex-
pedição em que appareceram pela primeira vez os
nomes de Serpa Pinto, de Capello e de Ivens. Em
1880 voltavam os exploradores, Serpa Pinto tendo
atravessado a Africa, Ivens e Capello tendo feito
explorações importantíssimas nos sertões de Ben-
guella. Foram acolhidos com extraordinário en-
thusiasmo, mas por ahi se ficou. Só annos depois
se retomaram as explorações.
Houve também por esse tempo uma nova tenta-
tiva de colonisação, tão infeliz como a da colónia
de Pemba. Foi devida ao sr. Júlio de Vilhena, que,
se não pôde ver executada com felicidade a sua
idéa, ao menos formulou um excellente regula-
20 .
mento de coionisação, que de muito serviu aos
seus successores.
Em Moçambique, entretanto, a semente deitada
á terra por Livingstone ia fructificando. Os mis-
sionários escocezes invadiam o interior da nossa
colónia africana, fundavam o estabelecimento de
Blantyre, e nós, com a amabilidade que sem-
pre nos distinguiu, não só os ajudávamos mas até
quasi que reconhecíamos a sua independência, es-
tipulando na pauta de Moçambique um simples
imposto de transito de 3 °/o para as mercadorias
que fossem para a região dos Lagos, como se essa
região fosse estrangeira! Sentimos-lhe hoje as con-
sequências.
Os TartufFos escocezes acceitaram com humil-
dade os favores, e, quando emfim os quizemos pôr
fora, exclamaram arrogantes :
Cest à vous cTen sortir !
VII
Precisa o auctor d'estas rápidas linhas de fal-
lar agora da sua própria obra, mas, como pelas
circumstancias que então houve, bastantes aconteci-
mentos importantes se deram, temos de os relatar
com a brevidade a que nos temos cingido.
X Foi no período de 1883 a 1885 que contractou
a ligação telegrapbica de todas as nossas colónias
da Africa Occidental com a metrópole. A ilha de
S. Vicente era ligada por um cabo submarino á
de S. Tiago, esta a Bolama e Bolama a Bissau.
Da Guiné seguiu o cabo para a ilha do Príncipe,
d'aqui para S. Thomé, de S. Thomé para Loan-
da, Benguella e Mossamedes, e de Mossamedes
21
para o Cabo da Boa Esperança. O telegrapho está
funccionando.
Contractou-se o caminho de ferro de Loanda a
Ambaca, que já tem varias secções em explora-
ção.
Contractou-se o caminho de ferro de Lourenço
Marques á fronteira do Transvaal, e essa linha
férrea está em exploração também.
Construiram-se varias pontes importantes em
Angola e em S. Thomé.
Contractou-se e realisou-se o abastecimento de
aguas de Loanda, e o abastecimento de aguas da
cidade do Mindello de Cabo- Ver de.
Retomaram-se as tentativas de colonisação em
Mossamedes, e doesta vez com resultado melhor.
Estão florescentes as colónias madeirenses de Sá
da Bandeira e de S. Pedro de Chibia ; e, se o ca-
minho de ferro agora projectado se realisar, serão
dentro em poucos dias núcleos poderosos de colo-
nisação.
A conferencia de Berlim resolveu as questões
do Zaire. Podemos occupar emfim esse território
comprehendido entre 5o 12' e 8o de latitude. Ti-
vemos de acceitar, porém, o domínio de um novo
Estado africano, o Estado livre do Congo, na mar-
gem direita do Zaire. Reconheceu-se-nos comtudo
a posse de territórios que tínhamos recentemente
adquirido e a que nunca tínhamos aspirado, os de
Cacongo e Massabi.
D'ahi proveiu organisar-se o novo districto do
Congo, estabelecendo- se por um contracto a na-
vegação regular do Zaire, e comprando-se duas
canhoneiras e uma lancha para a policia do rio.
Urgente era acudir á Africa Oriental, onde os
estabelecimentos inglezes iam tomando um des-
2
22
envolvimento assustador pelo lado dos Matabeles.
Por isso se reoccupou Manica, ha muito abando-
nada, e alli se organisou um novo districto. Por
isso também se aproveitou a morte do Muzilla,
para reatar com seu filho e successor, Gungunha-
na, os laços de relações esquecidas, tornando-as
porém d'esta vez mais solidas, porque se fez o
tratado em Lisboa e se estabeleceram residentes
nas terras do regulo.
Outra questão importante havia a resolver em
Moçambique, que estava ha quarenta annos pen-
dente. O nosso visinho pelo lado do Norte, o sul-
tão de Zanzibar, considerava como sua a bahia
de Tungue, e ahi estabelecera postos aduanei-
ros, e todos os signaes de domínio contra nós. Tí-
nhamos sempre protestado, mas não conseguíra-
mos obrigal-o a. desistir da sua persistente inva-
são, até que em janeiro de 1886 o sr. Augusto
de Castilho, governador de Moçambique, fezreap-
parecer na contestada bahia a bandeira portugueza.
Era o principio da reoccupação, que no tempo do
ministério immediato foi concluída.
Não aconteceu o mesmo ao protectorado portu-
guez estabelecido em 1885 na costa de Dahomé,
que o ministério immediato aboliu. Era uma idéa
sympathica a de fazer com que Portugal gran-
geasse a gloria de abolir aquelles sacrifícios hu-
manos, que tornam tão horrorosamente legendá-
rio o reino de Dahomé. Pôde ser que o rei bár-
baro e pérfido, de quem estão agora os francezes
justamente queixosos, nos trahisse como os trahiu
a elles, mas, emquanto durou o protectorado por-
tuguez, e bem pouco tempo foi, não se fizeram as
sinistras carnificinas.
Finalmente, retomou-se o caminho das explora-
23
coes. Em 1884 Capello e Ivens voltaram á Afri-
ca, atravessarain-n'a de occidente a oriente, e re-
gressaram gloriosamente á pátria em 1885, e n'esse
mesmo anno foram Serpa Pinto e Augusto Cardoso
explorar a região entre o Cabo Delgado e o Nyas-
sa, n'esse mesmo anno ainda partiu Henrique de
Carvalho a fazer a sua tão profícua e tão gloriosa
exploração de Muata-Yanvo. Os Stanley e os Wiss-
mann sentiam por toda a parte o echo da passa-
gem dos exploradores portuguezes.
VIII
Assim a nossa politica colonial africana não
tivera a persistência indispensável para o fim a
que ella devia aspirar. Quando n'essa vastíssima
província de Moçambique era indispensável occu-
par fortemente os pontos essenciaes para o do-
mínio, e manter na nossa obediência os régulos
que tão facilmente sempre nos seguiram, vemos
que em 1861 reoccupavamos o Zumbo, abando-
nado havia muito e em 1862 fazíamos o tratado
com o Muzilla, e só vinte e três annos depois, em
1884, reoccupavamos Manica, e em 1885 fazía-
mos um mais solido tratado com o Gungunhana ;
quando tão necessário era, para a administração,
para o commercio, para a agricultura, sulcar es-
ses sertões com a locomotiva que leva a toda a
parte a ordem, a prosperidade* só em 1884 e 1885
se faziam os caminhos de ferro essenciaes de Lou-
renço Marques e de Ambaca ; finalmente, quando
a colonisação persistente, constante, era o grande
meio efficaz de tornarmos esses vastos territórios
solidamente portuguezes, só em 1849 se fundava
a colónia de Mossamedes, e só 36 annos depois
u
em 1885 se fundavam as colónias Sá da Bandeira
e S. Pedro de Chibia.
Quando a exploração perseverante e scientifica
do interior da Africa tinha de ser o complemento
da nossa missão dominadora, deixávamos os nos-
sos negociantes, como Silva Porto, fazer viagens
admiráveis, os nossos mestiços percorrer o conti-
nente negro em todos os sentidos, sem os fazer-
mos seguir por homens que soubessem conquistar
esse continente para a sciencia, e esse commercio
para a nossa bandeira, só em 1877 se lançou a
primeira expedição scientificamente organisada,
só sete annos depois em 1884 se lançaram outras
três expedições scientificas de maravilhosos resul-
tados.
E entretanto pairava em torno das nossas coló-
nias a cubica estrangeira, arrojava-se a Europa
inteira á partilha da Africa, e nós corríamos pe-
rigo de. ser excluidos. Os tratados de 1886 com
a França e com a Allemanha impozeram-nos sa-
crifícios relativamente pequenos a troco do reco-
nhecimento de vastos domínios em Africa Occi-
dental, mas na Oriental é que estava o perigo,
porque ahi affloravam o oiro e os diamantes e lu-
zia a cubica nos olhos da Inglaterra. O perigo es-
timulou-nos e continuou-se, depois de se perder
algum tempo, no caminho em que se entrara em
1884 ; novas expedições se tentaram, alargou-se
um pouco o districto de Manica, fundou-se o dis-
tricto do Zumbo, mas já tarde. A Inglaterra inti-
mou-nos brutalmente a parar. Não contamos o res-
to ; a historia é recente e o coração ainda nos verte
sangue. . .
Ahi está em breves traços a historia da Africa
portugueza nos cincoenta e seis annos de regimen
25
constitucional. Preferiríeis ura romance? Não o
pôde haver mais dilacerante do que este nosso ro-
mance colonial, este romance africano, truncado,
abandonado, de que apenas foram escriptos alguns
capítulos por uns poetas que se apaixonaram, por
esse épico ideal. Que os corações patrióticos dos
que me lêem pulsem com a narrativa do que fize-
mos e do que podíamos fazer, e que se apaixonem
também por esse ideal resplandecente. Isso bas-
tará para que resurjâmos. O que nos tem faltado
é a boa vontade persistente dos governos, e o
sincero enthusiasmo do povo.
NUVEM DESFEITA
NUVEM DESFEITA
Nascera na província a Margarida.
Os pães eram dois lavradores obtusos mas ho-
nestos, creados na forte communicação da terra,
e envigorecidos no contacto saudável da natureza.
Quando lhes veio aquella pequenita, um anjo que
surgia no seu lar sereno, como que a doiral-o com
um raio de luz, pensaram em mandal-a educar
para a capital se a pequena mostrasse tendências.
Nem um nem outro sabiam ler, e isso vexara-os
algumas vezes ; além d'isso o sr. prior estava sem-
pre a dizer que quem não mandava ensinar os
filhos era indigno de ser christão porque o en-
sino — dizia — revelava a todos faculdades novas,
e melhorava, e aperfeiçoava as existentes. Elle
bem sabia que ás vezes as famílias eram pobres
e precisavam dos filhos em casa para vigiar os
gados, para amanhar as terras, para a debulha,
para a poda, para a colheita, n'uma palavra,
para os trabalhos do campo ; mas isso chegava a
ser abuso, tornava-se uma exploração ignóbil das
forças das creanças, e então, quando se era rico,
não havia a minima desculpa ; por isso quem se
eximisse ao cumprimento de tão séria obrigação
30
não devia ser bem visto da sociedade, como não
era bem visto de Deus, que creára a luz para to-
dos — rematava.
Ora o sr. prior gosava da máxima influencia
na casa dos lavradores, que o respeitavam e que
lhe pediam conselho.
E para lhe mostrarem que tencionavam fazer
o que elle dizia pensavam em dar á filha, se ella
vivesse e fosse esperta, uma educação esmerada.
O parocho tinha já sido consultado e confirma-
ra, que faziam muito bem, que não podiam em-
pregar melhor a sua fortuna, que até Nosso Se-
nhor os abençoaria. E apoiava-os com toda a elo-
quência — e citações de textos.
Logo pois que a creancita fez seis annos foi o
próprio prior que lhe quiz ensinar a ler, não lhe
custava, era até uma distracção — aífirmava. E
começou.
Coisa notável, a creança tinha uma intelligen-
cia clara, fora do vulgar, até, o que fizera dizer
uma vez ao escrivão de fazenda, paraphraseando
uma saída celebre, que a filha tinha saccado le-
tras sobre a intelligencia dos pães, alludindo á
estupidez d'estes.
Aprendeu, portanto, sem custo, e dentro em
pouco lia já tão intelligivelmente, que o bom do
parocho andava maravilhado e contava a todos
aquelle prodígio.
— Homem — diziam-lhe, isso era bom apro-
veitar, mandem-n'a para a capital.
O Thomé da tenda, porém, assegurava que era
tolice, que não fizessem tal ; os que aconselhavam
isso tinham minhocas na cabeça ; depois a rapa-
riga voltava para casa cheia de soberba, não que-
ria ajudar a família em certos trabalhos, quem sabe
31
se não viria mesmo a ter vergonha (Telia, se não
lhe daria na tineta fugir, — o diacho . . .
— Oh ! Thomé você é agoirento, exclamava o
prior ; logo havia de succeder isso tudo á filha
do Luiz e da Joaquina ! tão boa gente, tão temente
a Deus ! . . .
O Thomé, porém, não ficava vencido, contava
historias, citava casos acontecidos para confirmar
a sua opinião. Lembrava-se perfeitamente da fi-
lha do João da Encosta, que a senhora fidalga ti-
nha trazido comsigo, até no trem, e a quem man-
dara educar como a uma princeza, que depois
quasi sentia horror pela mãe porque não se dava
á estimação e dizia prove. E qual fora o resultado
— perguntava com ar triumphante ?
— Foi fiar-se nos carapetoes d'esse patife do
Lobo que para ahi viera lá de Coimbra e que a
obrigou a fugir de casa.
— Olhe, sr. prior, mulher caseira, e nada de
Snuras.
O padre ficava confuso, não sabia bem que
responder, mas não queria dar-se por vencido ;
por isso insistia dizendo que era de má condição
a que se tresmalhava, e não lá por ter aprendido.
Ella podia ser honesta ; quando viesse, estabele-
ceria um collegio, e ensinaria a rapaziada do lo-
gar, depois elle lá estava para aconselhal-a, se vi-
vesse. A religião era uma grande arma contra es-
ses males e elle tinha mesmo muita fé no coração
da pequenota.
# #
Entretanto o prior já não tinha que ensinar á
discípula e até um dia dissera a rir a Luiz, que
lhe pedia informações da filha:
32
— Olhe, agora homem, só se for latim ou theo-
logia, que o mais, a pequena sabe e bem. Ella lê,
ella escreve, ella somma, ella até desenha, Luiz.
E' o que lhe digo, até desenha.
E o bom pae, com um ar imbecil e espanta-
do, ficava a olhar para o prior, agarrando-se-lhe
por fim á sua mão polpuda e branca, beijando-a
muito.
Havia de ir para Lisboa, dissera, ao menos não
queria que lhe succedesse o mesmo que a elle,
que já muita vez tinha sido illudido, por não sa-
ber ler nem escrever.
Logo que Margarida fez 14 annos, Luiz veie
pois com ella á capital e metteu-a n'um collegio
que lhe recommendára o escrivão de fazenda.
A despedida fora triste ; Margarida era muito
meiga e gostava dos seus. Quando o pae se pu-
nha a fital-a, bondoso e enlevado, e o via algu-
mas vezes limpar uma lagrima furtiva, corria a
abraçal-o e ficava-lhe momentos suspensa do pes-
coço a olhal-o, a olhaUo muito.
Outras vezes Luiz pedia-lhe para ler, e ella
então, com uma doçura captivante, vinha sen-
tar-se-lhe ao pé e começava a ler algumas histo-
rias que o escrivão ou o parocho lhe emprestavam.
— Como eu gostava de ler assim, dizia o po-
bre pae, ao mesmo tempo envergonhado e orgu<
lhoso da filha.
Margarida parava de ler, ficava um momentd
pensativa, e uma occasião disse-lhe :
— Quer o pae aprender commigo ? Eu bem col
nheço que não sei ensinar como o sr. padre prióiT
me ensinou, mas se o pae quizesse. . .
E receosa de que elle se negasse, começou
dizer-lhe :
33
— Olhe é muito fácil, veja : isto é um a, isto
iqui é um i, aquella acolá um tanto maiorsinha,
im m. E leu-lhe assim uma linha do livro que
;inha aberto.
Por fim, Luiz decidiu- se a receber todas as noi-
es uma lição de Margarida.
Coitado, o bom homem não se adiantava mui-
:o, mas ao fim de algum tempo conseguira ler,
ímbora de vagar, e assignava o nome. O parocho
coadjuvava a filha nas lições, e até gostava de ver
,quella applicação da pequena.
Por isso Margarida se entristeceu com a vinda
)ara Lisboa. Não conhecia ninguém, ia para uma
;asa estranha, e só veria a mãe e o pae por oc-
asião das ferias. Afinal para que? Perguntava.
— Para aprenderes e saberes muito, minha fi-
lia, dissera-lhe o pae.
— Quero que não tenhas vergonha das nieni-
ías Sás. E abraçava-a.
Margarida, porém, lembrava-se das bellas noi-
es que passara na província, das caricias do pae,
las observaçães da mãe quando Luiz se engana-
ra, o que a levava sempre a proferir a phrase
entenciosa : «burro velho não aprende línguas»
— finalmente, evocava na sua pequenina imagi-
íação todas as doces recordações da sua infância,
i sentia pungil-a uma dor minaz.
Quando o pae a deixou entregue aos cuidados
e D. Leocadia, a directora do collegio, ficou a
ihorar por muito tempo, até que o somno a pros-
rou.
"No primeiro dia em que fez a sua entrada na
tuia, aquelle pequeno mundo de raparigas traves-
as e falladoras, que a miravam segredando, cau-
ou-lhe susto, e fez-se corada.
34
Fugiu para um canto, com medo, e foi preciso
que a mestra a chamasse acarinhando-a, fazendo-
lhe a apresentação de algumas da sua edade, e di-
zendo-lhe com um ar amigo :
— Que se risse, que brincasse, ninguém lhe fa-
zia mal.
Margarida foi-se animando lentamente. Como
era bonita e alem d'isso tinha no rosto uma mei-
guice communicativa e attrahente, as condiscípu-
las não implicaram. Depois, não ia precisamente
ignorante. Sabia ler, sabia coser, sabia desenhar
um pouco, e em contas era uma perfeição, esclare-
cera o escrivão de fazenda. Não fazia portanto má
figura.
Um mez depois já lhe chamavam todas a Mar-
garida bonita, e nem uma só lhe queria mal.
Quanto a progressos fizera-os sensíveis, come-
çando já a bordar e a aprender um pouco de fran-
cez, para que tinha uma grande queda — especia-
lisára o professor.
Margarida escrevia a miúdo á familia, infor-
mando-a e dizendo que já estava mais contente,
mas que se não esquecessem de mandal-a buscar
nas ferias.
O pae não se esqueceu. Quando se approximou
o Natal, veio elle mesmo buscal-a. Na aldeia fí-
zeram-lhe muita festa, vinham vel-a de proposi«
to, e todos concordavam — que estava muito bo
nita, a pequena.
O próprio Thomé ficara descoroçoado pela sua-
vidade das maneiras de Margarida.
— Muito boa rapariguinha, affiançára. Deus lhe
desse a .sorte que merecia e que não a estragas
sem lá na cidade.
Margarida quando regressou ao collegio vinha
35
feliz e alegre, e lançou-se com ardor ao estudp.
Em pouco tempo começara piano e já a mestra
classificava como das melhores discípulas, tra-
duzia o seu trecho de francez, e para prova de
adiantamento em bordado trabalhava n'umas chi-
nellas para trazer á mãe, que deviam ficar primo-
rosas, — prognosticavam. E ficaram, tirante o ta-
manho, que não estava em harmonia com as di-
mensões dos pés da Joaquina, uns bons pés lar-
gos e sólidos de lavradora. . . Mas, nem por isso
se inutilisaram ; pozeram-se na sala, como exem-
plar comprovativo do adiantamento de Marga-
rida...
E n'estas prendas amiudadas foram decorrendo
os mezes, até que pelo consenso de todos se re-
solveu considerar terminada a educação da pe-
quena, que voltou para casa.
Tinha então dezesete annos. Estava formosís-
sima, alta, elegante e as cores sadias e vivas que
he carminavam o sangue e lhe davam a princi-
pio o aspecto de uma bella provinciana robusta,
íaviam-se-lhe esbatido levemente, dando-lhe um
tom fino e suave, de menina longamente formada
cia atmosphera tépida das cidades. . .
Não era porém uma doente, uma chlorotica ou
ima anemica ; simplesmente como que a pelle se
he adelgaçara, opalisando-se sob a acção da luz
;emperada em que se desenvolvera . . .
No seu logar fez sensação, e aos domingos
juando acompanhava a família á missa, mais do
jue um rapaz casadouro a contemplava ancioso.. .
Ella, porém, não manifestava preferencias ; dir-
36
se-hia que o seu coração estava longe e se dei-
xai a prender na aza ligeira de algum sonho do-
cemente acariciado em segredo . . .
No emtanto, o irmão de um dos melhores ami-
gos do Luiz, sentia-se cada vez mais apaixonado
por ella.
Todas as manhãs o pobre rapaz fazia três lé-
guas a pé para vir vel-a á varanda em que ella
costumava demorar-se um bocado, e era como se
o próprio Deus lhe houvesse sorrido, quando ella
amavelmente retribuía o seu comprimento, . .
Sincero e simples, o pobre namorado, um lavra-
dor modesto, mas activo, via em Margarida o sol
da sua existência inteira... E como não sabia
dissimular, uma tarde procurou o Luiz, e disse-
lh'o francamente — que estava cada vez mais en-
feitiçado pela filha e que se ella se agradasse d'elle
e o pae levasse em gosto, desejaria casar.
O Luiz levava em gosto. Além d'isso via Mar-
garida a aquecer todos os solteiros do sitio, teve
medo e ambicionando quanto antes resolver uma
cousa que afinal tinha de ser — dizia para si —
assentiu, que sim, que por seu lado lhe agradava
essa união, e prometteu convencer Margarida.
Não foi difficil o encargo. A filha convenceu-se
depressa, e conveiu também que não era mau par-
tido o Guilherme.
Bem no intimo não gostava muito d'elle, e tal-
vez até lhe fosse indifferente, mas educada no
principio de uma obediência constante a todos os
desejos do pae, e percebendo que era esse o que
elle escolhera nem discutiu sequer.
Quando o Luiz dera a Guilherme a noticia do
assentimento de Margarida o rapaz estarreceu,
os olhos injectaram-se-lhe, e todo elle tremia e vi-
37
brava tão intensamente, que dir-sehia que ia mor-
rer de felicidade.
Durante dois dias quasi não comeu, e o velho
prior, o mesmo que havia visto nascer Margari-
da, que a ajudara a formar e que ia agora ca-
sal-a, dizia sentenciosamente :
— Ora ahi está ! E pregam que só a desgraça
pode matar ! Olhem-me para aquelle rapagão do
Guilherme, quasi a passar d'esta para melhor só
porque este palmosito de cara — e affagava o rosto
de Margarida — resolveu não se fazer feia para
elle, e lhe deu a entender que sim, que o apai-
xonado não- lhe causava engulho !
— Vão lá perceber esta machina da vida! Para
ahi é que as minhas theologias me não sabem in-
dustriar. . •
Entretanto, Margarida começava, independen-
temente do seu querer, e por um processo quasi
alheio ao seu espirito, a analysar, a decompor a
individualidade do noivo.
IsTesse exame minucioso e impertinente, em que
parecia deliciar-se dentro d'ella alguma força mys-
teriosa, ora imaginava que nunca poderia amal-o,
ora se sentia invadir por uma doce onda de sym-
pathia que a levava para elle, ora quasi lhe vi-
nha do mais fundo do seu ser, dominando-a com
uma tyrannia absorvente, uma instinctiva re-
pulsão por esse homem que evidentemente não
era de sua espécie, nem tinha o feitio da sua
alma. . .
Quantas vezes Guilherme, nos dois mezes que
precederam o casamento, não surprehendeu nos
olhos da sua noiva uma fixidez investigadora e
estranha, procurando, como uma lança aguda, ras-
gar-lhe todos os recessos do coração !
3
38
Quantas vezes, mesmo, não era elle, o homem,
o viril, o forte, que sentindo sobre si o peso cTa-
quelle olhar, tinha que baixar a cabeça e corar
de envergonhado, e temer, sem saber de quê !
N'esses curtos e fugidios instantes, se se atre-
vesse a confessal-o, o que sentia por Margarida
não era amor, era medo ! Não esse medo insciente
e estúpido que paraliza os músculos ou destram-
belha os nervos, mas esse medo incoercível e va-
go, espécie de temor moral, que a certas organi-
saçoes inspira ou uma intelligencia superior, ou
um coração inabordável ou uma individualidade
singular !
Então vinha-lhe o presentimento rude de que em
certas porções, em algumas dobrws, da alma da
sua noiva elle jamais lograria entrar. . .
Evidentemente ella era feita de uma outra ma-
téria, diversa da sua, e nunca de certo poderia
amal-o, como elle a amava a ella !
Por seu lado Margarida, que ás vezes parecia
ler a estranha tortura inexprimivel que se pas-
sava no cérebro do pobre Guilherme, e que então
se deixava vencer pela ternura, pondo no olhar
toda a bondade de que era capaz, também quasi
se convencia d^sso, e um momento houve em que
por um mais revolto impulso do seu sangue pen-
sou resolutamente em dizer ao pae que também
nunca poderia amar Guilherme, nunca.
Mas esse impulso esmoreceu após, e ella fi-
cou-se a pensar que o Guilherme era ainda assim
por ali, o mais bello, o mais intelligente e o mais
digno homem a quem poderia entregar-se. E en-
tregou-se.
Casaram pois. Foram felizes? Foram-n'o em
quanto durou a excitação alegre dos sentidos, em-
39
quanto ella encontrou sempre em volta de si a
atmosphera estonteadora e tépida das caricias
d'elle, emquanto elle sentiu na pelle o perfume
capitoso e doce dos beijos d'ella. . .
Foi-o sobretudo elle, que se via na posse inteira
e incontestada da sua estremecida mulher.
Alguns mezes volvidos, ainda lhe vinha á idéa
a apprehensão incommodativa, e a instantes do-
lorosa quasi, sobre se essa posse seria realmente
e absolutamente inteira e completa ; mas, simples e
sincero, procurava elle próprio dissuadir-se d'isso,
e concordava que sim, que era.
E verdade que já mais de uma vez se lhe afigu-
rara denotar em Margarida um certo ar fastiento
e contrariado quando por qualquer exigência da
sua vida de lavrador, contas, conferencias, prati-
cas, cousas de lavoura, emfim, a obrigava a pôr de
lado a leitura de livros em que ella parecia em-
bevecer-se por completo, e lhe pedia que viesse
coadjuval-o ; todavia, elle próprio se lamentava
por ter de perturbar a mulher, e na sua simplesa
ingenita achava até natural que Margarida prefe-
risse as suas occupaçoes ás d'elle.
O que, porém, o magoava deveras e lhe tol-
dava o rosto de uma melancholia por vezes tão
funda que nem lograva disfarçal-a a estranhos,
era ver que em gerai quando lhe perguntava o
que estava lendo : — se era alguma historia bo-
nita, ella de ordinário respondia-lhe com um ar
de creatura incomprehendida :
— Coisas que tu não entendes,
E quando o Guilherme insistia em conhecer a
razão porque não entenderia essas coisas, Mar-
garida retorquia-lhe um pouco enfadada em geral :
— Que não se tratava de sementeiras nem de adu-
40
bos e por isso o não podia interessar o assumpta.
E não havia modo de a fazer dizer mais.
Por isso Guilherme já quasi lhe nem pergun-
tava o que lia e só quando de todo não podia por
si só resolver ou tratar os negócios é que recor-
ria á mulher, receioso sempre de que ella o fi-
casse amando menos. . .
Insensivelmente foi-se convencendo que Marga-
rida era em verdade uma pessoa diversa d'elle,
d'outra raça e doutros ares, comquanto lhe hou-
vesse conhecido muito bem os pães e os avós, e
sinceramente se capacitava que ainda muito favor
lhe fizera ella em o acceitar por marido.
Nas suas horas de desalento, que também co-
meçava a tel-as, quasi se arrependia de ter ca-
sado, e muito baixinho, com medo parece de ser
ouvido por si próprio, perguntava se não haveria
sido mais feliz, tomando por mulher uma guapa
camponeza do seu logar, ignorante como elle, mas
a mais linda cara que a rosa do sol cobria quatro
léguas em redor, e que não tinha nenhuma das
exquisitices que pelos modos era costume só das
raparigas da cidade, ou que cá vinham a apren-
der . . .
Comtudo, ao mesmo tempo sentia-se orgulhoso e
feliz, em se ver esposo de uma linda mulher, ins-
truida e fina, que não se parecia com as mais,
que a elle próprio lhe fizera crear hábitos e ins-
tinctos novos, que tinha o seu casal, como um
brinco, que fallava com o sr. prior e com a se-
nhora do doutor medico, que era um gosto ouvil-a,
que mostrava uma bondade attrahente para todos,
e que emfim mesmo para elle, apesar do seu ar
protector que ás vezes o chocava, se fazia tão con-
descendente e tão meiga. . .
41
Porque, porém, não o era sempre? Eis o que
Guilherme forcejava por explicar a si próprio, sem
atinar com a explicação.
#
* #
No entretanto, Margarida, que passados com
effeito os primeiros mezes reconhecia, desilludida,
que Guilherme não era com certeza o marido que
idealisára nem respondia, como tanto pedira, até
nas suas rezas, aos sonhos incoherentes dos seus
dezeseis annos, sentira por um momento, um duro
e desanimador momento, esboroar-se o edifício da
sua chimera, e viu*se ao lado de um homem que
se não lhe parecia mau, e não era grosseiro, não
podia comprehender todas as finezas do seu es-
pirito, todas as modulações da sua alma. . •
Teria sido o minuto perigoso e fatal para ella,
se algum escarninho Fausto, adivinhando a crise,
começasse desferindo-lhe ao ouvido a sua eterna
canção dolente — e dolosa.
Por felicidade, por ali não havia Faustos que
prestassem.
O único acceitavel seria o medico, um bello
typo moreno de alemtejano, cujos olhos onde uns
laivos de ascendência árabe tinham posto um in-
tenso brilho, faiscavam de alegria e de saúde,
mas que, casado também havia pouco, e perdida-
mente enamorado da esposa, nem sequer attentava
no rosto de Margarida.
De forma que d'essa crise a salvou a inópia
das pessoas e a conformidade das cousas.
Depois, passado esse minuto mau, e para tan-
tas mulheres fatídico e decisivo, a sólida educa-
ção moral que em casa havia recebido, a sereni-
42
dade saudável do sangue de todos os seus, o pro-
videncial destino que a trouxera para uma casa
de Lisboa, onde o internato não era esse cancro
infeccioso que em tantos pontos alastra e tão con-
tagioso tem sido, e que por isso a conservara in-
cólume e refractária á preversão do convívio, a
vida habitualmente tranquilla da sua casa e da
sua família, e até, felicidade suprema, a natureza
das leituras a que se affizera, narrativas de via-
gens, livros sobre as sciencias e especialmente so-
bre astronomia, salutar conselho de uma velha mes-
tra allemã com quem convivera muito no seu ul-
timo anno de collegio, tudo isso e até o respeito
por Guilherme e pelo seu bom nome, conseguiu
salval-a de si mesma, emquanto a natureza se en-
carregava igualmente de a salvar, iniciando-a
n'uma existência nova, preparando-a para ser
mãe.
E então o velho prior, que com a paciência de
um naturalista andara estudando aquelle casal que
elle próprio também ajudara a formar, sem nunca
ter revelado a ninguém o que observara e para
que observara, entendeu chegado o momento de
intervir, mas com a doçura evangélica de um
amigo que era quasi um pae. E foi a Guilherme
que se dirigiu primeiro.
Quando este uma tarde seguia cabisbaixo e me-
ditabundo na direcção de uma fazenda, o padre
interpoz-se-lhe no caminho e atalhou : — Ora ainda
bem que te vejo, Guilherme. Tenho alguma cousa
de serio que te dizer. Estás hoje disposto a ou-
vir-me rabujar?
— Ora essa, senhor prior, bem sabe que é só
mandar.
Pois seja, mas não é de mandar que se trata
43
ou pelo menos não é a mim que eu pretendo que
obedeças.
E lentamente foi- o levando para debaixo de um
parreiral.
Ahi sentaram-se os dois e o velho começou uma
longa palestra sobre o que Guilherme devia fazer
em presença do novo estado da sua Margarida.
Deu-lhe indicações medicas, alvitres hygieni-
cos, conselhos de padre um pouco medico e de
medico que parecia pae, citou-lhe de tudo um pou-
co, velhos alfarrábios e novas theorias, e teve até
a subtil arte de, sendo elle conhecido no logar e
nos arredores por não dizer quatro phrases que
não fizesse uma citação do Evangelho, quasi o
não citar, com medo de que Guilherme não fosse
confundir o que lhe estivera dizendo, com um ser-
mão que prompto esquece.
Ao terminar, e pondo-lhe a mão no hombro, gri-
tou-lhe, como bordão para o caminho:
— Olha que aquillo que lá tens em casa é ouro
em pó, mas o que precisas é não o deixar marear,
entendeste ?
Guilherme confirmou que entendera, e elle que
havia dias andava alvoroçado com a novidade, tão
funda impressão sentiu com as palavras d'aquelle
velho amigo de casa, que de então por diante re-
dobrou de cuidados, de attençoes e de carinhos
para Margarida.
A esta o seu antigo professor e amigo disse ape-
nas que fizesse um sacrificiosinho ao Destino, eque
mostrasse não desconhecer a adoração que o seu
Guilherme lhe tinha, porque lh'a merecia, e nem
insistiu mais.
Para si reflectiu, com a tranquillidade ingénua
de um bom, que tinha evitado uma possivel des-
44
graça, e que o resto agora seria obra de ambos.
E foi.
Margarida começou a descobrir qualidades, mé-
ritos, virtudes novas em Guilherme, e todo um lado
da individualidade aliás tão simples e tão clara do
marido lhe apparecia pela primeira vez, como um
filão novo que até alli houvesse estado envolvido
em ganga.
Achou-lhe delicadezas de sentimento em que
não havia reparado, generosidades de coração so-
bre que inscientemente passara, e sobretudo o que
acabou de a conquistar para o amor inteiro do
marido foi o havel-o surprehendido mais de uma
noite, quando elle a julgava dormindo, a olhal-a
com unra ternura effusiva e quente, e a envolvel-a
toda numa illimitada onda de amor e de bonda-
de, mas um amor e uma bondade que tinham al-
guma cousa de extra-terreno e de immaculado.
Desde então Margarida comprehendeu que esse
rapaz que ingenuamente a amava, que vivamente
confessava a sua pequenez defronte d'ella, que
era em verdade um ignorante com quem ella não
poderia conversar senão sobre determinados pon-
tos e a quem a sua vida de espirito não lograria
interessar, tinha aos seus olhos e ao seu coração
uma qualidade superior a tudo isso, bens fugaces
que todos podem possuir, — tinha uma bondade
infinita, immensa, e um amor inalterável e inex-
cedivel, e tudo isso elle lhe offereeia incondicional-
mente, com enternecimento, com gratidão até, por
um simples olhar, por uma pequena palavra que
d7ella viesse.
Isso a salvou, e a esclareceu, fazendo de vez
nascer no seu lar, sem intermittencias e sem es-
morecimentos, a divina luz fecundante e imma-
45
culada da eterna felicidade entre duas almas, que
afinal se comprehendem e se combinam.
Quando mezes depois uma creança nascia n'esse
casal, podia bem dizer-se então que ella era já
filha de uma mesma carne e de um mesmo cora*
ção . . .
A nuvem estava desfeita.
Setembro de 1890.
Raphael dllmeida
A MINHA TERRA
Das nove ilhas de que se compõe o archipe-
lego açoriano, destaca-se a de S. Miguel, pela
sua grandeza, importância commercial, grande
porto d'abrigo, amenidade de clima e tormosos e
ricos jardins que possue.
E dos Açores a pérola.
Descoberta em 8 de maio de 1444, tem pro-
gredido muito a ponto de ser hoje considerada
como a terceira cidade do reino de Portugal.
E' mais comprida de que larga, razão porque
á cidade denominaram de Ponta Delgada.
O chamar-se S. Miguel, foi por ter sido des-
coberta no dia em que a egreja festeja o archanjo
S. Miguel, segundo affirmam historiadores cujas
obras tenho á vista.
As Furnas, e o logar das Sete Cidades são
sitios encantadores, muito concorridos de verão,
especialmente as Furnas, pela variedade e abun-
dância de aguas medicinaes que brotam de varias
nascentes.
#
O descobridor da ilha de S. Miguel, foi um
negro escrayo, da ilha de Santa Maria, a primeira
dos Açores descoberta em 1432, que tendo fu-
50
gido ao seu senhor subiu em procura de refugio
á mais alta serra, d'onde avistou a nova ilha, indo
em seguida participar ao amo a descoberta em
troca do perdão.
D'ahi resultou, ser encarregado Gonçalo Velho
Cabral de se certificar da descoberta feita pelo negro.
Em 8 de maio de 1444, dia da apparição do
archanjo S. Miguel, Gonçalo Velho Cabral, acom-
panhado da sua gente, saltava n'um sitio que de-
pois chamaram «Povoação» e hoje é Villa do
mesmo nome.
Os companheiros do descobridor apanharam
pombos, ramos, etc. para presentearem o prín-
cipe regente, o qual ao ter conhecimento da des-
coberta, nomeou o dito Gonçalo Velho Cabral,
descobridor e capitão donatário d'esta ilha como
já o era da de Santa Maria.
Alguns historiadores açorianos referindo-se á
descoberta de S. Miguel, dizem que na dita «Po-
voação» ficaram uns indivíduos naturaes d' Afri-
ca, que contaram, terem sentido muitos terramo-
tes e bramidos. Casualmente andando mais para
o interior da terra, encontraram um homem, o
qual confessou ter vindo de Santa Maria, fugido
com um seu amigo e a mulher d'este, com quem
tinha amisade, e fugindo á justa punição, se ti-
nham refugiado para esta ilha, e que elle então
para ficar com a mulher matara o marido.
A dar-se credito a este facto, foram pois estes
os primeiros descobridores da ilha de S. Miguel.
Ouvindo isto, o que era considerado como supe-
rior, ordenou que se lhe applicasse o castigo que
n'essa época se dava em Portugal, sendo em vista
de tal enforcado.
Os descobridores voltaram depois em 29 de se-
M
tembro de 1445, com vários colonos portugue-
zes, fundando uma nova povoação.
#
# #
Dada a erupções vulcânicas e terremotos, em
diversas épocas tem soffrido enormes e conside-
ráveis prejuízos a ilha de S. Miguel.
Ha annos a esta parte a sua principal riqueza
eram a laranja, os ananazes, e os cereaes ; hoje
os ananazes, a batata doce e ainda os cereaes —
trigo, milho e fava, mas isto em pequena escala.
Uma doença terrível nos laranjaes inutilisou
milhares de plantas, arruinando grande numero
de famílias.
E' triste confessal-o.
A ilha de S. Miguel, na occasião em que es-
crevo estas linhas, atravessa uma crise medonha,
horrorosa talvez !
Os trabalhadores do campo expatriam-se le-
vando comsigo as famílias para as terras de Santa
Cruz, e ilhas de Sandwich ; o agricultor que traz
de renda as terras que cultiva, está empenhado
deveras com o senhorio, e não sabe como sahir
da situação precária e desesperada em que se vê.
Na crise por que estão passando as ilhas dos
Açores, ha muita culpa, muita negligencia, porém,
a minha missão n'este momento não é a de indi-
car os culpados, nem de descriminar as causas.
O tempo encarregar- se-ha de o fazer.
Os michaelenses são, como todos os açorianos,
(bem como todos os portuguezes), essencialmente
52
trabalhadores e hospitaleiros, intelligentes e acti-
vos.
Tempera rija e ambicionando independência.
No trabalho quotidiano buscam-n'a com persis-
tência assombrosa.
Olhemos para os camponezes, a classe mais im-
portante de todo o povo açoriano.
Entremos nos seus casebres, visitemos os seus
campos e veremos quanto valem, .quão úteis são
a si e aos seus semelhantes.
Mourejam com o sacho (enxada) na mão, de
cabeça baixa, desde o nascer do sol até que elle
se esconde de todo, recebendo em troca por esse
trabalho violento e fatigante, diariamente, uma pe-
quena medida de milho, equivalente a oito vin-
téns !
Fora da cidade os jornaleiros recebem em mi-
lho a paga dos seus trabalhos, porque o milho na
ilha de S. Miguel, como nas demais dos Açores,
equivale a moeda corrente.
Nas povoações afastadas dos centros os ven-
deiros têem uma grande caixa de madeira, onde
recebem o milho, dando em troca os géneros com-
prados, como : sal, sabão, tabaco, peixe salgado,
etc, únicos géneros de maior consumo. Depois,
quando a caixa está cheia, isto é, quando com-
porta cinco a seis saccos de milho, (30 a 40 al-
queires) poe-se a caminho da cidade o vendeiro.
Na cidade encontra então, comprador a dinheiro,
o milho.
A vida do campo, nos Açores, é poética e ori-
ginalíssima. Casebres de pedras nuas, cobertos
com palha de trigo, (vendo-se em alguns largas
fendas), e tendo unicamente duas ou três divisões
internas, feitas com esteiras de cannas ; compoe-se
53
o solar das famílias pobres. Uma porta e um pe-
queno postigo para um pateo é a apparencia ex-
terior da habitação.
O pateo ó indispensável para a vivenda do
suino ou gallinhas que sustentam. Os suínos tor-
nam-se necessários porque a panella é temperada
com banha de porco.
Na ilha de S. Miguel não se aduba as comidas
com azeite. As oliveiras vegetam nos Açores, mas
não dão fructo. De sorte que o camponez sustenta
todos os annos nm porco para ter o adubo para
os seus alimentos.
O chão dos casebres, tristes palhoças, é térreo.
Em dias de festa passa a ser juncado de ra-
mos de pinheiro.
A mobília que os guarnece é bem simples.
Dois ou três bancos de madeira, uma cama de
pau, uma mesa tosca, uma caixa, e um moinho de
pedra, o movei mais preciso na casa do pobre.
Achará o leitor, que não for açoriano, extraor-
dinário o movei moinho.
Pois não o é.
O moinho de pedra é onde a mulher ou as fi-
lhas do camponez açoriano, reduzem a farinha o
milho para alimentação da família.
Quasi sempre este processo é feito ao rasgar
da manhã.
Muitas vezes ouvi, ao dirigir-me de madrugada
para a caça, em povoações a oito kiloraetros da ci-
dade de Ponta Delgada, misturado com as delicio-
sas cantorias das avesinhas, que saudavam o nascer
da aurora, o rodar pesado das pedras dos moinhos,
despedaçando o milho, algumas vezes, cadenciado
pelo cantar popular e alegre das robustas rapa-
rigas que com as suas mãos callosas as moviam,
4
54
Uma orchestra divina/ que se não descreve, mas
que se sente, e que nos arrebata, porque a con-
fusão e variedade de cantos e silvos, juntos aos
trabalhos matutinos d'aquelle povo, enebria e nao
tem rival.
A alimentação d'esta abençoada gente, consiste,
invariavelmente, em pão ou bolo de milho, uma
pimenta ou peixe salgado, (sardinha, chixarro ou
bonito) ao almoço e jantar ; e á noite, a ceia, consta
de um caldo quente de couves, unicamente tempe-
rado com banha e pimenta.
Em dias de festa, incluindo as do Divino Es-
pirito Santo, festas tradicionaes e popularissimas
nos Açores, apparece então nas mezas uns boca-
dos de vitella e algumas gottas de vinho. Isto, uma
ou duas vezes no anno 1
E vivem felizes, sadios, sem ambições e sem-
pre lutando pela existência e sempre trabalhando
com obediência.
O domingo destinam elles ás suas reuniões, isto
depois da missa conventual na egreja da aldeia. Al-
guns ha, que habitando longe da egreja vêem em
ranchos a pé, e com suas familias, percorrendo al-
guns kilometros, cumprir com o preceito catholico.
Imponente a manifestação santa da crença !
Discutem no adro da egreja assumptos agrí-
colas, e os remediados tratam de questões par-
ticulares, demandas por passagens de terrenos,
heranças, etc, ouvindo-se sempre com attenção
as palavras dos velhos.
Ha uma povoação na ilha de S. Miguel, cha-
mada Bretanha, onde as demandas teem vulto,
e são amiudadas.
55
Depois do jantar, os mais novos, procuram a
sombra dos valles ou grotas e ali inauguram o
jogo do bilro (chinquilho) ou de cartas — bisca ou
pedida.
No dia seguinte lá estão de novo no seu labor
constante, risonhos, contemplando a natureza e
fazendo cálculos sobre a producção do anno.
*
# #
Por occasião das festas ao Divino Espirito
Santo, enfeita-se o theatro, (uns palanques de ma-
deira e alguns de pedra com emblemas do Espirito
Santo) e em diversas casas, dos mais remediados,
realisam-se bailaricos.
N'estes bailaricos cantam-se e tocam-se as seguin-
tes modas ; algumas d'e)las lindissimas :
Aurora :
«Auroras, meu bem auroras,
Auroras por isso digo
Claro sol, divina neve
Lindos amores tive comtigo».
Pésinho :
«Deita aqui o teu pésinho,
Aqui ao pé do meu,
Q'o tirar do teu pésinho,
Cada qual fica com o seu».
Chamarrita
«Anda, anda chamarrita
Da sala para a varanda,
Faze esmolas por tua alma,
Que teu corpo perdido anda».
56
Trelico (ou Praia) :
«Trelico bate, bate,
Trelico já bateu,
Quem gosta de mim é ella
Quem gosta d'ella sou eu».
Murcianna :
«Murcianna, Murcianna,
Murcianna, Murcianninha,
Ninguém t'liade pôr a mão,
Sabendo que tu q'és minha».
Fado :
«Fado e mais fadinho,
Foi ao mar n'uma brodola,
Faltou-me o gaz, fui cahir
A dentro d'uma caçarola».
Canninha verde :
«O' minha canninha verde,
Canna verde d'encantar,
Ainda que tu me fujas
Sempre, sempre t'heide amar».
Preta :
«Arrenega da preta
Que vem d'amarello,
Cachimbo na boca,
Chinello no pé».
Escusado será dizer que estes bailaricos são
concorridissimos e representam para as famílias
do povo um successo.
N'estes bailaricos fazem-se e desfazem-se casa-
57
mentos, e ha annos a esta parte, provocam-se des-
ordens, algumas das quaes com serias consequên-
cias.
No emtanto a originalidade e a poesia popular
caracterisam estas festas do povo michaelense, que
d'anno a anno, tçm um dia para a folga, e tor-
nam-as appeteciveis e desejadas pela mocidade
aldeã, cheia de vida e de esperanças.
Setembro 1890.
Joio de Mendonça
A FONTE DA PREGUIÇA
E A NOGUEIRA DA MISÉRIA
A FONTE DA PREGUIÇA
E A NOGUEIRA DA MISÉRIA
(3Li E 3KT ID -A. S DO MINHO)
Era uma tarde esplendida de setembro.
O sol apenas declinava para o horisonte e illu-
minava ainda vivissimamente os formosíssimos
campos de Vizella, povoação tão pittorescamente
situada entre as serras de S. Bento e de S. João
das Barrocas.
Eu e o meu amigo José Prado, que é um abas«-
tado proprietário d'aquelles sítios, iamos de pas-
seio pela estrada, que encaminha a Penafiel
Tínhamos deixado á esquerda os afamados ba-
nhos do Mourisco e, avistando mais abaixo o um-
broso e ameno sitio da Cascalheira, onde o Rio
Vizella se espraia sob denso arvoredo, tornejámos
pela vereda da Cruz perdida e embrenhámo-nos
atravez campos e pinhaes, em sombrias azinhagas
até aos logares de Barreira e Portelladinha.
Ali corre, por entre pedras passadeiras, um re-
gato, que dimana mansamente formando mean-
dros e banhando pés de myosotis em flor.
Trepámos uma escabrosa encosta, calyada de
grossos calhaus e ensombrada de corpulentas e co-
padas carvalheiras, onde as vides se enroscavam
em phantasiosas volutas, suspendendo, por entre
62
pâmpanos vicejantes, bellos cachos amadurecidos.
De uma pequena mina escavada na montanha,
cae, em tanque de pedra, cujos lavores, que os
séculos em parte respeitaram, attestam a arte pri-
morosa de outras eras, em que aquelles logares
seriam mais frequentados, — uma veia de agua
crystallina. D'ali a nitida lympha, transborda e
vae alimentar duas represas, que ladeiam o ca-
minho.
O murmúrio das aguas allia-se agradavelmente
ao cicio das folhagens por onde perpassa a vira-
ção, ao chilrear das aves e á toada triste, que os
carros fazem ouvir ao passar nos caminhos. Essa
harmonia é cortada pelos cantares plangentes, tão
peculiares ao Minho, das mulheres, que andam
nos trabalhos da lavoura.
— Tem um nome bem singular, disse-me José
Prado, esta fonte. Chamam-lhe a fonte da preguiça.
— A amenidade do sitio, disse-lhe eu, a tran-
quilidade, que parece refleetir-se d'estas amenís-
simas paragens no espirito de quem as contempla,
fel-a assim denominar.
— E' possível, tornou o Prado, mas isso não
obsta que haja uma historia, lenda ou quer que
seja, que explica esse nome, e a qual também se
refere áquella vetusta nogueira, chamada a no-
gueira da Miséria, e ao celeste mensageiro S. Mi-
guel, cuja imagem se venera em Villarinho, na
antiquíssima egreja, que nós vamos visitar.
Antes de continuarmos, demorámo-nos alguns
momentos n'aquelle logar de belleza, deveras fas-
cinante.
Os aspleniuns e trichomanes, fetos de folhagem
finamente recortada, ornavam os muros e rochedos
ensombrados d'aquella encosta. Em volta os car-
63
valhos cerquinhos e molares agrupavam-se pito-
rescamente, apresentando nos troncos carcomidos
a sticta pulmonacea, esse interessante lichen, cu-
jo nome provem da sua semelhança comos pul-
mões humanos. Outros lichens, como a parmelia
caperata, de cor verde esmeralda e & parmelia au-
reolata, guarnecida nas suas margens, como de
um cordão de ouro, vestiam aquelles troncos e da-
vam gracioso contraste com as manchas esbran-
quiçadas, semeadas de traços, que parecem cara-
cteres árabes ou semelham cartas geographicas,
dos opegraphas e graphis, e os pontos pretos em
grandes espaços brancos da verrucaria nítida,
emergindo de entre tufos d'esse musgo verde ama-
rellado, que semelha seda, e que tão justamente
foi denominado Leskea sericea. O matto, matizado
das flores amarellas das giestas, das flores em ca-
cho róseas, violetas, azues e purpurinas das ur-
zes, e das flores alvíssimas e mimosas do leuco-
jum automnale e bagas vermelhas dos azevinhos,
era riquíssimo de tons de colorido e rescendia de
um perfume balsâmico, acre, mas agradável.
Continuámos a subir a Serra de S. João, pas-
sando por Sestaes e S. Paulo. Deixando á es-
querda um formosíssimo bosque de carvalhos, e
subindo ao topo, deparou-se-nos um esplendidis-
simo panorama.
— Olha, disse José Prado, ali tens n'este valle
bellissimo as quintas do Bairro e de Quintas.
Na vertente opposta a esta, ficam as quintas
da Agrella e do Paço, e, como fechando esta
enorme bacia, estão os montes em que alvejam
a capella de S. Bento e mais além a do Senhor
Jesus dos Perdidos !
Ora seguíamos os caminhos de carro, ora percor-
64
riamos o estreito atalho, fechado por vezes por al-
tos pedregulhos, mas dispostos em forma de es-
cada, tornando-se por isso de fácil accesso. São es-
ses os Cancellos de cão, tão frequentes nos caminhos
que atravessam campos de milho, hortas e vi-
nhedos, e por onde passam povos, que vêem de
grandes distancias á egreja, nos dias de festa e
santificados, e por isso a essas veredas lhes cha-
mam caminhos de missa. Foi por um d'esses ca-
minhos, que nos dirigimos ao antigo convento
de S. Miguel de Villarinho. D elle o que resta é
bem pouco. Resta a egreja, accusando nas pa-
redes e n'alguns restos de ornato architectonico,
o que foi ha séculos.
Na parte superior do adro acha-se construída
uma excellente vivenda de casas. Na egreja ha
alguns retábulos de boa talha dourada, retocada
de pintura. No altar-mór, nrum quadro mal pin-
tado, vê-se a imagem de S. Miguel, tendo o diabo
aos pés. O santo, no modo como o pintor o ves-
tiu, parece um figurino de anjo de loas.
No claustro, transformado em pardieiro, vimos
uma porta murada, onde n'um arco de volta aba-
tida ha uma inscripçâo com a era de 1417, mas
que não nos foi possivel decifrar. Na soleira da
porta lateral da egreja ha outra inscripçâo muti-
lada com o anno de 1611.
Foi o cura, homem illustrado e amável, que nos
mostrou a egreja. Com o rosto sorridente, expri-
mindo bondade, convidou-nos para a ceia. A pe-
dido de José Prado mandou chamar o velho sa-
cristão, que era um narrador consummado, para
que nos contasse as lendas, que eu vou narrar, ten-
do-as colhido agora nas minhas reminiscências e
recordações.
65
Ainda era dia, quando nos sentámos á meza.
No Minho janta-se ao meio dia e ceia-se ao pôr
do sol. Por isso é muito para vêr-se, ao recolher
dos trabalhos do campo, como se exhala o fumo
dos telhados de telha vã, da cozinha térrea, que
também serve de lareira, e que emergem de entre
a espessura viridente.
A ceia foi alegre. Na lareira crepitava o fogo,
esse bom fogo cujas faúlhas e centelhas tanto -ale-
gram. As vitualhas tinham sido regadas com um ex-
cellente vinho verde, e para o final da refeição o
excellente cura offerecera-nos um bello transmon-
tano com vinte annos de casa. Alguns d'esses copos
deram aos nossos organismos esse bem-estar ale-
gre e satisfeito, que sentimos depois de uma boa
refeição. Invadia-nos uma agradável lassidão. Es-
távamos no momento psychico dos contos e nar-
rações, e aspirando o fumo dos charutos prestá-
mos os ouvidos. O velho começara a sua narra-
tiva.
II
Em tempos remotíssimos estas regiões abunda-
vam de tudo, que é necessário ao goso da vida.
Homens e mulheres, velhos e creanças passavam
parte do dia deitados á sombra das arvores, ou, no
inverno, aconchegados á lareira. A terra, pujantís-
sima de força productiva, alimentava de tal modo
as plantas, que a semente lançada no solo dava
300 grãos por cada um, quasi sem amanho.
Todos, mais ou menos abastados, olhavam ao
bem presente e descuravam do futuro.
Alguns poucos dos que compunham o conselho
dos anciãos, o qual se reunia junto á fonte, que
da preguiçosa incúria d'essa assembléa tomou o
66
nome, — tinham chamado em vão os seus concU
dadãos aos seus deveres, mostrando-lhes que a
inércia, ou, mais propriamente, apreguiça, quando
invade uma população, deíinha-a, esterilisa-a e
mata-a, tendo-a antes prostrado sob o despreso
das outras populações, que não renegaram os seus
direitos, antes os afirmaram pelos seus esforços
e tornaram evidente a sua vida activa.
Mas quasi todos tinham o pão na arca, o cel-
leiro e a adega bem providos, e por isso não lhes
calava no espirito essas exhortaçoes, que toma-
vam, como dictadas por espíritos sob a influencia
do mau humor que lhes causava o bem-estar e a
felicidade alheia. O povo chamava-lhes loucos e
prophetas de desgraça.
Mais acima d 'essa celebre fonte havia uma mi-
serável choupana, coberta de telha vã e colmo,
onde vivia uma pobre mulher de nome Miséria.
Era mais velha que Mathusalem, ou, talvez,
tão velha como a humanidade.
A sua única companhia era um cão magro e
faminto, mas extremamente dedicado á sua dona.
N'um pequeno cerrado, pertencente á Miséria,
havia uma nogueira, que lhe dava saborosíssimos
nogoes. O único prazer da pobre velha, ella, que
quasi todo o anno roía nalguns pedaços de broa
duríssima, era comer os fructos da sua nogueira.
Eram-lhe condimento ao amargo pão esmolado.
Mas os garotos, implacáveis, roubavam-lhe em
grande parte essa consolação, mais por diverti-
mento maldoso, que por necessidade.
Todos os dias, Miséria, encostada a um bordão
ia esmolar, acompanhada de seu cão Fiel .
Batia a todas as portas, mas nem todas se
abriam para lhe dar esmola.
67
Os mais ricos repelliam-lhe as supplicas e co-
briam-n'a de doestos. A abastança, em que vi-
viam, desenvclvera-lhes em alto grau o egoísmo, e
também a preguiça lhes embotara todos os sen-
timentos bons. Na sua criminosa indifferença, pelo
soffrimento alheio, censuravam a auetoridade, que
permittia á Miséria, coberta de andrajos, que pu-
blicamente implorasse a caridade.
Era dos menos protegidos da fortuna, que a mí-
sera colhia algumas mealhas. Ainda assim, a sac-
cola nunca se lhe encheu a mais de metade.
No outomno o peditório era-lhe mais penivel,
pois ia desacompanhada de Fiel, que ficava de
guarda aos fructos da nogueira. Amavam-se tanto,
que esse apartamento era dolorosíssimo para am-
bos, que choravam lagrimas de amarga saudade.
III
Houve um inverno extremamente rigoroso, em
que a terra se cobriu de extensa mortalha de gelo.
Em noite caliginosa, em que o vento soprava
tempestuoso e avergava as mais corpulentas arvo-
res, os raios coruscavam na atmosphera, como lar-
gas fitas de fogo, e a chuva caía a jorros.
Miséria, mal agasalhada nos seus andrajos e
aconchegada a Fiel, despertou pelo ruido, que al-
guém fazia batendo-lhe á porta.
Sempre que alguém se aproximava d'aquelle
pobre tegurio, Fiel ladrava com furor. D'esta vez,
porém, latiu alegremente e começou a mover a
cauda como que a festejar a boa vinda.
— Por amor de Deus, gemeu uma voz dolorida,
dae pousada a um pobre homem, que morre de frio
e de íome.
68
— Levantae o bedelho e entrae !
Ninguém poderá dizer, que recusei abrigo a
uma creatura de Deus !
Entrou o forasteiro. Profundas rugas lhe sulca-
vam o rosto. No aspecto mostrava ser ainda mais
velho que Miséria. Cobria-o apenas uma velha so-
taina esfarrapada.
— Assentae-vos, bom homem, disse-lhe Miséria.
O pouco que tenho, vol-o offereço de todo o
coração !
E Miséria lançou na lareira a sua ultima acha
de lenha, e deu ao velho uns pedaços de broa de
milho e centeio e algumas nozes, que lhe restavam.
O velho aqueceu-se ao fogo, e comeu com appe-
tite. Fiel deitára-se-lhe aos pés e acariciava-lh'os.
Quando o hospede acabou a frugal refeição, Mi-
séria envolveu-o num cobertor de serapilheira e
fel-o deitar na sua enxerga, emquanto ella . se
deitava no chão, encostando a cabeça a uma ve-
lha arca, para dormir.
No dia seguinte, Miséria despertou cedo, e, como
nada mais tivesse que dar ao hospede, lembrou-se
de ir esmolar. Chegou-se á porta, abriu-a e viu
que a tempestade serenara. Voltou-se para agar-
rar no bordão e viu de pé o hospede.
— Infeliz Miséria, conheço o teu bondoso intento,
disse-lhe elle. E finda, porém, a minha missão.
— Quem és tu ? exclamou Miséria.
A estas palavras o velho transfigurou-se n'um
formoso mancebo de rosto radiante.
— Sou o archanjo Miguel, tornou elle. Por man-
dado divino vim a estes sitios experimentar a ca-
ridade dos homens. Bati á porta dos opulentos e
felizes do mundo e todos elles merepelliram. Foste
tu, pobre velha, a única pessoa, que me recolheu
69
e agasalhou, soffrendo na tua miséria pelo bem do
próximo. Vaes ser recompensada.
Miséria, que ajoelhara, pondo as mãos, disse:
— Formoso archanjo, eu nada vos peço. Vivo
feliz na minha pobreza e não faço a caridade por
interesse.
— Bem sei, tornou o santo. Tu pagas com bên-
çãos e votos de felicidade as parcas migalhas que
te dão, e perdoas aos que te maltratam e escar-
necem.
Tu eras tão desgraçada como eu, e fostes tu
que tiveste compaixão da minha desgraça. Deus
quer recompensar- te. Formula um desejo e serás
satisfeita.
— Poderoso santo, nada vos peço porque nada
desejo.
— Nada tens* e nada queres ? Fala !
Miséria continuava calada.
— Queres ser abbadessa de Santa Clara de
Coimbra? Queres ser a senhora directa dos cen-
sos de todas estas terras ? Queres ser joven, bella
e rica? Desejas honras e riquezas?
A todas essas offertas Miséria abanava a ca-
beça.
— Não me recuses o prazer de te recompen-
sar ou julgarei que o fazes por orgulho.
— Já que assim m'o ordenaes, divino archan-
jo, vou fazer um pedido. Tenho no meu cerrado
uma robusta nogueira, que me dá saborosas no-
zes. Os garotos doestes contornos costumam vi-
rem roubal-as e eu, uma parte do anno, tenho
de deixar Fiel guardando-as.
Fico separada do meu pobre cão dias inteiros,
em quanto faço o peditório: Isto é doloroso para
ambos. Fazei, poderoso santo, que todo aquelle,
5
70
que trepar á minha nogueira, não possa descer
sem o meu consentimento.
— Assim seja, disse o santo, sorrindo se da in-
genuidade da pobre Miséria. Bemaventurados os
simples e os pobres de espirito, porque d'elles é
o reino dos Céos !
E abrindo as azas librou-se aos espaços infini-
tos, abençoando Miséria, que glorificava Deus no
seu archanjo.
IV
Havia passado o mau tempo. A protecção do
santo era evidente. Miséria, quando recolhia do pe-
ditório, vinha sempre com a saccola bem fornecida.
Quanto aos garotos, que lhe roubavam as no-
zes, presos uma vez na arvore, Miséria ali os dei-
xou algum tempo, e quando os soltou tal medo ti-
veram, que nunca mais voltaram. Os próprios
aldeões afastavam-se receiosos da arvore e trata-
vam melhor Miséria, pois que a julgavam pos-
suir poderes sobrenaturaes. Na maioria dos casos
é o medo, que impede o homem de ser máo. Por
isso, tanto Miséria como Fiel, viviam nessa tran-
quilla bemaventurança, longe do bulício do mun-
do, que é a verdadeira felicidade.
Era pelo outomno. Miséria contemplava as ar-
vores já quasi despidas das suas folhagens, e os
pâmpanos, que tomavam essa cor avermelhada,
prenuncio da sua queda, quando uma voz lúgu-
bre chamou por ella trez vezes :
— Miséria! Miséria! Miséria! Dizia a voz.
Fiel começou a uivar, como se augurasse morte
de pessoa.
Era um homem magro e esguio, velho e cada-
7i
verico, com uma comprida foice na mão, que as-
sim chamava. Era a Morte.
— Que queres de mim, homem de Deus ?
- — Venho cumprir a minha tarefa. Chegou a
tua hora.
— Pois já? '
— Admiras-te ? Que te importa a vida, tu que
és pobre e velha e enferma?
— Quanto a pobre, contestou Miséria, tenho
pão na arca e lenha na lareira. Velha ainda não
o sou porque vou fazer pelo Natal cento e trinta
annos, e com respeito a ser enferma sou tão forte
como tu.
— O teu logar é entre os bemaventurados !
— Quando alguém morre, costuma dizer- se :
passou d'esta para melhor. Ora eu não sei se no
paraizo a vida é melhor. Prefiro a de cá. A ca-
ridade official é uma burla para quem é desgra-
çado. Além de que não posso separar-me do meu
pobre cão.
— Levarás o teu cão !
Vendo irrevogável a sentença e que forçoso era
conformar-se pediu á Morte alguns momentos para
vestir o fato, que usava em dias domingueiros.
Emquanto cuidava dos modestos atavios, disse
á Morte :
— Queres satisfazer-me um yltimo desejo ?
Sobe á minha nogueira e colhe-me aquellas nozes,
que lá estão. Será o ultimo repasto, que faço
n'este mundo !
A Morte annuiu. Trepou e colheu as nozes, mas
por mais esforços que fizesse, não pôde descer.
— Ajuda-me, Miséria, que não posso descer!
Gritou a Morte.
— Olha, sabes o que te digo ? É que não tenho
72
pressa de ir gozar da bemaventurança eterna. Dei-
xa-te ficar ahi, que estás bem ! Vou ser benemé-
rita da humanidade, sem que ninguém o saiba.
E Miséria fechou a porta e deixou no cerrado
a Morte empoleirada e presa na nogueira, cujos
ramos, como se fossem os braçtfs de um enorme
polvo, a cingiam e luctavam com vantagem con-
tra os esforços que fazia para libertar-se.
Decorridos alguns mezes espantaram-se os mé-
dicos de ninguém haver fallecido. Os homoepathas
attribuiam ao seu systema de dynamização ou at-
tenuação dos medicamentos as maravilhosas curas.
Preconisando as theorias de Hannemann, alguns
prescreviam o medicamento na mais alta attenua-
ção, recommendando que os doentes nem sequer
o cheirassem, mas que olhassem apenas para el-
le, conservando-o a distancia e em vidro bem ro«
lhado.
Os médicos dosimetricos, pelo contrario, cla-
mavam em altas vozes, que a humanidade se tor-
nara longeva, graças á energia dos alcalóides,
que empregavam. Os allopathas também queriam
a gloria para si proclamando como um dogma o
seu — contraria contrariis curantur e oppondo-o
ao similia similibus curantur dos homoepathas. Fi-
nalmente hydropathas, electropathas, hydro-sodo-
pathas e metallopathas e muitos outros com patas
e sem ellas, todos pretendiam para si a gloria de
haverem salvado da morte a humanidade.
Durou este estado de coisas alguns annos e a
humanidade começou a julgar-se immortal. Então
celebraram- se festas de publico regosijo e de um
73
extremo ao outro da terra os homens exultavam
de contentes.
Com o tempo esse contentamento foi desappare-
cendo. Velhos de 150, 160 e 180 annos, chegados
á ultima edade da vida, privados da vista, do ou-
vido, do tacto e do gosto, com a memoria enfraque-
cida pela edade e pela doença, maldiziam da vida,
e desejavam a morte, como allivio a tantos males.
As populações tinham augmentado de um modo
extraordinário., e por isso a existência tornou-se
mais cara e mais difficil. Reis, ministros e aucto-
ridades tornaram-se inválidos e por isso os gover-
nos foram fracos e não puderam obstar a que se
praticassem todos os crimes. Grandes quadrilhas
de salteadores roubavam,, violavam, incendiavam,
mas não assassinavam, porque não podiam.
Finalmente a immortalidade tornou-se um flagello
e os homens procuraram a morte, com o mesmo
ardor, com que então a evitavam. Médicos eminen-
tes foram chamados, não para curar, mas para
matar, e apesar dos seus esforços e de toda a sua
perícia nada conseguirain. Chimicos famosos com-
pozeram venenos subtis e fulminantes, mas sem
effeito. Os elixires da morte tiveram voga como
d'antes tinham tido os elixires de longa vida. Aquel-
les famosos instrumentos de supplicio da edade
media, que torturavam a carne e os ossos, foram
inefficazes. Alguns fizeram abundante uso de man-
teiga falsificada com margarina, do vinho fuchsio-
nado, do pão com gesso e sulphato de cobre, mas
todos estes e mais géneros, que d'antes tão pre-
judiciaes eram á existência, foram impotentes
para produzirem a morte.
N'uma cidade da Europa, cujo nome me não
lembra, reuniu-se um Congresso medico contra a
74
vida. Como dantes esses congressos tinham sido
impotentes contra a morte, também esse o foi con-
tra a existência. Propoz esse congresso um premio
de um milhão de cruzados a quem descobrisse o
remédio infallivel para dar a morte. Escreveram-se
milhares de memorias, mas ninguém atinou com
o remédio.
Por este tempo havia na cidade de Braga um
doutor medico chamado o dr. Priscus. Uma noite
em que elle recolhia para casa pela estrada, que
vae de Guimarães a Vizella., desviou-se do cami-
nho e embrenhou-se entre os pinhaes. Como pas-
sasse junto da nogueira da Miséria, ouviu uma
voz plangente, que dizia :
— Quem me libertará d'esta prisão, para que
eu livre a terra da immortalidade, que é muito
peior que a peste !
— Eu ! disse o dr. Priscus, e ia estender a mão
ao seu velho amigo, quando a Morte lhe disse que
lhe não tocasse, mas que fosse buscar homens ar-
mados de machados para cortarem os ramos á no-
gueira. Retirou-se o medico e no dia seguinte, ao
alvorecer, voltou com uns poucos de rachadores,
que não somente não conseguiram cortar a noguei-
ra, mas tendo-se imprudentemente agarrado aos
ramos, foram enlaçados por estes e ficaram pre-
sos com a Morte. Vieram outros e outros succes-
sivamente e todos tiveram a mesma sorte. Final-
mente foi tal o ruido dos seus gritos e gemidos,
que Miséria, ainda que extremamente surda, ou-
viu-os e acudiu dizendo :
— Sou eu a única pessoa que vos pode libertar !
Consinto, mas com a condição de que a Morte
não nos virá buscar nem a mim nem a Fiel, em-
quanto eu não a chamar três vezes.
75
— Está combinado ! E a Morte desceu e como
era grande a tarefa, e todos tinham pressa de mor-
rer, pediu ao seu amigo e compadre o dr. Pris-
cus e aos seus collegas, que a auxiliassem, o que
elles fizeram de boa vontade.
Quanto a Miséria, não consta ainda que cha-
masse pela Morte três vezes. E por isso se con*
serva e conservará no mundo.
Quando saímos do eremitério do cura de S.
Miguel de Villarinho, era noite. A lua filtrava os
seus raios por entre o arvoredo. Atravez dos cam-
pos, das devezas e pinhaes acompanhavam-nos
os alegres cantares das mulheres que recolhiam
da romaria de S. Adrião, um logar próximo. E
aquellas toadas e aquelles sitios deixaram-me uma
impressão melancholica, que me é grato recordar.
Eis algumas d'essas trovas, que me ficaram de
memoria.
Se te aborrece o querer-te,
é forçoso o desprezar-te.
Ensina-me a aborrecer-te,
que eu não sei senão amar-te.
Vae meu pobre coração,
conta bem o que padeces,
para ver se assim mereces
tenham de ti compaixão.
Tomara quem me dissera
com toda a sinceridade,
se prevalece a mentira
contra a força da verdade.
im U I O MA R TORIIEZIO
SEVERINA
(A Ex.ma Sr.a D. Maria Augusta
de Palma Fernandes)
SEVERINA
Pelas largas charnecas, devastadas por um sol
inclemente e fustigadas, no inverno, pelo ríspido
sudoeste que se levanta do mar em Ímpetos ti-
grinos, chega-se a Sines, uma aldeia da Extre-
madura, cravada na aresta do oceano, como uma
ilhota inexplorada.
Envolvera na sua folhagem verde-negra o am-
plo pinheiral, engrandece a com o seu estreito
abraço o magestoso oceano e isola-a do mundo,
das suas ruidosas festas e das suas intermináveis
luctas, a ausência do caminho de ferro.
Foi em Sines que o príncipe D. Miguel de Bra-
gança embarcou para o exilio, d'onde seguiu, sem
tornar a pizar a terra da pátria, para a lúgubre
viagem do tumulo.
Nos longos seroes do inverno, quando as ondas
se erguem em promontórios, despedaçando-se de
encontro ás ribas e o vento rebenta da barra,
bramindo e galopando ao longo da vasta planície
ondulante, como um chacal esfaimado, os velhos
pescadores, assentados á lareira, contam á famí-
lia, agrupada na muda attitude devota dos audi-
tórios ingénuos, a legenda d'aquelle pobre rei
80
desthronado, que atravessou a villa apedrejado
pelos homens e escarnecido pelas mulheres.
Outros, mais enfronhados em historia, porque
Ih 'a houvesse ensinado o sr. padre prior, citam,
desvanecidos, o nome de Vasco da Gama, orgu-
lhando-se de terem nascido na terra que serviu
de berço ao glorioso navegador.
— O apedrejado não foi D. Miguel, emendou o
Manuel Cherne, defendendo os créditos da terra
e respondendo ao visinho, que pela centésima
vez estivera escabichando no escandaloso episodio.
Contou-me o sr. Raposo, filho do outro que
atirou a pedra, vocês sabem. Pelos modos, o Fran-
cisco Maria Raposo tinha sido castigado, em La-
mego, pelo general Lemos. Era sargento de mi-
lícias e deixara que um prezo lhe passasse o pé.
Vae d'ahi esperou o Lemos, quando elle saía da
casa do padre Galufo, ao lado do D. Miguel, e
zás, ferrou-lhe com um balazio.
— E a mulher? insistiu o visinho, empenhado
em exaggerar para os assombros do auditório, o
estupendo acontecimento de um rei, corrido á pe-
drada.
— A mulher, tornou o velho Cherne, cachim«
bando, e estendendo a mão descarnada e cabel-
luda sobre a cabeça loira do neto, agachado aos
seus pés, a mulher era uma alvoreada (doida, na
phraseologia alemtejana). Fez-se um silencio; no
fundo da noite escura e tempestuosa, cerrando-se
lá fora em espessas trevas, arrastando-se na lo-
brega desolação das tristezas sem conforto, o mar
resoou, cantando o seu requiem gemebundo.
— Vamos á ceia, Severina, disse o velho pes-
cador, levantando a cabeça encanecida e cravando
o olhar mortiço na filha, uma esbelta rapariga^
8i
alta e loira, que retirava n7esse momento das bra-
zas o tacho da sopa.
II
Havia dez annos que o Manuel Cherne enviu-
vara.
Encontrara a companheira agonisante, em uma
manhã de outono, ao recolher da pesca aos lin-
guados. Ficaram-lhe duas filhas : Maria Perpetua,
mulher de um gageiro, que nunca mais regres-
sara dos Brazis ; e Severina, uma creança de 15
annos, franzina, delicada e branca, como uma
poética descendente de lords.
— Uma dor d'alma, esta enfézadinha I lamen-
tava frequentes vezes o velho, sopesando o sacri-
fício imposto por uma boca, e comparando-o á
miséria de trabalho que se poderia esperar d'esse
pobre corpo anemico. Maria Perpetua, ralada de
saudades e esfalfada de mourejar de sol a sol,
caíra em uma tisica, que lhe ia minando lentamente
a vida.
O seu homem, ao abalar-se por esses mares
fora, deixára-lhe nos braços três creanças, Um mo-
cito e duas mocinhas ; mas a Maria Perpetua
via-se grega com a lida da casa, porque em vez
de três tinha cinco filhos, sendo o mais velho o
pae e o mais novo a irmã.
Luctou em quanto pôde ; afinal, quedou-se
pregada na cama, d'onde a levantaram para o
cemitério.
O Manuel Cherne estarreceu.
Que havia de ser d'elle, a contas com esses
quatro innocentes?
Quem lhe cuidaria do amanho da casa, em
quanto andasse pelas aguas dó mar ?
82
Quem lhe teria o almocinho quente, quando elle
recolhia de madrugada, transido de frio, depois
da pescaria no mar alto, sentindo pesar -lhe cada
vez mais os janeiros, que de anno para anno lhe
dobravam o tronco hercúleo e, não raro, lhe pa-
ralysavam o braço, outr'ora infatigável?
Com a ajuda da Senhora das Salas, advogada
dos pescadores de Sines, esperava ter forças, ape-
sar de velho, para ganhar o pão dos quatro po-
bresinhos.
Mas quem havia de remendal-os, de preparar
a comida e de acear o casinholo onde viviam ?
Um desgosto, que o acabrunhava, que o leva-
ria á cova, soluçava o velho, abraçado ao cadá-
ver da filha. Três dias depois,jfoi bater á porta
de uma visinha, a pedir-lhe que lhe olhasse pelos
pequenos, em quanto elle estivesse fora de casa.
Mas ao voltar da? pesca, a visinha saiu-lhe ao
encontro e referiu-lhe, com muitos gestos, que a
Severina se oppozera, que lhe dera mandado de
despejo, que lhe assegurara que de ninguém pre-
cisava, que lhe repetira que era já uma mulher e
que podia trabalhar.
Resolutamente, com uma força que ninguém
suspeitaria n'essa fraca rapariguinha, delgada co-
mo um junco, branca e fina como uma flor de
cera, a Severina chamou a si todos os encargos
caseiros e adoptou os três pequenitos, envolvendo-os
na ineftavel ternura, amparando-os com a doce e
cariciosa protecção maternal, de que só as mulhe-
res na terra possuem o irrevelavel segredo.
83
III
Aos 25 annos, a Severina attingira o pleno des-
abrochamento da sua delicada belleza lirial.
O trabalho desenvolvêra-lhe as formas hesitan-
tes, fortalecêra-lhe o sangue debilitado e tocara de
um fino colorido rosado o oval pallido doesse rosto,
recortado em alabastro, de que a caprichosa na-
tureza dotara, por engano, a filha de um pesca-
dor, e que faria o orgulho de uma patricia.
Nos seus grandes olhos azues, de uma transpa-
rência diamantina, reflectia a grave melanco-
lia inseparável d'esse profundo e insondável mar,
que de pequenina a embalara nas suas ondas
soluçantes. A boca, largamente fendida e leve-
mente descorada, esboçava, por vezes, o sorriso
triste e fugidio, característico das resignações
obscuras, dos holocaustos silenciosos, que o mundo
não suspeita.
Os sobrinhos, que ella ensinara a ler, quecreára
nos seus braços débeis, a quem ministrara o via-
tico da maternidade, disputado pela morte, ado-
ravam-a.
O Manuel Cherne chamava-lhe santinha, reven-
do-se, vaidoso, no seu casinholo, açeado, como um
palmito, deíeitando-se na sua velhice amimada,
cercada de todos os confortos, compatíveis com a
pobreza.
— Aquelle migalho de gente!... quem tal di-
ria ! . . . observava aos da companha, não perdendo
ensejo de encarecer os méritos da filha.
Os rapazes ouviam, compenetrados, louvando o
juizo da menina Severina.
O mais interessado era, sem nenhuma duvida,
o Silvestre.
84
O Silvestre nascera em Grândola e viera, ainda
pequenote, para Sines.
O pae, caseiro do conde de JB., quizera enca-
minhal-o para a lavoira.
Mas o rapaz morria-se pelo mar ; as ondas exer-
ciam no seu temperamento de marinheiro innato,
a suggestiva attracção de uma caricia voluptuosa,
offerecida por uma amante inaccessivel. Fugiu
para casa do tio ; e umbello dia, sem consultar nin-
guém, pediu ao Manuel Cherne que o levasse
na canoa, declarando-lhe que queria ser pesca-
dor.
Na tarde em que falleceu a Maria Perpetua, o
Silvestre fora offerecer os seus serviços á menina
Severina.
Uma súbita e irresistivel sympathia, feita de
intimas afinidades, apparentemente incompatí-
veis, declarou-se logo entre esse robusto mocetão,
bronzeado pelas brizas marítimas, e essa franzina
rapariga, esguia, delicada e branca, como uma es-
tatueta de marfim.
Em as noites de verão, prateadas pelo luar,
que punha nà larga superfície do oceano como
que uma doce e mysteriosa claridade de sonho, o
Silvestre vinha assentar-se no banco, fronteiro á
porta do Manuel Cherne, onde se reunia toda a
familia, e ahi conversava com a Severina.
Elle, tímido e desastrado, limitava-se a contar-
lhe os episódios da pesca, não ousando nunca al-
ludir ao segredo que havia tanto escondia no co-
ração, nem dizer uma só das palavras que lhe
affluiam convulsivamente aos lábios.
EUa, serena e despreoccupada, ouvia-o e sor-
ria-lhe com o seu meigo sorriso, vagamente dolo-
roso.
85
O velho, muito affeiçoado ao Silvestre, o seu
braço direito, conforme asseverava, esfregava as
mãos e de vaz em quando referia uma historieta,
allusiva aos bons tempos da mocidade, ou calcu-
lava os prós e contras da pescaria, que deveria
realisar-se no dia immediato.
Nos seroes de inverno, agrupavam-se todos á
beira da chaminé, onde crepitava a lenha, des-
pedindo clarões rubros que purpureavam as ca-
ras.
E lá fora, o furacão assobiava nas desertas lan*
ães e nas dunas, erguidas na sua espectral alvura
como um cortejo de. fantasmas.
A espaços, o mar estrondeava de encontro aos
rochedos, como uma salva de artilheria disparada
por uma armada invencivel, ou gemia, arrastando
na praia o seu longo soluço dilacerante.
Instinctivamente, as crianças coziam-se com a
parede ou embrulhavam-se nas saias da Severina,
como que a pedir-lhe protecção, e todos fallavam
a meia voz, cedendo á impressão de terror que
vinha da noute escura, do céo trágico, do mar
ameaçador e do vento ululante.
N'essas horas de inconsciente pavor, transmit-
tido pelos elementos sublevados, exercendo a sua
influencia dominadora sobre o miserável ser hu-
mano, Silvestre fitava insistentemente Severina e
recebia no peito, como uma caricia lenta, de uma
doçura divinamente consoladora, o seu olhar azul
e calmo, o seu meigo sorriso, vagamente doloroso.
IV
Que estranha tristeza annuviava o coração
d'essa bonita rapariga, ardentemente amada por
6
\
86
um bello mocetão, vigoroso, sadio e morigerado,
a ponto de servir de exemplo a muitos?
A nevrose das cidades, que faz da mulher actual
a eterna desequilibrada, a infeliz nostálgica, prea-
divinhada pelo compassivo Michelet, estenderia o
seu mórbido contagio até á humí!3e aldeia de Si-
nes, perdida nos confins da Extremadura ?
Severina era, como já disse, uma doente, dege-
nerado producto de um remoto atavismo, onde a
paciente investigação retrospectiva de Zola desco-
briria por ventura o documento humano] susce-
ptível de elucidar-nos esse ponto obscuro.
A mesma caprichosa natureza que lhe afidal-
gára as formas, inoculara n'essaalma singela e igno-
rante, alheia aos refinamentos da civilisação e
privada da fecunda cultura intellectual, um gér-
men de revolta.
Inconscientemente, Severina sentia pezar sobre
toda a sua vida uma lei illogica, que a desviava
de um futuro, vagamente ambicionado.
Adorava os sobrinhos, que creára como se fos-
sem seus filhos, estimava o pae, gostava do Sil-
vestre, comprehendia o inapreciável valor da
aífeição dedicada, silenciosa e inalterável que lhe
votava esse excellente rapaz ; a sua innata bon-
dade revelava-lhe, intuitivamente, todos os the-
zouros de boa e paciente ternura que existiam,
latentes, no coração do Silvestre ; sabia que a vida
d7elle se absorvia toda n'esse amor e que lh'a sa-
crificaria, se fosse preciso ; estremecia-o, queria-
lhe como a um irmão, admirava a força de res-
peito que o pobre rapaz impunha, heroicamente,
á intensidade do amor ; entretanto, nenhum des-
ses alfectos lograva preencher o insondável vácuo
da sua alma, inquieta e perturbada.
87
Severina esperava sempre, sem saber porque,
sem o confessar a si própria, alguma cousa, que
não chegava nunca.
Seria um amor lendário, personificado, como
no Rêve, em um príncipe descendente de cardeaes ?
Mas se ella nem sequer suspeitava a existên-
cia das paixões românticas, que inspiram os gran-
des artistas.
Seria a riqueza ; seria a satisfação da vaidade,
o iman que exerce a sua imperiosa attracção so-
bre todas as mulheres ?
Mas a singela filha de um pescador não podia
conhecer o valor do oiro, applicado ao voluptuoso
epicurismo da vaidade.
Ás vezes, ao cair da noite, Severina gostava
de divagar na praia, acompanhada dos sobrinhos.
Emquanto as creanças rebolavam na areia,
rindo, saltando, correndo ao desafio, ella queda-
va-se immovel e pensativa, perfilando o seu vulto
esguio na clara luz argêntea do luar, que se alas-
trava na praia.
O seu obscuro instincto de artista acordava
vagamente em face da noite estreitada e do largo
mar ondulante. O olhar de Severina percorria a
linha alvejante das casas, desdobrando-se, como
um collar de pérolas, sobre o crystal das ondas ;
detinha-se no Revelim, o colosso de granito, re-
saltando com o seu contorno anguloso do azul dia*
phano ; em seguida, perdia-se na immensidade
do oceano, esfumado ao longe em um penumbroso
fundo de aguarella e absorvia-se na visão do in-
finito, sentindo confusamente, sem ter consciência
da impressão que a agitava, da admiração que a
possuía, o indefinido terror do incognoscivel.
Voltava-se depois para o Pontal, curvado para
88
o abysmo, como uma gigantesca esphinge, e fitava
longamente as anfractuosidades do rochedo, immer-
gindo da agua espelhante e recortando na luz opa-
lina do luar a sua negra silhoetta de monstro pe-
treficado.
E nessas horas de silenciosa abstracção, Seve-
rina esquecia o Silvestre, a sua aldeia, a condi-
ção humilde em que nascera, o ignorado cantinho
da terra em que deveria morrer e viver.
•A voz dolente das ondas, desenrolando-se na
praia e quebrando-se de encontro ás ribas, soava-
lhe ao ouvido como um rythmo fantástico que a
arrebatava em espirito para uma região desco-
nhecida. Pungia-a o nostálgico anceio, o torturante
desejo de uma ignorada felicidade, que ella não
sabia onde existia nem de que elementos era for-
mada, mas que a chamava de longe, fugindo-lhe
sem cessar.
Então Severina, tremia, estendia os braços, na
attitude de quem supplica, e dos seus límpidos
olhos azues, franjados de compridas pestanas, des-
prendiam-se duas lagrimas, que lhe rolavam nas
faces pallidas.
— Tia, gritava um dos três pequenitos, tenho
frio !
— Cala-te, choramigava o mais novo, deixa-me
brincar.
Severina corria para as creanças, abria-lhes os
braços, apertava-as ao peito e beijava-as carinho-
samente, deleitando-se no amoravel contacto des-
sas três cabecinhas, que afugentavam a visão ob-
cecante.
89
N'esse domingo de dezembro, o Silvestre, ves-
tido de ponto em branco, viera procurar o Ma-
nuel Cherne.
A Severina tinha ido á missa ; as crianças cor-
riam atraz dos patos e gallinhas, flanadores habi-
tuaes das estreitas ruas de Sines ; o velho pesca-
dor, assentado no banco fronteiro á casa, aque-
cia-se ao sol.
— Olá, meu rapazola, bradou o Manuel, ca-
chimbando, como tu vens catita !
Timidamente, o Silvestre approximou-se ; tirara
o chapéo e com um lenço encarnado limpava a
testa, inundada de suor.
— Homem, notou o Manuel, piscando os olhos,
pois tu suas com este frio de levar coiro e ca-
bello?
Fez-se um silencio. O Silvestre assentára-se no
banco, sem proferir palavra. O velho pescador
continuava a fital-o, rindo-se maliciosamente.
O sol nimbava-os, avivando-lhes a cor argilosa
e imprimindo-lhes o firme desenho rectilíneo de
um grupo de terra cota.
E no amplo espaço, vaporisado por uma ténue
neblina que azulejava os longes, adelgaçando-os em
uma fluidez aquática, o mar rugia lamentosamen-
te, executando o seu requiem gemebundo.
— Não queres esperar pela Severina ? perguntou
o velho ao Silvestre, que se levantara na mesma
attitude taciturna e contrafeita, enrolando as abas
do chapéo e cravando os olhos no chão.
Aquelle nome, que resoára até ao mais in-
timo do seu ser, respondendo a todos os sen-
timentos que o preoccupavatn, foi a chave mys-
90
teriosa que lhe descerrou a boca, obstinadamente
muda.
— Tio Cherne, começou, tartamudeando, eu vi-
nha dizer- lhe. . .
— Acaba, homem, acudiu o outro, salivando,
tens a lingua pregada ao céo da boca ?
— Sim, eu vinha pedir-lhe. . . e o Silvestre he-
sitou, não se atrevendo a formular o audacioso de-
sejo que alli o trouxera.
— Valha-te Deus, volveu o Cherne, batendo-lhe
no hombro, tu acobardas-te de fallar commigo?
— Não é isso, tio Cherne, mas como o outro
que diz, sim, vossemecê bem percebe. . .
— Percebo que és um pedaço d'asno, rematou
o velho, soltando uma gargalhada.
— Pois lá vae, exclamou o Silvestre, desempe-
nando a estatura, como um homem disposto a af-
frontar um perigo mortal. Eu gosto da menina Se-
verina e vinha perguntar-lhe se seria do seu agrado
que nos casássemos.
O pedido não surprehendeu o Manuel Cherne.
Havia muito que elle notara a sympathia do Sil-
vestre. Por vezes, sorrira-lhe a idéa d'essa união,
que respondia aos seus mais secretos votos.
Com tanto que a rapariga não se opponha, con-
cluía, ponderando nas exquisitices da filha.
Ergueu-se de golpe e abraçando o Silvestre,
prometteu-lhe que fallaria á Severina.
Ella ouviu o pae e com o seu meigo sorriso do-
loroso respondeu, que casaria com o Silvestre,
se tal era a vontade de ambos.
Aprazou-se a ceremonia para o mez de S.
João.
O Silvestre parecia um ébrio, cambaleava, fal-
lava só, ria sem motivo e tinha infantilidades que
91
contrastravam com a musculosa estructura (Tesse
corpo de athleta, fundido em bronze.
VI
Aquella lua nova do mez de janeiro dera agua
pela barba aos pescadores.
O vento e o mar batiam-se desesperadamente,
empenhados em uma lucta titânica. Logo ao fechar
da noite, a espessa cerração embrulhava as on-
das em uma mortalha de largas dobras roçagan-
tes. E o mar crescia em acastellados vagalhões,
ameaçando devorar Sines.
Por espaço de muitos dias, os pescadores não
se aventuraram a ir ao mar.
O combate era impossível entre o homem, mí-
sero átomo perdido na immensidade, e o monstro,
indomado e indomável, prompto a engulil-o.
O Manuel Cherne ficára-se no casinholo, a re-
mendar as redes, emquanto o Silvestre aprovei-
tava a primeira aberta^ para se fazer ao largo.
Amanhecera um dia chuvoso e encarvoado.
Do céo baixo, acolchoado de nuvens pardacen-
tas, descia lentamente a lúgubre tristeza das ca-
tastrophes eminentes.
Sentia-se o convulsivo dilaceramento de uma
agonia tumultuosa n'esse oceano embravecido, ca-
vado de medonhos vórtices, alteando-se, por ve-
zes, em montanhas de espuma, que pareciam
lamber as nuvens, vergastado pelo vento da tem-
pestade que lhe arrancava rugidos cavernosos.
A's duas horas da tarde, a cerração augmen-
tára, confundindo a terra e o mar na mesma tinta
aquosa, cobrindo-os com o mesmo sudário plúmbeo,
apertando-os na mesma cinta de ferro sulcada,
92
a espaços, pela cbamma azulada dos relâmpagos.
— O lobo anda assanhado ! comraentára o
Cherne para o vizinho, que viera pedir-lhe uma
pitada de rapé.
O outro abanara a cabeça, compenetrado, es-
boçando um largo gesto de acabrunhamento.
Ao anoitecer, correu em Sines que um vapor hes-
panhol, procedente de Gibraltar, viera descair so-
bre os rochedos da Perceveira, erguidos entre o
farol e o forte.
Ao clamor dos náufragos, responderam os gritos
dos pescadores ; mas uns e outros perderam-se no
estrondear das ondas; despedaçando-se de encon-
tro ás ribas.
O Silvestre saltara para a canoa e remara, de-
sesperadamente, na direcção da Perceveira.
Immergindo na densa cerração, a carcassa do
vapor desenhava-se vagamente, como um ponto
negro perdido no infinito do céo e das aguas.
A canoa do Silvestre, sacudida pelas ondas,
batida pelo sul, revoluteava ás cegas, sem gover-
no, como uma gaivota desazada. De instante a
instante, despenhava-se no abysmo e desappare-
cia, para reapparecer em seguida, boiando á tona
d'agua, arrastando-se ao acaso n'esse vasto pélago
enfurecido.
De súbito, um pé de vento voltou-a.
Então o Silvestre descançou alguns instantes,
deitado ao lume d'agua.
Em seguida, invocou a Senhora das Salas, pro-
nunciou o nome de Severina e com os seus bra-
ços musculosos cortou as vagas, nadando vigoro-
samente.
O vento amainara ; o nevoeiro abrira uma cla-
reira, àtravéz da qual se avistava uma nesga de
93
céo azul, doirada pela tremula scintillaçâo de uma
estrella.
Esporeado pelas ondas, o negro esqueleto do
vapor cambaleava, estorcendo-se em deslocações
fumnambulescas. ,
O Silvestre nadava sempre, tentando approxi-
mar-se da praia.
N'essa occasião, sentiu-se empolgado pela mão
crispada de alguém que pesava sobre os seus
hombros, como uma massa inerte.
Reunindo as forças que começavam a atrai-
çoal-o, levantou a cabeça, aspirou o ar que lhe
faltava, e sem tentar fugir ao mortal abraço d'esse
corpo de afogado, que se lhe collára á pelle, con-
tinuou a nadar. Mas a vista obscurecia-se-lhe, os
braços e as pernas, inteiriçados, perdiam a agili-
dade e não deslocavam a agua, que o arrastava
lentamente para o trágico sorvedouro.
De repente, soou-lhe aos ouvidos, como um lon-
ginquo zumbido, o murmúrio de vozes, fechou os
olhos e mergulhou nas trevas, que o cobriram,
apagando-lhe a consciência da vida.
VII
Chegara a primavera, lavando os céos brumo-
sos e mosqueando as charnecas e o pinhal com
viçosos ramilhetes de rosmaninho, malmequeres e
giesta.
A renovação começava a agitar surdamente os
flancos da terra, que se abriam em sulcos fecun-
dos ao contacto da charrua.
O mar tinha a doçura enternecida do convales-
cente que acaba de debater-se nos paroxismos
de uma agonia tumultuosa.
94
José de Lumbrelas, salvo pelo Silvestre, viera
com elle para casa do Manuel Cherne.
Severina tratara desveladamente dos dois ho-
mens, prodigalisando-lhes todos os cuidados de
uma enfermeira solicita, infatigável e intelligente
como poucas.
A gente da canoa, que acudira a tempo de pes-
car os dois náufragos, fora largamente retribuída
pelo hespanhol, um esbelto rapaz de 25 annos, en-
genheiro de pontes e calçadas, que visitava Portu-
gal em viagem de estudo.
Quinze dias depois do naufrágio, José de Lum-
brelas fora hospedar-se para casa de um negociante
inglez, correspondente do pae. E alli se deixara
ficar, encantado, affirmava elle, com o aspecto,
desartificiosamente pittoresco, d'esse burgo de pes-
cadores, adormecido no seio do oceano.
Ao entardecer, Lumbrelas ia ver os seus ami-
gos, os seus salvadores, conforme os designava.
Brincava com as crianças, que lhe chamavam
o sr. Pepe, conversava com o Manuel Cherne, per-
guntava pelo Silvestre e, por vezes, os seus gran-
des olhos pretos, que lhe illuminavam a tez mo-
rena, sombreada pela barba á Guise, cravavam-se
ardentemente em Severina.
A filha do pescador ouvia>o silenciosa, enlevada
na sonoridade d'essa voz de homem finamente
educado, exprimindo no viril idioma de Cervantes
idéas elevadas, phrases de uma estranha graça
suggestiva.
Só, no seu pequenino quarto, Severina via-o, fal-
lava-lhe, confiava-lhe a torturante historia da sua
mocidade, perseguida por uma visão allucinadora ;
via no escuro da noite esses dois olhos negros,
profundos como o oceano, que a deslumbravam.
95
O engenheiro começara a fallar portuguez, ex-
pressamente, explicava elle, para ser entendido
pelos seus amigos.
Pouco a pouco, foram-se amiudando as visi-
tas.
Pepe ficava- se dias seguidos em casa do Ma-
nuel Cherne, captivo do encanto de Severina, en-
volvendo-a na irresistível fascinação do seu amor,
provando-lh?o a cada instante em attenções de
uma delicadeza reservada e por isso mesmo du-
plamente perigosa.
Por esse tempo, o Silvestre, que passava sema-
nas inteiras no mar, apparecendo raras vezes em
casa da noiva, — sempre taciturno e cabisbaixo, - —
veio participar ao Manuel Cherne que resolvera
ir tentar fortuna ao Brazil, acceitando para o ef-
feito a proposta que lhe fizera o capitão de um
brigue hollandez, ao engajal-o para moço de
bordo.
O velho tentou dissuadil-o, recordou-lhe a pro-
jectada união com a filha, encarregou Severina
de convencel-o.
Mas o Silvestre insistiu no seu propósito, pre-
textando que só casaria quando pudesse offerecer
á menina Severina um marido, que lhe desse a
estimação que ella merecia.
Quatro dias depois largava de Sines, direito a
Lisboa, o brigue que levava o Silvestre, avistada
família Cherne, agrupada na praia, acenando-lhe,
pequenos e grandes, o adeus saudoso, que punha
lagrimas nos olhos de todos, emquanto o pobre
rapaz, voltado para a terra onde lhe ficava para
sempre morta a primeira e a única felicidade da
sua vida, chorava convulsivamente.
96
VIII
Muito antes de Pepe lhe declarar que a ama-
va, Severina comprehendera que se operara na
sua vida um súbito reviramento, que a transfigu-
rara.
A sua alma, doentiamente perturbada, repou-
sara afinal na divina realisação do sonho, até ali
inaccessivel.
A visão huinanisara-se ; o Deus ignoto viera,
atravez das ondas, ao seu caminho, personificado
n'esse homem bello como um principe, eloquente
como um poeta, delicado e meigo como um ar-
chanjo.
No seu coração, pungido de secretos anceios,
fizera-se uma paz ineffavel e fulgira uma luz re-
demptora.
E desde então, Severina vivia em um mundo á
parte, absorta na muda adoração do seu vivo ideal,
estranha a todos os desencantos da terra, alheia
a todos os obstáculos que a distanciavam do ente
amado, esquecendo a dor da eterna separação, sus-
pensa sobre a sua cabeça, como uma sinistra
ameaça.
Uma manhã de maio que o Manuel Cherne
aproveitara para a pesca dos linguados, José de
Lumbrelas veio ler a Severina uma carta do pae,
em que o velho negociante ordenava ao filho que
partisse sem demora para Barcelona, onde um ne-
gocio urgente solicitava a sua presença.
— E o senhor obedece-lhe? perguntou Seve-
rina, lívida como uma defunta.
— Que remédio ! volveu elle, fitando-a apaixo-
nadamente ; depois, curvando-se, dominando-a sob
97
a imperiosa fascinação do olhar, murmurou-lhe ao
ouvido : Venha commigo para Hespanha ; amal-a-
hei sempre, sempre !
— Sim ! balbuciou Severina, na inconsciência
da commoção que a prostrava inerte, que a cegava
e entontecia,.
Então elle beijou-a doidamente, supplicando-lhe
que o esperasse ás 11 horas, explicando-lhe que
n'essa mesma noite partiriam para Lisboa.
Durante as horas que se seguiram, Severina
moveu-se como uma somnambula, indifferente a
tudo que a rodeava.
A's 11 horas, José de Lumbrelas fez o signal
convencionado.
Severina ergueu-se na sua pallidez espectral e
abriu automaticamente a porta, absorta no mes-
mo extasiante sonho, atravéz do qual pronunciara
a palavra que deveria decidir de todo o seu des-
tino.
Lá fora, o luar argentava a linha das casas, a
massa escura dos pinheiros e o perfil granítico dos
rochedos, e na doce e religiosa serenidade da noite
estrellada o mar cantava o seu requiem geme-
bundo.
Elle enlaçou-a nos braços sofregamente e trans-
pôz o limiar do humilde casinholo, onde o velho
pescador e as três creanças dormiam socegada-
mente.
De repente, uma fresca voz de creança gritou :
— Tia Severina, deita- te ao pé de mim, tenho
medo!
Ella estremeceu, sacudida pela violenta reac-
ção de todo o seu organismo, acordado á impe-
riosa voz do dever.
Recuou aterrada, esfregou os olhos e levantando
\y
98
o braço na direcção da estrada que se desenro-
lava ao longe, disse para o hespanhol, que a
olhava estupefacto :
— Pode retirar -se. Eu não deixo aquelles inno-
centes, os meus filhos ! A mãe, accrescentou, le-
vantando para o céo os seus limpidos olhos azues,
húmidos de lagrimas, a pobre mãe não m'o per-
doaria.
E fechou-lhe a porta, como se fecha a pedra
de um tumulo sobre os restos inanimados de um
morto.
ALBERTO TELLES
A noite de 3 de setembro de 1758
O crime existiu. Os tiros eram para el-rei ;
e os que padeceram foram réos.
Rebello da Silva — Lagrimas e Thesou-
ros, pag. 57.
A noite de 3 de setembro de 1758
Na manha de 4 de setembro de 1758 espalhou-
se em Lisboa um boato atterrador. Dizia-se, a
principio, que na véspera á noite tinham dispa-
rado uns tiros contra Pedro Teixeira, creado par-
ticular do rei ; mas depois correu com insistência
que haviam sido dados em D. José I, e foi esta
ultima atoarda a que por fim prevaleceu.
A voz geral attribuiu logo aos Tavoras o sa-
crílego attentado, e essa família da primeira no-
breza, que tinha o seu brazão de armas na sala
dos Cervos do paço real de Cintra, era então bas-
tante numerosa, pois d'ella faziam parte os mar-
quezes do mesmo titulo, pae e filho, as marque-
zas, D. Leonor e D. Tbereza, — José Maria de
Távora e suas irmãs a marqueza-de Alorna e a
viscondessa de Athouguia; — a duqueza de Aveiro
e a condessa da Ribeira Grande, o cónego José
Maria de Távora, Manuel, João e Nuno Gaspar
de Távora, os quaes todos quatro estiveram en-
cerrados no forte da Junqueira, onde um d'elles
(João) acabou os seus dias e foi sepultado.
O facto de se terem dado os tiros no rei é, en-
tre todos os lances d'esse mysterioso drama, o pri-
7
402
meiro que foi posto em duvida, tendo sido lançado
á conta de enredos e manejos de Sebastião José
de Carvalho e Mello, depois conde de Oeiras e
marquez de Pombal, a quem o partido da aristo-
cracia e dos jesuítas julgou conveniente mimosear
com a invenção de uma pavorosa, como hoje di-
ríamos, para se assenhorear ainda mais do animo
do rei, abatendo-o e dominando-o pelo terror. To-
davia, quando não existissem os importantes do-
cumentos, que vamos transcrever em parte, e ou-
tros testemunhos contemporâneos dignos de fé,
bastaria para comprovar esse triste successo o
ofíicio em cifra do ministro de França em Lisboa,
M. de Saint-Julien, o qual, transmittindo ao seu
governo no dia 12 de setembro a noticia do atten-
tado, havia de certo obtido as suas informações
de fonte limpa.
Esse ofíicio, conforme o extracto publicado pelo
visconde de Santarém a pag. 123 do tomo vi do
seu Quadro elementar das relações politicas de
Portugal, é como se segue :
«... em cifra lhe diz que era com horror que
dava parte da verdadeira causa d'aquella doença,
sobre a qual se guardava o maior segredo, sendo
que a supposta contusão era uma ferida no braço
e espádua direita occasionada por dois tiros de
bacamarte que atiraram á carruagem de el-rei. —
Que, segundo se dizia, eram seis os assassinos, bem
que fossem só três os bacamartes ; o primeiro
destinado para o boleeiro não fez fogo ; os dois
outros foram disparados sobre a carruagem, que
ficou cravada de balas. Os assassinos estavam a
cavallo. »
Sobre o caso dos tiros havia duas testemunhas
de vista: o sargento-mór Pedro Teixeira, confi-
103
dente do rei, a quem acompanhava na referida
noite dentro da sege, e o boleeiro Custodio da
Costa.
Ambos foram inquiridos no palácio da Ajuda
a 2 de janeiro de 1759 pelo desembargador Pe-
dro Gonçalves Cordeiro Pereira, na presença
dos três secretários de estado Sebastião José de
Carvalho e Mello, D. Luiz da Cunha e Thomé
Joaquim da Costa Corte Real.
Pedro Teixeira «disse que, vindo elle testemu-
nha na carruagem com el-rei nosso senhor na noite
infaustissima de que se trata para entrar pela porta
da quinta de Baixo ('palácio de Belém) , que está
junto á travessa do Guarda-inór da Saúde, e pre-
tendendo abrir a dita porta achara que lhe não
era possível em razão de que haviam entupido o
logar por onde a chave entra na dita fechadura,
de tal sorte que n'ella não poude nunca intròdu-
zir a referida chave ; que, porém, fazendo alim-
par a dita fechadura, e sahindo sua magestade
com elle testemunha pela referida porta tomara
pela calçada que d'ella vai por entre o muro da
referida quinta e as casas e terra do official maior
da secretaria de estado António José Galvão, indo
a sege a passo até á esquina e arco que íicam ao
norte das casas da quinta do Meio ou pateo das
Vaccas ; que, depois de haver dobrado a dita es-
quina reparou em que o boleeiro Custodio da Costa
apressara inesperadamente os passos dos referidos
machos ; que, tendo avançado quarenta ou cin-
coenta palmos pelo caminho acima, ouvira um gran-
de estrondo de tiros ; que logo successivameute se
sentira el-rei nosso senhor gravemente ferido ; que
elle testemunha percebera que os mesmos tiros o
tinham offendido, e que o sobredito boleeiro se
104
principiou a queixar de que se achava também
com a grave lesão que depois se manifestou,
achando-se o sobredito boleeiro todo crivado de
grossa munição ; que successivamente se achou o
dito senhor com o horrorosíssimo estrago que elle
testemunha presenciou na mesma forma que consta
da certidão do cirurgião-mór do reino António
Soares Brandão,^ a que se refere: e que, emfim,
examinando depois por onde haviam penetrado
os referidos tiros, viu elle testemunha que foram
disparados contra o espaldar da carruagem que
transportava o dito senhor, abrindo n'elle dois bu-
racos muito grandes e desformes, e arruinando
quasi todo o espaldar com a muita copia de mu-
nição que n'elle penetrou. E acrescentou que, ao
tempo em que sua magestade se sentiu ferido, con-
siderando com a inseparável serenidade e heróica
constância do seu augusto animo que todos os
passos que desse para o seu real palácio o po-
riam mais distante do cirurgião-mór, que devia
cural-o, mandando voltar pela calçada grande que
está por fora dos quartéis do regimento de in-
fanteria e das reaes cavallariças, passou a casa
do dito cirurgião-mór, onde depois de haver re-
cebido com religiosíssima piedade a absolvição
sacramental permittiu que se descobrissem as fe-
ridas e com ellas o horrorossissimo estrago, que
todos deploramos, para se lhe applicarem, como
applicaram, os próprios remédios, o que tudo elle
testemunha disse que sabia por ter visto e pre-
senciado tudo na referida forma.»
O boleeiro Custodio da Costa foi em seguida
interrogado sobre os factos mencionados no de-
poimento anterior, os quaes plenamente confirmou,
dizendo «que todos passaram na verdade assim
105
como no mesmo depoimento se acham declarados,
e que a elles se refere ; sendo todos os referidos
factos escriptos assim como passaram na verdade,
que elle testemunha presenciou por ser o mesmo
idêntico boleeiro que na infaustissima noite de 3
de setembro próximo passado guiava a sege em
que el-rei nosso senhor passava da quinta de Baixo
para o seu real palácio. » Só acrescentou i<que o
motivo que teve para accelerar o passo dos ma-
chos que conduziam a sobredita sege, ao tempo
em que esta passava do arco que estava da esquina
das casas da quinta do Meio para o norte, foi por
haver visto sahir três homens a cavallo debaixo
do referido arco, um dos quaes desfechou contra
elle testemunha um tiro que elle testemunha viu
que errara fogo, sendo quasi á queima roupa, dis-
parado para matar a elle testemunha, que por isso
procurou salvar a real pessoa de sua magestade
com os passos apressados que deu, sem comtudo
haver declarado ao dito senhor o motivo d'aquella
pressa : e que um pouco mais acima lhe parecera
ver uns vultos a cavallo da parte do muro novo,
ao tempo em que se dispararam os referidos ti-
ros, o que elle testemunha sabe pelas razoes que
dito tem.»
Cabe aqui naturalmente perguntar que grau de
credito merecem esses depoimentos? Foram acaso
forjados para fins sinistros da politica sanguiná-
ria do ministro Carvalho, ou serão, com efFeito,
a fiel expressão da verdade ? A esses quesitos não
ha resposta mais cabal do que as declarações fei-
tas pelo duque de Aveiro e por outro assassino,
António Alvares Ferreira, . nenhum dos quaes foi
posto a tratos, como se mostra do processo. Por
ellas se verá, não só até que ponto confirmam os
106
depoimentos de Pedro Teixeira e de Custodio da
Costa, mas também que os ampliam e completam
de forma tal que se torna fácil recompor a horrí-
vel scena, passada nas trevas da noite, em sitio
ermo, entre uma carruagem em que el-rei voltava
de uma aventura amorosa, como de costume, na
companhia de um creado particular, e quatro as-
sassinos, postados em duas embuscadas, estando
dois a pé e dois a cavallo.
A dama com quem D. José i se encontrava em
todos os domingos á noite no paço de Belém era
a marqueza de Távora, moça, D. Thereza, sendo
elle sempre tão pontual nassas entrevistas que
nem faltou á d'aquelle dia, não obstante ser o ter-
ceiro do nojo em que estava encerrado pelo falle-
cimento de sua irmã, a rainha de Hespanha.
Vejamos agora o que disse o duque de Aveiro :
«Respondeu que por descargo da sua consciên-
cia declarava que haverá três mezes pouco mais
ou menos mandara chamar por um guarda-roupa,
que actualmente serve a elle respondente, por
nome Manuel Alvares, a um irmão d'este, chamado
António Alvares, morador em Alfama ou nos Oli-
vaes, e que vindo o dito António Alvares falar
a elle respondente lhe propuzera ser elle o que
commettesse o sacrílego insulto, debaixo da ex-
pressão de que havia atirar a uma sege que havia
passar pela calçada que vae da quinta do Meio
para o paço de Nossa Senhora da Ajuda; que o
dito António Alvares se encarregou da referida
diligencia, dizendo comtudo que elle a não podia
executar por si somente : que por isso falou o dito
António Alvares a um seu cunhado, chamado Jo-
sé Polycarpo de Azevedo, para associar nos referi-
dos tiros, que elle respondente mandara dar na so-
107
bredita sege. Que unindo-se ambos receberam d'elle
respondente dezeseis moedas por uma vez, qua-
tro por outra vez, e vinte moedas por outra ; que
por este premio somente executaram o referido
mandato, descarregando os tiros de que recebeu
a offensa el-rei nosso senhor ; que depois de ha-
verem dado os referidos tiros fugiram logo nos
cavallos que haviam comprado para este efFei-
to, sem que elle respondente os tornasse a ver
n^quella noite : que, mandando elle respondente
chamar dois dias depois d'aquelle infaustissimo
successo o mesmo aggressor António Alvares*
e vindo elle, com effeito, de noite a casa d'elle
respondente o vira então pela primeira vez de-
pois de haver sido commettido o referido in-
sulto ; que então lhe contara os eífeitos qne ha-
viam tido os sacrílegos tiros, recommendou-lhe o
segredo d'aquelle horrendo caso ; que os motivos
que teve elle respondente para se precipitar em
um tão inaudito e tremendo absurdo foram a ira
e a paixão que desordenadamente concebera con-
tra a real e sacratíssima pessoa de el-rei nosso
senhor por lhe haver impedido com as suas reaes
ordens o vencimento da causa das commendas, que
tinham andado na casa de Aveiro, e a celebração
do matrimonio que tinha ajustado com licença de
sua magestade entre o marquez de Gouveia, filho
d'elle respondente, e D. Margarida de Lorena, fi-
lha dos duques de Cadaval.»
Confessou também que estivera debaixo do arco
contíguo ás casas da quinta do Meio «esperando
a pé associado de um seu creado, João Miguel ;
sendo elle respondente quem disparou o tiro que
errou fogo contra o boleeiro que conduzia sua ma-
gestade na sege, a que logo depois se atirou.»
108
•
António Alvares Ferreira, natural da fregue-
zia de Negrellos, no arcebispado de Braga, tinha
quarenta annos de edade e era feitor do Jardim
do Tabaco.
Eis a sua tocante e sincera confissão :
«Respondeu, pondo-se de joelhos com as mãos
postas, que elle queria descarregar a sua con-
sciência e salvar a sua alma, dizendo toda a ver-
dade, e que esta era :
«Que antes da fatal noite em que succedeu
este caso, três mezes pouco mais ou menos, man-
dara o duque de Aveiro chamar a elle respon-
dente por um seu irmão, chamado Manuel Al-
vares, e que importava muito lhe falasse logo.
«E como elle respondente tinha servido ao dito
duque onze ou doze annos, como tem dito, na oe-
cupação de seu guarda-roupa, lhe veiu logo falar.
E o dito duque o levou para uma barraquinha
nas terras defronte do jardim das suas casas e
ahi lhe disse : «Que elle respondente o tinha ser-
vido tantos annos, e tinha conhecido que elle res-
pondente era de segredo e fidelidade, e assim que
fiava d'elle respondente um grande segredo, e que
só d'elle o fiava; que, se o revelasse, corria evi-
dente perigo a vida d'elle duque e a d' elle res-
pondente, e que vinha a ser : — que a elle duque
o andavam esperando para o matarem e que já
lhe tinham atirado um tiro e o tinham errado, e
que assim, para se livrar doeste perigo, queria
que elle respondente o acompanhasse para matar
a, quem o queria matar a elle duque, e assim que
ambos haviam ir em uma sege com duas espin-
gardas curtas esperar uma sege que havia des-
cer pela calçada da Ajuda, e que haviam espe-
rar em cima no largo acima das casas do ex.mo
109
secretario de estado, o sr. Sebastião José de Car-
valho e Mello, e que ahi haviam de esperar ambos
a um tempo a dita sege, em que vinham duas pes-
soas.» — E logo lhe tornou a dizer — que o irem
em sege podia ser perigoso, que o melhor era irem
ambos de cavallo ; e assim que elle respondente
comprasse dois cavallos, um para elle duque e ou-
tro para elle respondente, para o que o mandou
esperar em quanto chegava a casa, e voltando lo-
go lhe deu dezeseis moedas de ouro para comprar
os ditos dois cavallos. E, com effeito, elle respon-
dente, comprara os dois cavallos, um por quatro
moedas a um homem chamado Luiz da Horta, que
mora no pateo do Soccorro, e outro a um cigano
chamado Manuel Soares, que mora em Marvilla,
por outras quatro moedas. E agora lhe lembra
que o primeiro custou quatro moedas e meia.
eE que, vindo elle respondente com os dois ca-
vallos na mesma semana em que o duque lhe fala-
ra, este montara em um e elle respondente em ou-
tro, e lhe dissera que lhe queria ir mostrar a sege.
E, com effeito, ambos foram esperar no sitio que tem
declarado, onde estiveram até ás dez horas e meia,
e que, como não passara a sege que esperavam,
se foram ambos embora. E que d'essa vez não le-
varam armas algumas. E que, passados três ou
quatro dias, tornaram a pé ao mesmo sitio para o
mçsmo effeito do duque lhe mostrar a sege a elle
respondente ; que também foram sem armas e que,
esperando até ás mesmas horas, não passara a dita
sege, e da mesma sorte se recolheram. E que de-
pois lhe dissera o dito duque a elle respondente
que d'aquella forma não faziam bem, porque elle
duque era muito conhecido, que o melhor era di-
«10
zer elle respondente a seu cunhado José Polycarpo
de Azevedo que lhe fosse falar a elle duque, que
como também era de segredo e com resolução
ambos podiam fazer bem aquella diligencia. E,
com effeito, elle respondente dera o recado ao dito
seu cunhado, da parte do dito duque e lhe dissera
o para que era. E o dito seu cunhado viera falar
com o duque e este lhe dissera o mesmo que lhe
tinha dito a elle respondente. E se ajustaram a
irem todos três para lhes mostrar e verem e co-
nhecerem a dita sege. Mas que, chegando acima
das terras e defronte do pateo do dito ex.mo sr. se-
cretario de estado, ahi mandou o duque a elle res-
pondente que ficasse com os cavallos, e elle foi
mais o dito José Polycarpo ao mesmo sitio, e ahi
então disseram que tinha passado a sege que o dito
seu cunhado ficou conhecendo.
«E que depois fora elle respondente e mais o
dito seu cunhado muitas vezes, que seriam doze
ou quinze vezes, fazer que iam esperar a dita
sege, e que, supposto algumas vezes a viram pas-
sar, não quizeram atirar, e iam sempre dar parte
ao dito duque que nao tinha passado.
a Até que ultimamente em um domingo, segun-
do lembrança d'elle respondente, lhe dissera o di-
to duque que n'essa noite certamente havia pas-
sar a dita sege, que fossem elles sem falta porque
elle duque também havia ir. E, com effeito, foram,
e o duque não toi. E elle respondente e o dito seu
cunhado estiveram esperando acima da quinta do
Meio da banda das terras, junto ao muro que es-
tava por acabar, e ahi passara a dita sege a tem-
po que já tinham dado onze horas da noite, e
disparando ambos ao mesmo tempo as espingar-
Ill
das nas costas da sege se retiraram a correr pe-
las terras abaixo direitos á travessa do Guarda-
mór, e mettendo-se na rua direita d'este logar se-
guiram para Lisboa, por signal que quando de-
ram os ditos tiros tinha passado Bento António,
e ainda o vieram encontrar quasi no meio do
muro da quinta. E que, passados dois dias, viera
elle respondente falar ao dito duque, e este, sem
elle respondente lhe dizer cousa alguma, lhe dis-
sera que aquillo não prestara para nada, por-
que tinham atirado ao meio, e não tinham chega-
do ás portinholas da sege com as pistolas, como
elle duque lhes tinha dito. E elle respondente se
desculpara, dizendo-lhe que quando atiraram com
as espingardas fora a tempo que passara gente,
causa porque não foram com as pistolas á sege.
Ao que lhe respondera : «Está feito, está fei-
to».
Quanto ao outro assassino, José Polycarpo de
Azevedo, ninguém ignora que elle não só não foi
preso em 14 de dezembro na quinta do duque de
Aveiro em Azeitão, por não ter sido ainda sequer
suspeitada a sua cumplicidade, e não ir portanto
o nome d'elle na relação que levava o desembar-
gador encarregado de effectuar a captura de va-
rias pessoas d'aquella família, mas também que
nunca poude ser agarrado, por mais diligencias
que para isso fizesse, dentro e fora do reino, o
marquez de Pombal.
Ficaria, de certo, incompleta esta noticia, se
não apresentássemos também aqui a descripção
authentica dos graves ferimentos do rei, confor-
me se lê na certidão passada pelo cirurgião-mór
António Soares Brandão.
H2
Eil-a :
«António Soares Brandão, cavalleiro professo na
ordem de Christo, cirurgião da camará de sua
magestade fidelíssima, dos seus exércitos e ci-
rurgião-mór do reino e suas conquistas, etc.
«Certifico que no dia três de setembro d^ste
presente anno, depois das onze horas da noite, vi
e curei a el-rei nosso senhor, que Deus Guarde,
de umas feridas combustas e dilaceradas, feitas
com armas de fogo, ao meu parecer, maiores que
as espingardas ordinárias, carregadas estas com
chumbo grosso, as quaes feridas principiavam desde
a omoplata ou espádua direita, descendo pelo
hombro e braço abaixo até o cotovello e tudo pela
parte posterior, comprehendendo também o peito
da mesma parte, no qual também recebeu do
chumbo seis orifícios, mas na parte superior do
braço perto da articulação e sobre o musculo dei*
toide foi a maior força da carga que pelos effei-
tos do estrago me pareceram os tiros dados á
queima roupa ; de sorte que fez na sua entrada
uma grande cavidade, com muita perda de sub-
stancia, grande dilaceração, da qual resultou muita
perda de sangue, e passou o chumbo embuxado,
junto e por cima dos processos da articulação do
hombro, a parte interior, d 'onde fez um grande tu-
mor, no qual fpi preciso fazer uma incisão e se
tirou por esta parte chumbo e fragmentos da car-
ruagem, tudo em muita quantidade, excepto o
chumbo que já se tinha tirado pela sua entrada,
e na continuação da cura se tiraram mais por di-
versas partes do braço trinta e oito grãos do mes-
H3
mo chumbo e algumas porções do vestido, e por
ser tudo verdade o juro pelo habito de Christo
de que sou professo. — Junqueira a 20 de dezem-
bro de 1758. — António Soares Brandão.
Ora, eis ahi o que succedeu na infausta noite
de 3 de setembro de 1758, noite de tão angus-
tiosas recordações para D. José I que elle, não
só fez voto de erigir um templo em memoria de
ter escapado á sanha dos assassinos, mas também,
volvidos dois annos certos sobre aquella data,
lançou com a maior solemnidade, em presença de
toda a corte, a primeira pedra dos alicerces, e
ainda, á hora da sua morte, recommendou á her-
deira da coroa, D. Maria I, que acabasse a egre-
ja. «Em terceiro logar lhe recommendo que com-
pletará a egreja da Memoria que prometti a Deus
fazer e se acha meia feita, em agradecimento do
beneficio que me fez e que foi notório a todo o
reinou.
A egreja de Nossa Senhora do Livramento e
S. José, que ficou sendo denominada da Memoria,
ahi está no mesmo sitio em que se deram os ti-
ros, com o seu elegante zimbório e um conjuncto
harmonioso e bello, ao gosto do Renascimento.
Se o exterior carecido de limpeza, as vidraças
partidas e os telhados e terraços mal reparados,
por onde entra a agua das chuvas que damnifica
a abobada interna e o madeiramento, annunciam
em verdade ruína próxima e attestam infelizmente
ao estrangeiro incúria e desleixo indesculpáveis,
não accusemos por tão justo motivo os nossos go-
vernos ou, antes, desgovernos.
Referindo, sem nenhum receio da menor con-
testação, o que passou n'aquella famosa noite, dei-
114
xámos ainda no tinteiro o que se não viu. Calá-
mos, muito de propósito, se mais alguém, afora
o infame duque de Aveiro, armou o braço dos re-
gicidas ; se porventura contra a vida do soberano
tramaram outros membros da nobreza e os je-
suítas que, na phrase ambígua do illustre dr.
Coelho da Rocha, ficaram envolvidos na conspira-
ção. Pareceu-nos, ao traçar estas linhas, que
n'uma epocha de tão afferrado positivismo, como
a nossa, o rigor inflexível dos documentos diria
muito melhpr que todas as conjecturas, por mais
bem fundadas e deduzidas que fossem, e contra
as quaes é bom estar de sobre aviso porque nem
sempre serão desinteressadas e sinceras. Por isso,
já em 1876, o nosso grande historiador Herculano
se mostrava, com razão, adverso a «certas gene-
ralisaçoes e philosophias da historia, hoje de mo-
da, em que se generalisa o erróneo ou o incerto».
Alberto fasnis:
IA iilllIIA
(AO DR. ALVES CRESPO)
— Se elle não for santo, quem o ha de ser !
— Já o viste, Thuribia?
— Se o vi ! ? Já até lhe fallei. Está mettido
dentro da sua gruta, d'onde só avista o mar. E
como se quizesse ter Deus sempre deante dos
olhos. Figura- te que cheguei á bocca da gruta, e
chamei, tremendo : Meu senhor ! meu senhor ! D'ahi
a momentos, vejo-o apparecer : um lindo homem,
muito branco, com os cabellos louros e os olhos
azues, com um ar de tristeza, que fazia respeito.
Mal que me viu, perguntou-me : «A que vens tu,
minha filha?» Estive um instante sem poder res-
ponder-lhe. Mas cobrei alento e disse-lhe : a A vêr-
vos, real senhor.» E logo cahi de joelhos, porque
as pernas me tremiam como varas verdes. Então
aquelle anjo do ceu, estendendo os braços, levan-
tou-me, passou-me a mão pelo rosto, e disse-me
como se estivesse fallando a sua filha : «Ora pois !
entra com Deus, e ouvir- te-hei.»
— Não sei como tiveste coragem de estar fal-
lando a tão alto senhor !
8
118
— Eu andava já ha dias para dar tão ousado
passo, porque tinha curiosidade de ver o nosso
santo rei D. Sebastião ; mas acanhava-me de o fa-
zer. Outro dia fui á Carvoeira e, quando lá me vi,
entrou comigo a curiosidade. Uma voz cá de den-
tro dizia-me : «Vae.» Fui. Metti pelo caminho de
S. Julião e procurei a gruta, que me -tinham dito
ficava á beira do mar. Lá mesmo o encontrei. O
tio António Simões havia jurado a meu pae que
era aquelle em carne e osso el-rei nosso senhor,
que tinha podido escapar aos mouros. Elle que o
diz é porque o sabe, que o tio António Simões é
um homem de bem ás direitas.
— E que te disse el-rei nosso senhor?
— Perguntou-me quem me tinha mandado lá.
Contei-lhe a pura da verdade : o que meu pae ou-
vira dizer ao tio António Simões. Vae elle e sor-
riu-se. Esteve alguns instantes calado, com os
olhos fitos no mar, e depois disse-me com uma
voz tão doce, que parecia musica do ceu : «Antó-
nio Simões é um bom homem, mas julga que eu
sou quem não sou. Não passo, filha, de um pobre
solitário, que já não quer nada do mundo, e só
deseja que o deixem tranquillo para chorar tudo
quanto tinha e perdeu.»
— E tu que lhe disseste?
— O que lhe havia eu de dizer ? ! Que todo o
povo da Ericeira sabia muito bem quem era aquelle
grande senhor, por mais que sua alteza real o qui-
zesse disfarçar. Que não havia palmo de terra
onde não tivessem cahido as lagrimas do povo,
que chorava a grande desgraça do seu rei. E
n'isto, filha, rebentaram-me as lagrimas dos olhos,
a quatro e quatro. Vae elle e levantou-se, encos-
tou a minha cabeça ao seu peito, e disse-me :
no
*Não perdeste o teu tempo, comquanto te enga-
nasses com a pessoa que procuravas. Eu não sou
quem António Simões cuida ; sou, sim, um pobre
solitário que se habituou a conversar com Deus,
de dia e de noite, na grandeza das suas obras.
Vae-te, e dize ao honrado povo da Ericeira que
eu não sou quem elles erradamente suppoem, mas
que nem por isso deixo de ser menos peccador.
Pede-lhes que me deixem em paz, que não pro-
curem avivar no meu espirito pensamentos quç
eu desejo affastar. Dize a teu pae e a teus visi-
nhos isto mesmo, que o meu maior desejo é fa-
zel-o saber a este desgraçado povo escravisado.»
Eu tinha relanceado os olhos pela gruta, onde só
havia terra e pedra. Não tive mão em mim que
não dissesse: «E estaes vós aqui, meu senhor,
sem uma enxerga onde o vosso corpo repouse ? ! »
Aquelle grande senhor sorriu-se, e tornou-me :
«Perdi tudo o que era do mundo, filha, não se me
dá de agasalhos. António Simões já para aqui tei-
mou em trazer uma enxerga e uma manta, e eu
dei-as ao primeiro mendigo que por aqui passou.
Era um cego, — cego dos olhos, que outros o são
do entendimento, mais cegos ainda que os dos
olhos, porque não querem ou não podem ver a sua
desgraça. E despedindo-me deu-me um beijo na tes-
ta. A sua bocca parecia feita de velludo. Eu corei,
que senti todo o sangue subir-me á cara. E, re-
cuando, sahi da gruta, com o mesmo respeito com
que teria sahido do Paço da Ribeira.
— Não contaste isso a mais ninguém ?
— Ora ! não contei eu outra cousa ! Vim pela
Carvoeira, e logo alli ficou tudo em pratos limpos.
Juntou-se povo assim para ouvir-me, — e juntava,
93 dedos das mãos uns aos outros, Mulheres não
120
havia mais na povoação. Umas já o tinham ido
ver. Tal qual como a mim ! diziam ellas quando
eu estava contando o que aquelle grande senhor
me havia dito.
— Não se quer dar a conhecer ! bradava uma.
— E o que é ! dizia o tio Duarte Gil, que sabe
muito bem, por lh'o ter confessado o tio António
Simões, que aquelle santo é a real pessoa de el-rei D,
Sebastião em carne e osso. Outras mulheres vão lá
amanhã pedir-lhe que as deixe beijarem-lhe a mão.
— E tu beijaste-lh'a?
— Mal peccado ! De atarantada que estava,
nem lembrança tive de lhe pedir que me deixasse
beijar-lhe a mão. Que falta de respeito que eu
commetti com aquelle grande senhor ! Mas hei de
lá tornar para lhe beijar a mão. . .
— E eu vou comtigo também.
— Pois iremos ambas, que tiraremos o medo
uma á outra. Que elle a bem dizer não ha pessoa
mais bondosa, mas a gente, como sabe que,é el-rei
nosso senhor, acobarda-se de lhe fallar. E o que
é. Quando queres tu lá ir?
— Vamos para a semana, que tenho menos lida.
— Tens tu lida tamanha que te não dê vagar
para anediar as crenchas ? Ou queres pôr saia de
cós de velludo com alforza nas vasquinhas?
— Sou agora alguma figura d'almadraques !
Mas para a semana deve estar prompto o meu
gonete de serguilha.
II
Era raro o dia em que na gruta de S. Julião
não entravam dezenas de pessoas propellidas pelo
desejo de vêr de perto o santo rei desgraçado/
m
que se tinha purificado de todos os seus erros na
catastrophe de Alcacer-quibir e que, extranho no
seu próprio paiz, chorava na solidão a perda da
coroa real, que recebera de seus avós.
O litoral é retalhado em grandes penedias des-
conjunctadas, que tombaram umas sobre outras,
como destroços de uma vasta edificação arruinada.
A negrura do basalto parece retinta nas labare-
das de um incêndio antigo, que o facho de uma
destruição enorme ateou. Aqui e alli uma estreita
faixa de areia mitiga a aridez das ribas, offere-
cendo-se aos beijos da onda, que umas vezes se
contenta em osculal-a fugitivamente, outras vezes,
empinando-se em vagalhão, arquea sobre as ro-
chas negras o dorso flexível, quebrando-se subi-
tamente n'uma explosão estrondosa de flocos de
espuma*
Na corda do litoral, avançando para o sul, o
Cabo da Roca altea-se com a perspectiva de um
cubello longinquo, que fortifica a extremidade da
ampla cordilheira de Cintra, recortada em ondu-
lações gibosas, dando a impressão de um enorme
dromedário petrificado.
Em frente da gruta, o mar, sem limites e sem
recifes, immenso como a ambição dos homens,
profundo como a grandeza de Deus.
Era alli, no recesso d'aquella gruta solitária,
que Matheus Alvares alimentava os seus planos
audaciosos, vastos como o oceano, — espelho de
todas as ambições terrenas, porque agora se aquieta
por momentos para logo se revoltar n'um deses-
pero incansável.
Elle tinha nascido na ilha Terceira, rodeiado
pelo mar, — pelo mar que parecia ser o modelo
caprichoso do seu destino. Seu pae fora um pe-
122
dreiro, um humilde, que não atava ás suas tradi-
ções de família um appellido distincto. Uma febre
lenta de celebridade devorava em segredo a alma
de Matheus Alvares, enfuriando-o na raiva de se
ver tão humilde como seu pae.
O mar sorria-lhe como uma estrada aberta e
provocadora, que chamava os sonhadores, para os
afogar na perfídia de um naufrágio ou para os re-
vessar numa praia de continente.
Tantas vezes o mar o procurou attrair, que Ma»
theus Alvares acabou por confiar-se-lhe.
Por única bagagem, a sua ambição. Não têem
outra os ambiciosos que se aventuram.
Veiu quasi ao acaso para a metrópole, e obteve
ingresso n'um convento da Extremadura. A sua
alma pôde respirar mais desafogada, porque elle,
o filho de um obscuro pedreiro açoriano, conse-
guira irmanar- se pelo habito aos mais illustres da
communidade» Mas a sua ambição constituirá uma
espécie de indisciplina revoltada, que lhe tornara
insoffrivel o peso dos cânones. Deliberou, pois,
fugir ás peias regulamentares da vida monástica,
e continuar a aventurar-se ao sabor da sua phan-
tasia irrepremivel.
Ainda assim trouxera do convento um pecúlio
proveitoso de phrases unctuosas e de inflexões
macias, que não era para desaproveitar.
Para uma viagem incerta todo o viatico é pru-
dente. Da sciencia dos frades trouxera apenas
essa : a de saber viver para manobrar a rota de
uma ambição indeterminada, mas audaz.
Transitando de povoação em povoação, reco-
nheceu que todo o burgo era como que uma es-
ponja que absorvia as mais salientes individuali-
dades. Escolheu pois a solidão para se fixar, por-
123
que a solidão dá relevo á excentricidade, quasi
sempre pretenciosa, do solitário. E depois melhor
èy para os ambiciosos, attrair o burgo do que ser
absorvido por elle. *
Uma gruta, não tão solitária que não estivesse
encravada entre duas povoações do litoral, a Eri-
ceira ao norte, S. Julião ao sul, mas não tão pró-
xima do povoado que o povoado a assoberbasse,
foi o palco escolhido por Matheus Alvares para
o drama, que elle entrevia, da sua existência fu-
tura.
Os primeiros dias arrastaram-se estéreis de pe-
ripécias, porque a vida da lavoura deslisa sempre
no mesmo trilho, sem avidez de sensações, e elle
estava ladeado de camponezes. As primeiras noi-
tes eram profundas, insondáveis nas oscillaçoes
vagarosas d'esse colossal relógio que se chama o
ceu. A lua, enorme pêndula de prata, baloiçava-se
monotonamente sobre o azul, parecendo marcar
as primeiras horas da eternidade.
E Matheus Alvares, entregue á sua imaginação
audaciosa,, pensava, assentado n'uma pedra da
gruta, com o rosto apoiado nas mãos, os cotovel-
los apoiados nos joelhos, descaído o lábio inferior,
— como D. Sebastião, diríeis.
Foi na solidão da beira-raar que Matheus Al-
vares procurou sondar a sua ambição, interrogal-a
e medil-a. O que era que elle queria, a que ideiál
aspirava? E então, como se encontra de repente
o conceito de um enigma, reconheceu que tinha
seguido o rasto do rei de Penamacor, o primeiro
falso D. Sebastião. Como elle, havia tentado e
abandonado a vida conventual ; também como elle
se fizera eremita. Mas o capuz que escondia a
physionomia do rei de Penamacor } bem pouco si-
124
milhante á de D. Sebastião, podia Matheus Alva-
res dispensâl-o vantajosamente, porque as suas
feições accordavam a reminiscência das feições
do mysterioso vencido d^lcacer-quibir. Era uma
vantagem enorme sobre o seu predecessor. Não a
deixaria escapar- se.
Este sonho de grandeza subjugara completa-
mente a sua ambição ; enchera-a. Matheus Alva-
res erguera-se a meio da gruta, e, com o rosto
alto, fitava o mar, onde a lua estirava um tapete
de malhas argênteas. Uma visão grandiosa pas-
sara pelo seu espirito, como na fascinação de um
espectáculo phantastico : ouvira o throno de Por-
tugal gemer debaixo dos seus pés e vira o leão de Cas-
tella recuar deante dos seus chapins doirados.
O alvo do seu destino estava, desde essa hora,
fixado : mirava-o com segurança, a despeito da sen-
tença que condemnára a galés perpetuas o rei de
Penamacor.
Mas as tavolas do jogo de Matheus Alvares
eram outras, e melhores. A sua similhança com
D. Sebastião valorisava o êxito da empresa. Ti-
nha a mesma edade do rei, a mesma brancura de
pelle, a mesma barba aloirada. E depois a opinião
publica estava já impressionada pela credulidade,
disposta a admittir como possivel o regresso do
vencido d'Alcacer-quibir. O rei de Penamacor ha-
via preparado o caminho, fora o martyr de uma
ideia e, pelo que respeita ás ideias, raras vezes
lhes colhe o fructo aquelle em cujo espirito ellas
primeiro floriram.
Isto pensara Matheus Alvares, e desde essa hora,
sonhou- se rei de Portugal.
m
in
Traçado o plano, Matheus Alvares começou
desde logo a executal-o habilmente.
O acaso havia-lhe deparado um poderoso auxi-
liar na pesscíl de António Simões, abastado pro-
prietário de S. Julião. Foi-lhe fácil reconhecer a
ingenuidade que enchia a alma crédula e boa do
camponez. Exaltou-lhe a imaginação íallando-lhe
das desgraças que pesavam sobre Portugal oppri-
mido. Contou-lhe a historia do desastre d'Alcacer-
quibir com grande minudência de informações,
umas exactas, outras phantasiosas. Foi até o ponto
de descrever-lhe as sensações intima? do rei na
hora em que a nacionalidade portugueza se engol-
phou febrilmente n'um abysmo de sessenta annos
àe captiveiro. A escravidão havia accordado na
alma popular o sentimento do prophetismo poéti-
co. Bandarra, fallecido trinta e cinco annos antes,
tinha accendido nas almas simples o facho da cre-
dulidade vidente. O rei voltaria da ilha encober-
ta, porque as prophecias o promettiam : %
Este sonho que sonhei
E' verdade muito certa,
Que lá da ilha encoberta
Vos ha de chegar este rei.
Matheus Alvares, que facilmente conseguira lan-
çar suspeitas no animo.de António Simões, acerca
da sua mysteriosa individualidade, revelára-lhe
comtudo, accentuando muito intencionalmente esta
revelação, que tinha chegado dos Açores, de uma
ilha, a Terceira. E recordava-lhe ao mesmo tem-
po, como entregando-lhe o fio de um segredo, a
trova de Bandarra :
126
Que lá da ilha encoberta
Vos ha de chegar este rei.
D. Sebastião voltaria pois, porque o propheta
mais de uma vez o affirmava com segurança :
Vejo sem abrir os olhos
Tanto ao longe, como ao perto,
Virá do mundo encoberto
Quem mate da águia os polhos.
O sebastianismo, diffundido nos campos pelas
trovas que se popularisaram, ao mesmo tempo que
robustecia á crença de que o Encoberto voltaria,
cavava abysmos de dor no intimo das almas, que
viam perdida a independência da pátria.
Matheus Alvares não deixou de accentuar o ef-
feito suggestivo de cada uma das suas meias-pa-
lavras, e procurou atear no espirito do pobre cam-
ponez a magua que o desastre de Alcacer-quibir
havia derramado em todos os corações, a sede de
repor no throno o rei christão que tinha sido ven-
cido pelos infiéis nas plagas de Africa.
Ensinou-lhe o romance castelhano, que se vul-
garisára em muitas povoações :
Puestos estan frente a frente
Los dos valerosos campos,
Uno es dei rey Moluco,
Otro de Sebastiano.
E quando pronunciou a palavra Sebastiano, o
seu corpo estremeceu n'uma vibração nervosa, e
dos seus olhos rebentaram lagrimas, que revela-
vam uma dor muito intima, muito concentrada
n'um segredo cheio de personalismo.
Mas não passou das meias-palavras, nos pri-
meiros tempos, não passou das suggestoes artifi-
ciosas, por gestos ou vocábulos.
127
António Simões revelou primeiro á mulher, de-
pois ao seu amigo Pedro Affonso, de Rio-de-Mou-
ro, o segredo das suas apprehensoes. A mulher
acreditou logo que o solitário da gruta fosse el-
rei D. Sebastião. Mas Pedro Affonso achou pru-
dente que António Simões procurasse um meio de
levar Matheus Alvares a denunciar a sua indivi-
dualidade, a trahir o seu disfarce. Combinaram os
dois que António ' Simões, durante uma d'essas
entrevistas, chamaria o dialogo para a pessoa do
rei e, levantando-se de repente para logo cahir
de joelhos, beijaria a mão de Matheus Alvares,
bradando, inclinado e reverente : «Meu senhor !
meu senhor !»
Assim fez. O solitário, julgando que já era tempo
de vibrar o golpe de misericórdia, quando Antó-
nio Simões genuflectiu osculando-lhe effusivamente
a mão, levantou -o carinhosamente nos braços, en-
costou-o ao peito, que conseguiu fazer arquejar,
e disse-lhe : «Pois bem ! já que adivinhaste o meu
segredo, respeita a minha miséria, deixa- me aca-
bar na obscuridade uma vida que não soube con-
servar no throno.»
António Simões jurou guardar a mais absoluta
reserva, para tranquillisar o espirito do solitário,
mas o seu coração transbordava de felicidade ex-
pansiva por ser elle a pessoa a quem coubera a
sorte de restituir á patna o rei Desejado e a in-
dependência perdida.
Pediu, instou com Matheus Alvares que lhe
desse a honra, ainda que immerecida, de ser seu
hospede. Alvares, já auctoritariamente, intimou -
lhe que se abstivesse de insistir no offerecimento.
Requereu submissamente António Simões que
ao menos sua alteza real se dignasse acceitar-lhe
128
uma enxerga, para o seu real corpo repousar, e
uma manta, para cobrir o seu corpo real.
Matheus Alvares transigiu, se bem que ainda
contrariado, mas previu que o acceitar a enxerga,
para a dar depois a qualquer mendigo, seria um
acto de abnegação que António Simões se apres-
saria a capitular de sublimemente evangélico.
Pedro Affonso quiz ir, com o seu amigo Antó-
nio Simões, beijar a mão do rei Encoberto. Ma-
theus Alvares deu a perceber que, sendo Pedro
Affonso intimo amigo de António Simões, não po-
dia nem devia reservar de um o segredo que ti-
nha revelado ao outro. Portanto, deu a dextra a
beijar a Pedro Affonso, e tratou-o com tanta maior
deferência quanto, desde o primeiro lance de olhos,
reconheceu que era esse o homem enérgico e re-
soluto que lhe convinha.
Effectivamente, Pedro Affonso conservava o
typo d'esses chefes athleticos que nas sociedades
grosseiras se impõem ainda pela força. Uma pa-
gina de Herbert Spencer na Sociologia assignala
que é a força que constitue ainda o primado en-
tre os boschismans, os tapajos, os beduínos e ou-
tros povos selvagens. S. Julião, no século xvi, e
porventura ainda hoje, não variava muito dos cos-
tumes dos boschismans, beduínos e quejandos.
Era de elevada estatura, quasi um gigante. Ca-
beça leonina, peito arqueado, braços musculosos,
voz volumosa. Estava habituado a correr aventu-
ras com as armas na mão. Combatera nos bata-
lhões populares pela causa do prior do Crato, o
rei mais ephemero e também mais popular que
tem havido em Portugal.
Moralmente, partia do principio de que todos
os cam inhos levam a Roma, e para derrubar o go-
129
verno de Castella, que odiava, parecia-lhe que to-
dos os meios seriam excellentes comtanto que of-
ferecessem alguma probabilidade de bom êxito,
Matheus Alvares ficou encantado de ouvil-o, so-
bretudo quando Pedro Affonso, resolutamente, poz
cartas na mesa e aclarou o jogo.
Tinha uma filha. Estava disposto a sustentar
a causa de el-rei D. Sebastião, como havia sus-
tentado a do Prior do Crato, porque elle apenas
queria, segundo affirmava, assegurar a indepen-
dência de Portugal. Mas era arriscado o jogo,
porque os castelhanos não largariam de boa mente
o poder que haviam empolgado. Offerecia-se como
chefe das hostes do Encoberto , deitaria pregão para
uma nova cruzada, recrutaria gentes, reuniria ar-
mas, com o auxilio do seu amigo António Simões,
se ficasse estipulado que sua filha viria a ser
rainha de Portugal. Declarou que, se António Si-
mões tivesse uma filha, não faria similhante pro-
posta, porque ella, em attenção ao pae, deveria
ser a preferida. Mas como António Simões tinha
um filho, que poderia ser largamente agraciado
pelo soberano, não prejudicava os justos direitos
do seu amigo.
O rei concordou. António Simões subscreveu
ao pacto, e offereceu a Matheus Alvares mais um
soldado na pessoa do filho.
Desde essa entrevista, que tomara um caracter
decisivo, Matheus Alvares era, para aquslles dois
homens, o rei de Portugal.
IV
Em entrevistas ulteriores, Matheus Alvares com-
binara com Pedro Affonso e António Simões qae,
430
ao passo que elles espalhariam que finalmente el-
rei D. Sebastião havia reapparecido disfarçado em
eremita, elle, por sua vez, negaria sybillinamen-
te, isto é, por palavras duvidosas e vagas a sua
qualidade de pessoa real.
D'este modo justificaria o disfarce que havia
tomado e acautelava-se de qualquer represália que
o archiduque Alberto podesse empregar contra elle.
Eram ainda uns assomos de medo e de incer-
teza pelo impulso que Pedro AfFonso daria ao com-
mettimento.
Mas Pedro AfFonso não se importava de correr
todo o perigo n'uma empresa cujo bom êxito po-
deria transformal-o no segundo homem de Portu-
gal, sogro do rei e seu braço direito. Badalava
por toda a parte que na gruta de S. Julião estava
recolhido o rei de Portugal, vivendo em miséria
extrema ; que era preciso repol-o no throno, expul-
sando o estrangeiro intruso ; que a conquista da
independência da pátria, estando no coração de
toda a gente, apenas dependia do regresso do rei,
a quem o throno pertencia perante a justiça de
Deus e o direito dos homens. «Ora, perorava elle,
o rei voltou, está na gruta de S. Julião. Ide lá
vel-o, apresentar-lhe as vossas homenagens de
amor e respeito. Se elle vos quizer fazer persua-
dir de que não é D. Sebastião, tomae as suas pa-
lavras por uma prova de humildade christã, e de
arrependimento, que não podemos consentir. »
A filha de Pedro Affonso, António Simões, sua
mulher e seu filho secunda vam-n'o n'esta cruzada
patriótica, annunciando aos povos que o rei D. Se-
bastião tinha voltado e estava na gruta de S. Ju-
lião sem ter enxerga para deitar-se, nem manta
para cobrir-se.
131
Formigueiros de gente concorriam diariamente
a visitar o Encoberto na sua gruta da beira-mar.
As mães levavam-lhe açafates de fartes, girgila-
das e fructas. As filhas, que tinham começado por
ir beijar a mão de Matheus Alvares, acabaram
por levar-lhe flores do campo, que dispunham em
tapete dentro e fora da gruta, como fazem delica-
damente certas aves do paraíso, a amblyomis or-
nata, principalmente, no seu ninho primaveril.
Elle, dando ao3 olhos azues uma doce expres-
são de ternura, abraçava-as respeitosamente, e
procurava palavras com que podesse negar frou-
xamente ser o rei D. Sebastião, sem comtudo fe-
rir a credulidade ardente do mulherio exaltado.
Que não era quem ellas cuidavam ; mas que no
seu coração havia uma inextinguível magua pela
ruina de Portugal e pela usurpação feita ao rei
lusitano, que elle conhecera muito bem n'uma ilha
encoberta, como diziam as trovas do propheta de
Trancoso.
As velhas respondiam-lhe que não estivesse sua
alteza real a negar a sua jerarchia, e as rapari-
gas, curvadas, abraçavam-lhe os joelhos, procu-
rando beijar-lhe os pés que, graças ao aroma das
flores, podiam disfarçar qualquer exhalação me-
nos aromática que a das flores.
Algumas raparigas, á bocca pequena e entre si,
queixavam-se da esperteza ambiciosa umas das
outras, citando o nome das que tinham ido de noite
perguntar a el-rei D. Sebastião se elle queria ser
allumiado pela lamparina dos seus olhos.
Os homens, fanatisados por Pedro Affonso, prin-
cipalmente, arregimenta vam-se para defender a sa-
grada causa do rei D. Sebastião, e já o alistamento
dos yoluntarios orçava por oitocentos soldados,
132
Desenvolvendo uma grande actividade, no com-
inando em chefe da hoste, Pedro Affonso fazia ex-
cursões até Torres Vedras a fim de adquirir ar-
mas e munições de guerra.
Encontrava, é certo, alguns incrédulos, que lhe
lembravam o caso do mallogrado rei de Penama-
cor. Mas Pedro Affonso, com uma grande audá-
cia, respondia-lhes que fosse ou não fosse o ven-
cido de Alcacer-quibir, Matheus Alvares havia de
estar sentado no throno de Portugal antes do dia
de S. João.
Vendo que as adhesoes eram numerosas, e que
o alistamento engrossava, o que valorisava a em-
presa, Matheus Alvares julgou ser chegado o mo-
mento opportuno de começar a execução do plano
audacioso a que se havia associado.
Fixou dia para a solemne acclamação e consor-
cio de sua alteza real. Alea jacta erat : Matheus
Alvares, comquanto arriscasse a pelle, não podia
recusar nem retroceder.
No burgo da Ericeira, em plena praça publi-
ca, dispozeram-se os aprestos para as grandes ce-
remonias em que o rei, pela primeira vez depois
de repatriado, devia apparecer ao seu povo.
As flores e os estandartes ornamentavam ga-
lhardamente a praça, em cujo centro fora levan-
tado o sólio com docel e cadeiras de espaldar.
N^m altar, armado de improviso, a coroa de
Nossa Senhora esperava o momento de descer so-
bre a cabeça da rainha, a filha de Pedro Affonso,
e ninguém se lembrava de perguntar, nem ella
mesma, se seria certo que D. Sebastião aborrecia
as mulheres, como dizem alguns escriptores fáceis
em acreditar cousas pouco verosímeis.
Parecia-lhe á noiva que tal não succederia.
133
Em torno da praça o pequeno exercito do rei
da Ericeira, marcialmente equipado, fazia guarda
de honra ao throno.
Um vozear atroador e festivo saudou a appari-
ção do cortejo real.
Vinham á frente dois mocetões de Fonte Boa
dos Nabos desempenhando as funcçoes de portei-
ros da canna.
Seguiam-se os reis de armas, a cavallo e des-
cobertos, e os moços da estribeira : a fina flor dos
rapazes de Odrinhas e Chelleiros.
O cargo de estribeiro-mór era exercido por Pe-
dro Affonso, que tivera a discrição de se nobili-
tar com o appellido de Menezes.
A cavallo, e coberto, o seu olhar altivo domi-
nava a multidão.
Com pequeno intervallo, cavalgava o rei, car-
navalescamente magestoso, de elmo e arnez, com
o manto de purpura pendente sobre as ancas do
cavallo branco. A espada núa não era precisamente
a de Affonso Henriques, que D. Sebastião tinha
levado para Alcacer-quibir, mas não seria menos
antiga. A futura rainha montava também um ca-
vallo branco, que António Simões, por grande
distincção honorifica, levava de rédea.
O vestido era de fazenda azul-celeste, decota -
do, e com tufos brancos nas mangas. Na cabeça
bonnet de velludo preto, com pluma branca e pe-
dras falsas. Punhos de renda cuja brancura con-
trastava com a negrura das mãos crestadas. Desde
a cintura até aos pés um cordão de retroz ama-
rello intervallado com esmeraldas de vidro. Hom-
bros nus, opulentos de carnação sadia, e algum
tanto morena. Um collar de ouroj com um bonso
pendurado.
134
Após as pessoas reaes agglomerava-se multi-
dão de cavalleiros, sem distincção de logares e
cobertos : as rédeas soffreadas, as cabeças dos
cavallos muito altas, os pés enfiados nos estribos
quasi até aos calcanhares.
Hoje poder-se-ia chamar áquillo um cirio. No
anno da graça de 1585 era a parodia de um cor-
tejo real.
O rei e a rainha descavalgaram á ilharga da
praça do Jogo da Bola, e dirigiram-se, a pas-
so mesurado, para o sólio erguido a meio da
praça.
O rei subiu primeiro e conservou-se de pé so-
bre o throno. Pedro Affonso, com voz stentorosa,
perguntou, do alto do ultimo degrau :
— Não é verdade que reconheceis a presença
do nosso senhor e rei D. Sebastião, que Deus guarde
por muitos e dilatados annos ?
— E' verdade ! é verdade ! conclamou a mul-
tidão.
Pedro Affonso proseguiu :
— Não é verdade que de livre vontade o reco-
nheceis como nosso senhor e rei, a quem de di-
reito pertence a coroa de Portugal?
— E' verdade ! é verdade ! repetiu em coro a
multidão.
Então Pedro Affonso subiu ao estrado, tirou
delicadamente o elmo que cingia a cabeça de Ma-
theus Alvares, substituindo-o pela coroa real, que
o capellão da ermida do Espirito Santo lhe en-
tregou depois de a ter abençoado na presença do
povo.
135
Procedeu-se em seguida ao casamento, sendo a
filha de Pedro Affonso conduzida ao solío pela
mão de António Simões.
O capellão da ermida do Espirito Santo pro-
nunciou em alta voz as palavras sacramentaes,
terminando por collocar sobre a cabeça da rainha
a coroa de Nossa Senhora.
Então uma cerrada metralha de flores, con-
feitos e grãos de trigo cobriu litteralmente o
sólio, fustigando, por varias vezes, as reaes fa-
ces dos augustos cônjuges.
Junto á Fonte do Cabo, a mais antiga fonte da
povoação, estrugiram morteiros atroadores.
O cortejo desfilou novamente no meio d'este
estrondoso charivari, e suas altezas reaes foram
hospedar-se em casa de António Simões, que fi-
cou sendo provisoriamente o paço do rei de Por-
tugal.
N'esse mesmo dia, Matheus Alvares, querendo
remunerar tantas provas de dedicação recebidas,
agraciou seu sogro com os títulos de conde de
Monsanto, marquez de Torres Vedras, senhor da
Ericeira e' governador de Lisboa... in partibus
injidelium.
A uma das Valverdes, prima da rainha, nobi-
litou com o titulo de condessa. Creou mais um
duque, e um marquez, títulos que ainda hoje se
conservam como alcunha nas famílias agraciadas.
Também ainda subsiste o titulo de rainha em Anna
Sunana, descendente da filha de Pedro Affonso.
A' noite o burgo da Ericeira illuminou ; as suas
casas brancas, de um aspecto moirisco, tinham a
animação de uma folia do Ramadan em Marro-
cos. Havia gente ás janelias e ás portas. Pelas
ruas estreitas formigava a multidão como se a voz
136
do mudden, em pleno Ramadan, lhe houvesse an-
nunciado a hora do magreb.
E todavia estava-se num paiz chris-ão, que en-
tão, mais do que nunca, odiava os moiros, causa-
dores da derrota tremenda de Alcacer-quibir.
A filha de Pedro Affonso não encontrou no leito
nupcial o frio D. Sebastião descripto por Cezar
Cantu e outros historiadores. O que ella achou foi
um D. Sebastião mais perfeito que o das historias.
Historias !
A comedia da Ericeira teve écco em Lisboa,
chegou ao conhecimento da corte do archiduque
Alberto. Com a primeira tentativa de mystificação,
representada pelo rei de Penamacor, mostrou-se o
archiduque benevolente. Mas, em vista de uma
nova tentativa, aggravada pela reincidência do
espirito popular que a applaudia, o regente julgou
dever proceder com severidade.
Foi enviado á Ericeira o corregedor Diogo da
Fonseca, que já tinha instruído o processo do rei
de Penamacor.
A' noticia da sua aproximação, os voluntários
da hoste de Pedro Affonso intimidaram-se a ponto
de desertar : uns foram esconder- se nos barrocaes
do litoral entre a Ericeira e Peniche ; outros, os
que eram pescadores, fizeram se ao mar.
O próprio rei desappareceu com a sua real es-
posa. E Pedro Affonso, vendo-se sem soldados,
sumiu-se também.
Ficaram apenas as mulheres e as creanças.
Que noite aquella, comparada com a da solemne
acclamação de el-rei Matheus Alvares ! Comquanto
se estivesse no estio, soprava um rijo vento nor-
te, que fazia ulular funebremente os moinhos sobran-
ceiros ao burgo. As ruas silenciosas e desertas.
i37
As casas luctuosamente fechadas. Só de vez em
quando se ouvia a voz plangente das mulheres que,
lastimando-se, voltavam de ser inquiridas pelo
corregedor.
Relacionados os réos de alta traição, Diogo da
Fonseca retirou para Lisboa, expedindo^os respe-
ctivos mandados de captura ás justiças de Tor-
res Vedras.
E' n'este lance que se evidenceia a audácia de
Pedro Affonso. Vendo escapar-se-lhe das mãos o
seu próprio marquesado e a coroa real da filha,
julgou dever jogar uma ultima cartada.
Teve artes de alliciar de novo os fugitivos e de
os armar para combate, estimulando o animo das
mulheres com dizer-lhes que elle, com as armas
na mão, vingaria em Lisboa o ultrage que lhes
fora feito pelo corregedor da corte.
Ao mesmo passo, induzia o genro a proclamar
ao paiz, dando-se a conhecer como sendo o rei D.
Sebastião, convidando o povo a expulsar o estran-
geiro e a reivindicar a coroa para o legitimo rei.
Pedro Affonso ensinou a António Simões, sem-
pre fácil em acredital-o, que o almirante D. Diogo
ds Sousa, que acompanhara D. Sebastião a Afri-
ca, tinha tido uma entrevista com Matheus Alva-
res na gruta de S. Julião, e o havia reconhecido
como sendo o próprio rei.
Esta prova era tão concludente, que António
Simões correu a noticial-a de povoação em po-
voação, fazendo grande numero de proselytos.
Tendo já armado e espiritado o seu exercito,
Pedro Affonso julgou dever romper as hostilida-
des antes que os mandados de captura chegassem
ao seu destino.
Chamou o filho de António Simões e pergun-
138
tou-lhe se elle estava disposto a desempenhar uma
commissão de honrosa importância.
— Tudo, respondeu com firmeza o rapaz.
— Pois bem. Vaes a Lisboa e entregas ao re-
gente esta carta de sua alteza real, nosso rei e
senhor. «
O filho de António Simões deu-se pressa em
partir para Cintra, onde descansou alguns in-
stantes, seguindo logo para Lisboa.
Chegado ao Paço da Ribeira, em quinta feirada
Ascensão, perguntou se poderia fallar ao cardeal
archiduque Alberto. Disseram-lhe que o cardeal
tinha ido á Sé. Dirigiu-se immediatamente para a
Sé e, avistando o cardeal, que saía da egreja, poz-
se de joelhos deante d'elle, e entregou-lhe a carta.
O archiduque leu. Era um cartel insolente in-
timando-o a restituir-lhe sem delongas o governo
de Portugal.
Sorriu o cardeal, e mostrou a carta ao correge-
dor, que o acompanhava. Diogo da Fonseca in-
dignou-se e ali mesmo interrogou o portador da
missiva :
— De quem é esta carta?
— D'el-rei nosso senhor, que a escreveu de seu
punho.
— Ah ! villão, que estás zombando !
— Por Deus, meu senhor, que o solitário da
gruta é propriamente em pessoa el-rei D. Sebas-
tião. Meu pae e minha mãe conhecem-n'o como
aos seus dedos, e toda a gente lá sabe que é esta
a pura da verdade.
— Que tolice ou que descaramento ! exclamou
o corregedor.
— Que ingenuidade ! replicou ostentosamente
o archiduque. Deixae ir em paz o muchacho.
139
— Deixal-o ir, meu senhor!
— Não dêmos importância áquillo que de sua
natureza a não tem. Quando os perseguimos, fo-
gem ! Que raça de valentes !
E o archiduque despediu, sorrindo com altivez
castelhana, o filho de António Simões.
Mas o corregedor, recolhendo a casa, mandou
officiar ao seu collega de Torres Vedras ordenan-
do-lhe que sem demora procedesse á captura dos
sebastianistas da Ericeira.
VI
Pedro Affonso, vendo voltar o filho de António
Simões, o que porventura não esperava, tirou d'ahi
argumento para exaltar a imaginação dos seus vo-
luntários, dizendo-lhes que o regente tanto reconhe-
cia a verdade da carta, que se não atrevera a con-
testai-a.
Ao mesmo tempo tomava as suas precauções,
cobrindo a rectaguarda no intuito de marchar so-
bre Lisboa.
Mafra estava bem policiada, e o litoral era vi-
giado a todo o momento. Como reféns, ordenara
aos de Mafra que pozessem cerco á casa do dou-
tor Gaspar Pereira, magistrado superior e mem-
bro do conselho real.
O corregedor de Torres Vedras, estimulado
pela instancia que lhe fizera o corregedor da corte,
dirigira-se á Ericeira.
Mas em Mafra os revoltosos prenderam-n'o e
ameaçaram-n'o de morte.
O golpe de mão estava preparado. Na véspera de
S. João o exercito sebastianista, commandado por
Pedro Affonso, atacaria Lisboa, forçando a entrada.
140
Justamente n'esta occasião. chegava a Lisboa
uma carta do jesuíta Leão Henriques, antigo con-
fessor do cardeal-rei, para o secretario distado
Miguel de Moura, incluindo um exemplar da pro-
clamação espalhada por Matheus Alvares.
Immediatamente, Miguel de Moura ordenou ao
marquez de Santa Cruz, capitão-general de mar
e terra, que pozesse á disposição do corregedor
da corte as forças suffi cientes paia baterem os re-
voltosos.
A ordem foi logo cumprida.
Diogo da Fonseca, cinco léguas andadas de
Lisboa, soube que o corregedor de Torres Vedras
tinha sido lançado ao mar do alto das ribas da
Ericeira ; que o doutor Pereira, um filho e um so-
brinho, foram massacrados pelos revoltosos em
Mafra ; finalmente, que Pedro Affonso havia en-
trado no caminho das mais sangrentas represálias
tripudiando n'um orgia de sangue.
Sem mais demora, avançou para a Ericeira,
quartel-general dos sebastianistas.
Ahi pelas alturas de Odrinhas, appareceu-lhe
uma guarda-avançada de esclarecedores revolto-
sos. Seriam uns duzentos. Diogo da Fonseca man-
dou-os intimar para que se rendessem. EUes res-
ponderam-lhe audaciosamente com uma descarga
de arcabuzes. O combate foi rápido e decisivo.
Desmantelados os sebastianistas de Matheus Al-
vares, trataram de salvar-se fugindo ; mas cerca
de oitenta cairam em poder do corregedor, que
lhes arrancou pelo terror ou pela tortura o segredo
do seu plano de campanha.
Soube Diogo da Fonseca que o grosso da guer-
rilha havia sahido de Torres Vedras na hypothese
de ofFerecer combate ás forças castelhanas, já a
141
esse tempo reforçadas pelas companhias que os
capitães Santo-Esteban e Collantes commandavam.
Tendo expedido dois esclarecedores a cavallo,
as tropas do governo hespanhol foram avançando
para o valle do rio de Chelleiros, e iam já descendo
a vertente meridional do valle quando os esclare-
cedores retrocederam, á rédea solta, para annun-
ciar que a guerrilha dos revoltosos estava á vista.
Desde a Carvoeira, o declive da vertente me-
ridional é pedregoso e alpestre. Plantas silvestres
verdejam pallidamente n'um ou n'outro cômoro,
mas o valle, por onde o rio deslisa tortuosamente,
escacissimo de aguas no verão, é feracissimo, e
os trigos vegetavam altos e robustos.
Diogo da Fonseca tinha dois meios a seguir.
Demorar-se no topo da vertente, pairando como
Fabius Cunctator ou avançar resolutamente ao en-
contro da guerrilha.
Como não tinha por inimigo Annibal ou quem
o valesse, e como estivesse cônscio da força nu-
mérica e disciplina militar do exercito que lhe
obedecia, não quiz desairal-o a ponto de mostrar
receio da guerrilha. De mais a mais recebera in-
strucçoes para acabar com a insurreição fulminan-
temente. Metteu-se pois ao «valle com a intenção
de ganhar a vertente setemptrional. Mas, ao atra-
vessal-o, como se ouvisse já perto o alarido ber-
beresco da guerrilha, mandou occultar os seus ar-
cabuzeiros entre os trigos, e só elle avançou a ca-
vallo, acompanhado por uma pequena escolta de
officiaes de justiça.
A guerrilha vinha chibante, fanfarrona, caminho
do valle: á frente, Pedro Affonso a cavallo, no
meio de um estado-maior que não brilhava pelo
numero. Eram os mesmos pimpões de Fonte Boa
142
dos Nabos, que tinham precedido o cortejo real
no dia da acclamação.
Mal que avistaram o corregedor e a sua pe-
quena escolta, deram em perseguil-o com grande
fúria e grita. Mas o corregedor e os seus desan-
daram a galope simulando medo. A guerrilha,
chegando ao topo da encosta, achou deserto o
valle, e só avistou ao longo da planície o corre-
gedor, que fugia á rédea solta contra a corrente
do rio.
As tropas regulares viram, dentre os trigos,
descer os sebastianistas, e, quando elles desceram,
deram a primeira descarga de arcabuzes, que foi
terrivelmente mortífera.
Pedro Affonso, reconhecendo o estratagema, lar-
gou a fugir, e a guerrilha, espavorida e fraccio-
nada, procurava baldadamente ganhar algumas
das vertentes do valle. Muitos dos voluntários fica-
ram prisioneiros, e não poucos cairam mortos e
feridos.
Houve porém um grupo de sebastianistas que
se portou com heróica bravura. No valle, a pe-
quena distancia da vertente septemtrional, assenta
a egreja de Nossa Senhora do Porto, que foi mes-
quita, e que denuncia ainda todo o seu cunho de
antiguidade moirisca, comquanto a data mais an-
tiga que hoje se nos depara lá seja a de 1627.
Os últimos guerrilheiros do rei da Ericeira for-
tificaram-se valorosamente no alpendre e nos pa-
rapeitos do muro que torneja o templo. D'ahi con-
tinuaram descarregando os seus arcabuzes até os
derradeiros cartuchos. Não podendo ganhar a ver-
tente, procuraram morrer com honra.
Este feito militar faz-nos lembrar de uma tela,
Les ãerniers cartouches, em que o pintor Neuville
143
eternisou um episodio similhante, occorrido em
Bazeilles, por occasião da batalha de Sédan.
O que em Sédan fizeram em 1870 os soldados
de ihfanteria de marinha — que nós cá não temos
— realisaram-n'o, no nosso pequeno paiz, em
1585, os guerrilheiros do rei da Ericeira, Ma-
theus Alvares.
E elle, o heroe da gruta de S. Julião ? Que é
feito d'elle?
Matheus Alvares, avisado da approximação da
sua guerrilha, fora cautelosamente observal-a do
alto de um dos montes que pelo norte dominam o
valle. Chegou a tempo que o corregedor Diogo
da Fonseca e a sua pequena escolta de beleguins
fugiam á rédea solta pelo valle dentro, simulando
grande medo. O rei da Ericeira desconcertou-se
da sua gravidade real batendo palmas á fuga do
corregedor, que julgava ser sincera ; e com elle
applaudiram também dois ou trez próceres invá-
lidos que o acompanhavam.
Mas quando d'entre os trigos explodiu a pri-
meira descarga dos arcabuzeiros, Matheus Alva-
res largou a fugir sem se importar com os próce-
res inválidos, nem com a dignidade real, nem com
os seus guerrilheiros sacrificados.
Na hypothese de uma invasão das tropas cas-
telhanas pelo sul, a rainha havia-se aposentado
na Ericeira, onde as primas Valverdes e outras
moçoilas nobilitadas lhe assistiam em improvisada
corte.
• Quando a guerrilha passou na Ericeira para
vir tomar o caminho de Cintra, por onde, segundo
o plano de Pedro AfFonso, devia marchar sobre
Lisboa, a rainha com as suas donas e donzellas
saiu ao encontro dos voluntários fazendo-lhes fes-
144
tiva recepção e saudando o pae, que do alto do
bucéphalo, como Cid Campeador o poderia fazer
de cima do seu famoso Babieca, a cumprimentou
inclinando a espada impolluta.
Pobre rainha saloia ! Esperando o pae, não foi
tão infeliz como a filha de Jephté, mas a sua gran-
deza real estava condemnada por horas.
As raparigas do burgo, fanatisadas pela causa
do solitário de S. Julião, offereciam aos volunta*
rios copinhos de agua-ardente e flores. Sorriam-
lhes e acclamavam-n'os. Mas dentro de pouco
tempo todo este scenario de ovação patriótica se
transmudava no quadro lúgubre de uma derrota
tremenda.
E quem sabe talvez se os heroes que queima-
ram os seus últimos cartuchos na egreja de Nossa
Senhora do Porto não teriam sido mais alcoolisa-
dos pelo amor do que pelos copinhos d'aguardente
que beberam?
O amor é sempre o mesmo impulsor de nobres
audácias, seja nas cidades ou nas aldeias.
Quem hoje afunda o olhar na grande sere-
nidade de valle, por onde o rio de Chelleiros en-
tra no mar, próximo á Ericeira, mal poderá re-
construir o episodio guerreiro que ali occorreu,
entre descargas de arcabuzes atroadores, ha tre-
zentos e cinco annos exactos.
VII
O corregedor Diogo da Fonseca marchou, de-
pois da victoria, sobre Mafra, onde, tendo man-
dado instaurar uma severa devassa, fez celebrar
honras fúnebres por alma do doutor Gaspar Pe-
reira, seu filho e sobrinho.
145
O pobre corregedor de Torres Vedras nem suf-
fragios teve. A ingratidão dos governos ! Ponde
os olhos n'isto, ó ingénuos magistrados do presente
e do futuro.
E' claro que Diogo da Fonseca tratou, em pri-
meiro logar, de haver ás mãos o rei da Ericeira
e Pedro Affonso.
Matheus Alvares fugindo de serra em serra, pe-
las terras dentro, pediu poisada n'uma locanda.
A estalajadeira, sabendo d'ahi a pouco a noticia
da derrota, entrou-se de receios pela responsabi-
lidade que lhe cabia por dar hospedagem ao so-
litário de S. Julião, muito conhecido em dez lé-
guas ao redor. Mas um sentimento bom, de pie-
dade feminina, acabou por convencel-a a receber
na sua casa o pobre rei duas vezes vencido. Ti-
nha ella razão para receiar das represálias do go-
verno castelhano, bem mais razão por certo do que
tivera o marquez de Santa Cruz para mandar re-
forçar em Lisboa a guarda do Paço da Ribeira,
com medo da guerrilha dos sebastianistas. O certo
é, porém, que a piedade poude mais n'ella do que
o medo, e, acolhendo o rei fugitivo, ungiu-lhe por-
ventura o corpo fatigado com lagrimas piedosas.
Dois dias depois, soldados castelhanos cerca-
vam a locanda, e hospede e hospedeira caiam nas
mãos do corregedor Diogo da Fonseca.
Matheus Alvares era sem demora enviado para
Lisboa, sobre o dorso de um burro, como Jesus
Christo entrou em Jerusalém. António Simões e
outros graduados sebastianistas, com excepção de
Pedro Affonso, acompanhavam-n'0 custodiados e
montados biblicamente, como elle. As mãos atadas
atraz das costas. A gente que transitava pelas
ruas da cidade, e que tinha visto passar pouco
<46
antes o archiduque Alberto, viu chegar o rei da
Ericeira com o seu irrisório cortejo, chasqueado
e apupado pelos transeuntes castelhanos.
A pobre estalajadeira, que dera poisada a Ma-
theus Alvares, foi, com outras muitas pessoas,
justiçada no Alto da Forca, na Ericeira, a mesma
eminência onde o povo d'aquella villa julga ainda
hoje que foi executado o falso D. Sebastião.
N'uma manhã de setembro d'este anno, junto
á egreja de Nossa Senhora do Porto, perguntava
eu ao tio Filippe Gaspar, o mais lettrado campo-
nez da Carvoeira:
— Onde foi então que mataram Matheus Alva-
res?
E elle respondia com arreigada convicção :
— Na Ericeira, no Alto da Forca.
E' uma tradição confusa, que emparelha na
morte o rei e os seus partidários. Ali mesmo na
Ericeira, onde o povo lançara ao mar o correge-
dor de Torres Vedras, e onde Pedro Affonso fi-
zera quartel-general, era natural que Diogo da
Fonseca quizesse dar o espectáculo de uma se-
vera punição. Mas era também natural que o go-
verno de Castella quizesse, por sua vez, mostrar
á capital a dureza do castigo com que punia os
que ousavam incommodal-o.
Matheus Alvares fez declarações categóricas :
— O seu plano, combinado com Pedro Affonso,
era entrar em Lisboa na véspera de S. João, quando
o povo estivesse reunido nos folguedos tradicionaes
d'essa noite. Dar-se-ia a conhecer como sendo o
rei Encoberto , annunciado nas trovas do Bandarra,
e, depois de reconhecido e acceito pelo povo, dir-
lhe-ia do alto de um balcão : Eu não sou o rei
D. Sebastião, mas sou um homem que vos resti-
147
tuiu a independência da pátria livrando-vos do
jugo de Castella.
E o povo reconhecido não duvidaria acceital-o
como rei.
Eis o que elle havia pensado nas noites silen-
ciosas da gruta de S. Julião.
A 14 de junho, Matheus Alvares foi conduzido
ao cadafalso. Cortaram-lhe primeiro a mão com que
elle havia falseado a assignatura de D. Sebastião ;
depois enforcaram-n'o com alguns dos seus cúmpli-
ces ; por ultimo, cortaram a cabeça ao cadáver,
espetaram- n'a n'um poste, e esquartejáram-lhe o
corpo, pregando-lhe os quartos nas portas da ci-
dade.
Pedro Affonso conseguiu andar a monte durante
algum tempo. Mas acabou por ser denunciado por
um dos seus correligionários, vendido a Castella.
Enviado a Lisboa, teve a sorte do genro : enforcado
e espostejado.
E a filha, a mallograda rainha? Que ella so-
breviveu ao desgosto de perder a coroa, não ha
duvida nenhuma, porque deixou descendência que
na Ericeira perpetuou a alcunha de Rainha na
sua família. Provavelmente, atiraram-n'a no pri-
meiro momento para o fundo de um cárcere, até
que se apiedaram d'ella, e lhe restituíram a liber-
dade. Pobre mulher ! ella tudo havia sacrificado
ao impostor Matheus Alvares, tudo. . . ; era justo
que lhe dessem alguma compensação piedosa. De
mais a mais, nem o seu sexo nem a sua desgraça
eram temerosos para o governo de Castella. Per-
doando-lhe, ligavam-lhe menos consideração do
que a seu marido, cuja sombra, vista á distancia
de legoas, fizera reforçar a guarda do Paço da
Eibeira !
148
De simulato rege Sebastiano é o titulo do poema
em que o doutor Estevam Rodrigues de Castro
contou as façanhas do rei da Ericeira. Eu, que já
vou estando divorciado do verso, achei que era
preferível a prosa para contar uma historia em
que o único poeta que figura é um sapateiro.
Lisboa, 10 de novembro de 1890.
chaucuÀ) ã/J «ú/ma! a\.\/m,ojO
OTttEllOSITO
Comedia original em 1 acto
10
>
êsmmímí
EDUARDO, irmão de
ALBERTINA.
ACTUALIDADE
TJma modesta saleta, desordenadamente mobilada. Á direita
mesa ; em cima uma barretina de papelão e uma espada de
folha/Proximo, uma cadeira de jantar, para creança, com uma
grande boneca sentada. —Ao fundo, um canapé. — Á es-
querda, portas envidraçadas para o jardim. Perto, um ca-
vallo de balanço. — Á direita, um piano de estudo.
Scena I
ALBERTINA, sentada ao piano, corre escalas. EDUARDO montado no
cavallo de balanço, faz contas n'uma pedra, collocada sobre a ca-
beça do cavallo.
EDUARDO
Tres vezes nove . . . dezoito . . , Oh ! Não ando
para traz nem para diante. .
ALBERTINA
Apezar de estares a cavallo.
EDUARDO
Vá lá fazer cohtas com esse chocalho a mar-
tellar-me os ouvidos e a paciência.
(Vae sentar-se n'uma cadeira com a pedra sobre a perna traçada).
152
ALBERTINA.
Cáustica menos um chocalho do que um cho-
calheiro como tu.
EDUARDO
Não me accusa a consciência de metter no bico
dos outros o que vejo ou oiço.
ALBERTINA
Francamente não sei de que te sirva a feliz me-
moria que tanto te gabam.
EDUARDO
Ora!. . . deixa- os lá f aliar.
ALBERTINA
Papagueias tudo em casa que ouves de véspera
no theatro . . .
(EDUARDO (cumprimentando irónico)
De V. Ex.a; papagaio reconhecido.
ALBERTINA
Esqueces-te então das queixas que fazes de
mim?
EDUARDO
Eu ? ! . • . Não estás boa de cabeça,
ALBERTINA
Ah ! eu é que não estou ! Nega, se és capaz,
que foste dizer á mamã que bati no Diógenes?
EDUARDO .
Sabes que sou bastante amigo d'elle para o pro-
teger...
153
ALBERTINA
Em meu desfavor que sou tua irmã. . . Sacri-
ficar-me, por amor d/aquelle fidalgo... Não ha
uma coisa assim !
(Tocando fortemente o piano).
EDUARDO
Tu tens entendimento e elle não... Demais,
deixa-me estudar e não me incoramodes.
ALBERTINA
O incommodado é que se muda.
EDUARDO
Ora a menina que ainda ha dois dias mudou
os dentinhos, já feita doutora.
ALBERTINA
Se alguém te escutasse iria imaginar que o teu
dente de sizo nos havia dado a honra de se dei-
xar ver.
EDUARDO
Invejosa! Pois olha que já ha bastantes annos
mudei os meus.
ALBERTINA
Elles não se mudaram . . .
EDUARDO
Então o que fizeram ?
albertRa
Cahiram . . . das gracinhas.
<Bi)v
154
EDUARDO
Estás a atenazar-me. . . e eu nao sei que con-
tas heide mostrar ao papá quando m'as pedir.
ALBERTINA
Mostra-lhe as contas em que reza a avósinha.
EDUARDO
Por essas e outras é que o papá nao te levou
hontem commigo á representação do Othello.
ALBERTINA
Faltas á verdade. Não fui porque já tinha ido
com o padrinho.
EDUARDO
E gostaste ?
ALBERTINA
Gostei, mas o ultimo acto affligiu-me muito.
EDUARDO
Tenho-o todo na cabeça.
ALBERTINA
Ah!
EDUARDO
O que foi?
ALBERTINA
De todo se me varreu da ideia . . .
EDUARDO
O quê?
ALBERTINA
Estudar a lição de grammatica.
455
EDUARDO
Assustaste-me.
ALBERTINA
Recommendo-te silencio.
EDUARDO (aparte)
Apanhei- te com a bocca na botija. Vou desfor-
rar-me. (Agarra de um pau e monta o cavallo de papelão. Alto).
Eh ! . . . Eh, boi ! . . . Uh ! . . . Toca a musica ! . . .
Toca a musica ! . . . Táratá. . . tchin ; tchin, tchin!
ALBERTINA
Oh ! que inferneira ! Vae-me a cabeça pelos
ares
EDUARDO
Melhor. • . ficas sem ella. . . e não pagas nada.
(Gritando). Quem não tem cabeça, não paga nada !
ALBERTINA (zangada)
Estás-me incommodando atrozmente.
EDUARDO (insidioso)
O incommodado é que se muda.
ALBERTINA (aparte)
Sim, senhor ! cahi na rede. (Alto). Não me fazes
pirraça. . . Vou estudar para, o jardim. . . Estou
lá mais á fresca.
(Sae e deixa a porta aberta).
Scena II
EDUARDO (só)
Não te constipes, nem batas no Diógenes . . .
Toca a concluir esta multiplicação. . . Três vezes
156
nove, vinte e sete ; e vão dois . . . Oito vezes
oito. . . hum. . - hum. . . cinco vezes. . . hum. . .
hum . . . hum . . . Agora a prova : hum . . . hum . . .
quatro ; hum . . . hum . . . quatro . . . Certa. Ainda
bem. Estou livre da massada. Agora folgar ! De
que modo ?. . . Ah ! já sei. Ensaio o ultimo acto
do Othello. Mas, falta-me a Desdemona. Com mi-
nha irmã escusado será contar. . . Também, na
scena da morte, ella pouco tem que dizer. . . Que
ideia ! A boneca de Albertina está ao pintar. Vae
dito, faz a boneca de Desdemona. Mãos á obra.
— A scena representa um quarto de dormir. Des-
demona dorme no leito. (Deita a boneca do canapé.) PrO-
XÍmO arde uma lâmpada. (Accende uma vella e colloca-a
junto da boneca.) Bem bom! Agora arranjemos o
OthellO. A espada. # . O Capacete. . . (Põe a espada de
folha á cinta e a barretina de papelão na cabeça. Vae buscar a uma
gaveta uma caraça negra e colloca-a na cara. Vendo-se ao espelho.)
Óptimo ! Esplendido ! Se a mana me visse dei-
tava a fugir. Ah ! ah ! ah ! . '. . Ora, o mouro en-
tra por aqui; assim* .. e, depois de umas refle-
xões, diz : «Não quero verter-lhe o sangue, nem
rasgar-lhe a pelle mais branca do que a neve.
{Depõe a espada). E' necessário comtudo que ella morra.
Mostrando a luz). Apaguemos esta luz e depois . • .
(Mostrando a boneca) apaguemos também aquella. (Beija-a.)
Oh! hálito perfumado, que á justiça quasi per-
suades que torça e quebre o gladio ! . . . Um beijo
mais . . . mais OUtro. (Cobre a boneca de beijos.) Mais OU-
tro ainda! e seja o ultimo I Tão doce nunca o
houve e tão íatal!... Accòrdou.» Segue-se um
dialogosito até que elle sae se com esta: «Se te
lembras de algum crime, para o qual ainda não
alcançaste perdão do ceu, implora-o já.» Ella, coi-
tadinha, depois de umas lamurias de apertar o co-
157
ração, implora -lhe cora uns modos muito bonitos :
(Sempre que arremeda Desdemona deve tirar a mascara.) «Matae-
me amanha ; deixae-me viver esta noite. — Não.
Se resistes. . . — Meia hora apenas. — Não ha de-
mora possível. — Só o tempo de resar uma ora-
ção. — -E tarde de mais.)> (Asphixia a boneca.)
ALBERTINA (fora)
Oh! Eduardo, Eduardo!
EDUARDO (aparte)
Nem de encommenda. . . (Declamando.) «Que ru-
mor é este?. . . ainda não morreu ! ainda não está
bem morta ! . . . Apesar de cruel sou compassivo . . .
Não quero prol'ongar-te a agonia. Assim! assim!»
(Carrega sobre o peito da boneca, rasgando-a.)
ALBERTINA (fora)
Então, Eduardo, não ouves ?
EDUARDO
Mau ! mau ! que lá se foi tudo quanto Martha
fiou. Representei tanto ao vivo que rasguei de alto
a baixo o vestido á boneca. Quem ha de ouvir
Albertina? Não eu, que por aqui me safo. (Occui-
ta-se atraz de um movei e logo que entra Albertina escapa-se para o
jardim.) Pernas para que te quero'.
Scena III
ALBERTINA (só)
Também não serves para nada. Olha o gran-
de trabalho de responderes á gente. Queria pedir-te
a boneca. . . Agora reparo. . . estou fallando ás
paredes. Temos jogo das escondidas. E o mesmo.
158
Entre tenho -me com a minha bébê. Mas não a ve-
jo. Leinbra-me perfeitamente de tel-a posto na ca-
deirinha. Aqui anda obra do penhor meu irmão.
Forte mania de me escolher para objecto dos seus
brinquedos. Espera. . . eu já te ensino. Vou para
cima do canapé fingir que gemo, que estou doente.
(Dirige-se ao canapé e dá um grito.) Ah !
Scena IV
ALBERTINA e EDUARDO
EDUARDO
Deve sortir bom effeito o meu plano. (Reparando
em Albertina que tem as mãos na cara.) Soffres ? Tens algu-
ma coisa?
ALBERTINA (choramigando)
A minha bebé toda escangalhada !
EDUARDO (vê um boccado do vestido da boneca, apanha-o
e mette-o no bolso. Aparte.)
Serve-me para prova.
ALBERTINA (aparte)
Hei de vingar-me. (Alto.) Então, o que dizes a
isto ?
EDUARDO
Digo que já descobri o auctor do crime.
ALBERTINA
Es um Colombo para descobertas. Então quem
foi?
EDUARDO
Peço-te encarecidamente que não lhe faças mal»
Foi...
159
ALBERTINA
Foi?...
EDUARDO
... O Diógenes.
ALBERTINA
Diógenes ? !
EDUARDO
Sim, Diógenes ! (Aparte.) Disfarcemos. (Alto.) Aposto
que não te recordas porque o papá o baptisou com
aquelle nome?
ALBERTINA (reprimindo- se)
Não ! . . . não me recordo ! (Aparte.) Velhaco !
EDUARDO (aparte)
Está de fel e vinagre. (Alto.) Porque tendo o jar-
dineiro, de uma pipa velha, armado a casa do
cão, e como Diógenes, um philosopho grego, vi-
via dentro de uma pipa . . .
ALBERTINA (frenética)
. . . E andava de dia com uma luz em busca de um
homem verdadeiro, mas só encontrava aldraboes
como tu ! . . .
EDUARDO, (aparte)
Peior! (Alto.) Eu não falto á verdade.
ALBERTINA
Para que criminas, então, o animal que se não
pôde defender?
EDUARDO
Porque podia, se valespe a pena, jurar em co-
mo foi elle. (Aparte.) Queres apanhar-me, mas para
cá vens de carrinho.
160
ALBERTINA
Juravas falso! Por elle punha as mãos no fogo
e por ti. . . nem que me dourassem. Anda, com-
vence-me de que foi o cão que trouxe a boneca
da cadeira para o canapé !
EDUARDO (aparte)
Estava a calhar para juiz, a mana. (Alto.) Natu-
ralmente foste tu própria, e já te esqueceste. . .
Comes tanto queijo. . .
ALBERTINA
Desculpa de mau pagador. Não se me dava de
saber também, como entrou o animal aqui.
EDUARDO
Pelo seu pé... Ha pouco deixaste a porta
aberta. . . Está claro. . .
ALBERTINA
Como tinta de escrever ! (Aparte.) Que descaro ! . . .
EDUARDO
Eu já te provo, deixa-me ir ver uma coisa.
(Aparte.) Vou pôr o boccado do vestido ao pé do
Cão. (Sae.)
Scena V
ALBERTINA (só)
Pois tu não has de amargar o que fizeste ? Mudo
de táctica. Julgas que sou tola, a ponto de me dei-
xar illudir assim ! Pois bem. Principio de vin-
gàr-me por aqui. (Vae á pedra e apaga as contas.) Has de
161
fazel-as de novo que te has de regalar. Elle ahi
vem. Fingirei que acredito tudo.
Scena VI
ALBERTINA e EDUARDO
ALBERTINA
Já viste a tal coisa?
EDUARDO (triumphante)
Já e certifiquei-me de que foi o câo o culpado.
ALBERTINA
Sim?
EDUARDO
Anda cá. (Encaminha-a até á porta do jardira.) Vês O CaO
deitado ?
ALBERTINA
Vejo.
EDUARDO
O- que. tem elle ao pé da bocca?
ALBERTINA
Um pedaço do vestido da bebé.
EDUARDO
Insistes em culpar-me?
ALBERTINA
Pelo contrario. Dou as mãos á palmatória, foi
o mau do Diógenes. Perdôa-me ter duvidado da
tua palavra.
EDUARDO.
Isso não é cá para nós.
Até logo.
Adeus.
162
ALBERTINA.
EDUARDO
ALBERTINA (aparte)
Levas uma lição de mestre, essa te prometta
eu!
Scena VII
EDUARDO (só)
Ora aqui está como se engana uma tola, com
quanto não seja toleima. . . Bondade! Até me faz
pena. A mana é tão amiga da boneca, como a
mamã de nós. Não foi por mal. Enthusiasmei-
me . . . E o Diógenes, coitadito ! a pagar as fa-
vas, elle tão meu amigo, que me estima tanto,
que me lambe as mãos ... e eu pago-lhe as suas
meiguices com a minha ingratidão. Sou um in-
triguista ! . . • um falso denunciante ! — Vejam
como se trocaram os papeis. Quiz fazer de Othello
e faço de Yago, aquelle mau homem da peça de
hontem. — Ao mesmo tempo dá-me vontade de
rir, Diógenes transformado em Othello. Tem gra-
ça! Ah! ah! ah!
Scena VIII
EDTJABDO e ALBERTINA
ALBERTINA (perturbada e como que em busca de alguma coisa,
com uns modos entre desgosto e angustia)
Agora é que vão ser ellas.
EDUARDO (admirado)
Ha alguma novidade? O que procuras?
163
ALBERTINA (cada vez mais perturbada)
Ai ! . . . deixa-me ! • . . Estou muito afflicta ! . • .
muito assustada!. . .
EDUARDO
Mas por Deus ! o que succedeu ?. . .
ALBERTINA
Má hora aquella, em que me lembrei ... de
contar tudo . . .
EDUARDO
Tudo quê?. . . pela tua saúde explica-te!
ALBERTINA
. . . Sem pensar nas funestas consequências ! . . .
EDUARDO
Se não pões tudo em pratos limpos, endoideço !
ALBERTINA
Onde estarão as correias ?
EDUARDO
As correias ? !
ALBEUTINA
Sim, fui dizer ao papá. . . que o Diógenes. . .
tinha escangalhado a boneca. . .
EDUARDO
Não sou eu só o chocalheiro.
ALBERTINA
Tens razão. Mas eu não adivinhava que o papá
ficasse furioso. . . Quer por força matar o cão. . .
164
Pediu-me logo as correias... Pretendi descul-
par o animal . . . mas quem diz lá ! Não houve
meio.
EDUARDO
O que se ha de fazer ? !
ALBERTINA
Tenho uma idéa.
EDUARDO
Dize, dize depressa.
ALBERTINA
Vae mostrar as contas ao papá para o distra-
hir. Talvez, vendo as contas. . . lhe passe.
EDUARDO
Bem achado, sim, senhor. Vou immediatamen-
te. Onde está a pedra ? (Vae buscar a pedra.) Oh !
ALBERTINA
O que foi?
EDUARDO (muito triste)
Está apagado o que fiz. E não foste senão tu !
ALBERTINA
Eu?!
EDUARDO
Sim, tu.
ALBERTINA
Eu?!
EDUARDO
Pois quem
havia de ser?
ALBERTINA
Ora! Tem
pouco que saber
O Diógenes.
165
EDUARDO
Hein?!
ALBERTINA
Sem tirar nem pôr.
EDUARDO
Não me illudes. Suppozeste ser eu o destrui-
dor da tua boneca e de revindicta apagaste as
contas.
ALBERTINA
Isso é que é ser desconfiado. Pois foi o cão. . .
Eu vi.
EDUARDO
Tontinha ! Como querias tu que o animal apa-
gasse as contas?
ALBERTINA
. . . Com a lingua.
EDUARDO
Com a lingua ?
ALBERTINA
Sim, Eduardo. Olha, muito surrateiramente poz
as patinhas em cima da cadeira e principiou de
lamber os algarismos . . . Apenas pude evitar que
lambesse os números que o papá escreveu.
EDUARDO
Lavre lá dois tentos . . • Apanhou-me.
ALBERTINA (fingindo não ouvir)
Ah ! encontrei as correias. Visto não haver
meio de evitar que o papá mate o cão, vou le-
var-lh'as.
EDUARDO (impedindo4he a passagem)
Suspende ?
166
ALBERTINA.
Mas . . .
EDUARDO
Não consinto que pague o justo pelo peccador.
ALBERTINA
O quê?.,. Diógenes está innocente?
EDUARDO
Innocentissimo.
ALBERTINA
N'esse caso o culpado. . .
EDUARDO
Fui eu. , . fui eu que pretendendo imitar Othello
matando Desdemona, estrangulei a boneca...
rasguei-lhe o vestido. (Ajoelha.) Perdoa !
ALBERTINA (aparte)
Que coração de oiro ! Já agora, para o emen-
dar, levo a comedia até o fim. (Alto.) Perdoo-te de
mil vontades ! . . .
EDUARDO
Obrigado !
Mas . . .
Outro mas?
ALBERTINA
EDUARDO
ALBERTINA
E' que o papá deve estar fulo á espera das
correias.
EDUARDO (triste)
E verdade !
ALBERTINA
Agora pergunto eu, o que se ha de fazer ?
167
EDUARDO (com muita dignidade, depois de reflectir um momento)
E* a única solução.
ALBERTINA
Qual?
EDUARDO
Dá-me as correias.
ALBERTINA
Para que as queres ?
EDUARDO
Dá-as cá.
ALBERTINA
Ahi as tens. (Eduardo colloca-as nos hombros e encaminha-se
para a porta.)
ALBERTINA .(embargando-lhe 0 passo.)
O que pretendes fazer ? 1
EDUARDO
A propósito das lições que o papá nos ensina
de historia, ainda tu, ha pouco, alludiste a Co-
lombo ; a mim agora lembra-me Egas Moniz. Como
sabes, elle, arrependido da infidelidade que pra-
ticou a el-rei de Castella, se lhe apresentou com
uma corda ao pescoço para receber castigo. . .
ALBERTINA (com as lagrimas nos olhos)
Não digas mais. Es um anjo ! (Beija-o.)
EDUARDO (muito commovido)
Está quieta ! . . . isso íaz-me peior ! (Quer fugir.)
ALBERTINA (segurando-o)
Fica. Tem paciência, vae fazer de novo as con-
168
tas que eu apaguei, o que rne perdoarás. . . Ne-
nhumas outras tens que dar ao papá.
EDUARDO
O que dizes ?
ALBERTINA
Que tudo isto foi um estratagema, uma come-
dia, para te prova^ que, apezar de ser bastante
tua amiga, não permitto que faças de mim' tola.
EDUARDO (pujando de contente e um tanto commovido)
Ali ! Albertina da minha alma ! minha querida
irmãsita ! que pezo me tiraste! E's mil vezes me-
lhor que Desdembna. Peço-te uma coisa. . . Re-
presenta commigo a scena da morte.
ALBERTINA
Com uma- condição.
9
EDUARDO
Qual é?
ALBERTINA
Não me estrangulares como fizeste á boneca, meu
OthellositO ! (Abracam-se e beijam-se.)
FIM.
•
PQ Pinheiro Chagas, Manuel
9135 A Africa portugueza
P5
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